
Foto: CMTV
Ontem, mais uma vez, apesar de ser um hábito que, para mim, cada vez tem menos força, desloquei-me ao sítio do costume para ver o meu FC Porto jogar. Cerca de 120 minutos depois, tudo o que me estava na cabeça era o ser-humano. A Humanidade como um todo. Lembrava-me de um ou outro lance do jogo mas, essencialmente, era o extra-futebol que me deixava a reflectir.
O jogo de ontem, e tudo o que envolveu, diz-nos muito sobre a humanidade. Sobre onde estamos e para onde vamos, ou para onde podemos ir, enquanto sociedade. E não falo apenas da realidade portuguesa, pois acredito que, num mundo cada vez mais global, os comportamentos e as características também se globalizam. O FCP x SCP de ontem diz-nos que não estamos bem. E que, possivelmente, há tendência a piorar.
O que mais me saltou à vista durante o jogo de ontem foi a falta de valores. Falo de honestidade, de jogo limpo, de ética no desporto (e no trabalho), na vida em geral. Valores que todos associamos como bons mas que todos nós, também, sobretudo em momentos de elevada tensão emocional (como um jogo de futebol), tendemos a esquecer.
Não é de admirar, infelizmente. Afinal, a desonestidade faz carreira e dinheiro, muito dinheiro. A verdade passou para segundo plano, interessando só e apenas o prender da atenção das pessoas, como uma espécie de zombies tecnológicos ou zombies da informação, mesmo que depois se faça uma errata em letras pequenas com 1/10 da atenção dada à mentira inicial. Importa vender, chegar primeiro, falar mais alto.
Esmiframos a história de um miúdo caído no fundo de um poço com horas e horas de “especialistas”, paramos o país com outro miúdo, com os soundbites do terrorismo, os directos, as fotografias. Depois corrige-se a informação, e corrige-se. E corrige-se. E a honestidade, a ética e o jogo limpo são atropelados pelo caminho sem direito a directo.
Assim, se convivemos diariamente com este tipo de comportamentos, porque haveríamos de estranhar um jogador levar um toque no peito e cair queixando-se da cara? Porque é que estranhamos um jogador estar deitado a queixar-se da coxa e levantar-se assim que a bola se aproxima? Porque é que fazer manguitos em directo deveria deixar-nos escandalizados, se o hábito é a mediocridade e o convívio com a indecência? O “jogo” de ontem foi apenas uma sinédoque do mundo real.
Mas, no pós-jogo, voltamos a ver outra característica tão real daquilo que o ser-humano, enquanto espécie, se foi tornando. Voltamos a ver o comportamento tribo, ou manada, por parte dos adeptos e representantes de ambas as equipas. Os outros é que são maus, os outros é que roubam, os outros é que são culpados. Eu próprio sofro do mesmo mal, que durante o jogo vou soltando os meus palavrões, até que vejo uma batalha campal na televisão e me pergunto: mas que raio estou eu a fazer?
E o problema é não existir esse questionar. Ninguém pára para pensar um bocadinho nas palavras que vai escrevendo nas redes sociais, nos insultos que até poderá dirigir a amigos ou familiar. Importa que o penalty não foi marcado, ou o amarelo foi mal mostrado. Mas ninguém pára um pouco e diz: mas que é isto? Que andamos nós todos aqui a fazer?
Não interessa muito colocar esse tipo de questões. Afinal, no comportamento tribo/manada, a irracionalidade toma conta. Interessa fazer urros animalescos quando o “nosso” Presidente manda “umas bocas” ou “diz umas verdades”, interessa fazer saltar uma ou duas veias no pescoço a responder a comentários no Facebook. Não interessa perceber que, enquanto estamos todos a tentar diferenciar-nos no pormenor do penalty ou do amarelo, estamos a demonstrar como somos tão parecidos, tão iguais. Na forma, no jeito, na estrutura do raciocínio.
E em Portugal isso tem particular relevância, porque o comportamento manada estende-se dos departamentos de comunicação, que deveriam ter vergonha de usar esse nome, devendo substitui-lo por departamentos incendiários ou similares; até aos adeptos mais comuns. Mas, no caminho entre uns e outros, o comportamento tribo/manada vai infectando os mais diversos tipos de agentes, discorrendo horas e horas de directos e debates de especialistas. E nota-se particularmente no culto à personalidade de personagens como Pinto da Costa, por exemplo. Alguém que queira ser minimamente honesto pode diminuir o contributo de PdC para o sucesso e crescimento do FC Porto? Não. Esse mesmo alguém, minimamente honesto, poderá discordar que PdC esgotou o seu ciclo e já está a fazer mais mal do que bem de algum tempo a esta parte, estando também ligado a casos (e, sobretudo, pessoas) pouco recomendáveis? Sim. Tudo o resto, são tretas e balelas de quem só vê azul, verde, vermelho, amarelo ou roxo à frente. Quem perde, no fim? A humanidade e a Humanidade.
Muito se falou, também, do facto de o encontro ter sido um mau contributo para o produto do futebol português. Mais uma vez, a obsessiva preocupação com os números, o dinheiro, os clientes. Eu estou-me pouco marimbando para o produto do futebol português e se os ingleses ou os espanhóis gostam ou não de ver o que por cá se passa. Porque o problema não é do futebol português. O problema é humano. O problema é tudo ser excessivamente artificial e fabricado. O problema é andarmos há anos a subverter ideias e valores tão importantes como a honestidade (como falamos acima) ou a competência. Sim, a competência. Deixamos de saber o significado de competência. João Pinheiro, o árbitro de ontem, foi apelidado na comunicação social, antes do jogo, de melhor árbitro português. Demonstrou em campo que não tem competência para arbitrar um jogo em que os intervenientes não o facilitam. E está tudo bem, ou deveria estar. Não temos todos a capacidade para sermos os melhores nas nossas áreas. Mas, mais uma vez, a sociedade do espetáculo quis fabricar ideias para alimentar ainda mais espetáculo mediático de um jogo de futebol, provando que ficamos a dever muito a tanto do que fomos construindo sobre nós.
Oh sim, a sociedade do espetáculo. Aquela em que mais pensei ontem, depois de me aperceber que os operadores de câmara corriam a tentar apanhar os socos, as cuspidelas e os insultos. Quem iria conseguir o melhor ângulo da agressão do A ao B? Atenção que eu tenho aqui imagens exclusivas de um raspão de joelho com joelho do roupeiro do Porto ao tratador da relva do Sporting. Isto para não falar das centenas de telemóveis em riste, acompanhados de risos e sorriso, que víamos nas bancadas. Chegamos aqui, amigos. A este triste espetáculo. Onde a boçalidade e tudo o que temos de pior estão “ali”, na arena, em carne viva. E onde nós nos regozijamos com isso, como se fosse a melhor coisa do mundo. Quando, na verdade, nos está a corroer por dentro, sem nos apercebermos.
E este caminho desnorteado que, enquanto sociedade, vamos trilhando, está muito enraizado numa falta de liderança gritante. Olhemos à nossa volta e perguntemos: quem nos lidera? E, depois de percebermos quem nos lidera, perguntemos se são verdadeiros líderes. Porque não são.
As evidências da crise de liderança que vimos ontem, desde presidentes a tomarem a palavra para insultarem outros, ou fazerem declarações truncadas, esquecendo as atitudes dos seus próprios liderados; desde contas oficiais de clubes nas redes sociais a usarem imagens de agressões para ser vangloriarem, ou para atingirem os adversários directamente; desde sabermos que os “líderes” das instituições do futebol em Portugal irão, provavelmente, e como sempre fazem, adoptar a postura do silêncio não protegendo os seus intervenientes, desde os árbitros aos jogadores; estas evidências, mais uma vez uma amostra do que se passa a uma escala global, demonstram que faltam verdadeiros líderes. Líderes com valores, que os apliquem em todos os momentos e situações. Líderes que assumam erros em público, que puxem as orelhas aos liderados, quando necessário. Líderes que demonstrem ter um bem comum em mente e não só o seu próprio sucesso egoísta. Líderes, no fundo.
Como acontece com todos os conteúdos mediáticos hoje em dia, daqui por algum tempo ninguém se lembrará deste jogo. Ou ninguém olhará para este jogo como uma lembrança do decair da humanidade e da Humanidade. Mas os detalhes e os pormenores estão lá todos. Basta parar, observar com atenção e perceber que quem estava ali aos socos não era o Pepe, o Palhinha, o Marchesín ou o Tabata. Éramos e somos nós. Todos. Mesmo aqueles que nada têm que ver com o futebol.
Há uma imagem que mostra Zaidu e Paulinho abraçados, bem longe da confusão final, mas a encará-la de frente. Tenho a esperança de que estivessem a falar sobre como tudo aquilo diz tanto sobre todos nós.
E o Sporting foi roubado.
E o Porto foi beneficiado.
Como sempre.
A resposta que prova que o autor do post está correcto, independentemente das cores clubísticas.
Viva o nosso PUERTO, carago!!
“Alguém que queira ser minimamente honesto pode diminuir o contributo de PdC para o sucesso e crescimento do FC Porto? ”
Não está em questão o contributo … já a forma como contributo foi dado … enfim, seja você também minimamente honesto….
Querer reduzir o contributo aos casos e casinhis é ser intelectualmente desonesto. Escolher bons treinadores, bons jogadores, modernizar estruturas, profissionalizar secções, construir uma identidade e uma filosofia são contributos que são inegáveis. Quanto ao resto, extra-futebol e que tem que ver com alianças duvidosas quer com entidades, quer com pessoas, está na frase seguinte do meu texto. Deixei de acreditar em santos no futebol há muito tempo. Mas não reduzo os sucessos futebolísticos a arbitragens ou lugares na liga. De qualquer clube, seja o meu, sejam os clubes rivais.
O que não se percebe é que os jogadores ainda caiam nisto, como se não estivessem mais que habituados ao que custa jogar nesta liga.