Se pensarmos bem, a leitura é uma espécie de alucinação positiva. Esta ideia circula pela internet com alguma facilidade pela sua natureza humorística mas, sobretudo, porque assenta numa lógica de realidade: é que passamos horas a ler livros, que são árvores transformadas enquanto temos alucinações, porque imaginamos coisas que não existem mas que, na nossa cabeça, parecem tão reais.
Concordando com esta ideia, não posso deixar de pensar na forma como também a escrita é uma espécie de alucinação mas de uma forma mais concreta e palpável. É que somos nós, escritores, que criamos as condições para que os leitores possam alucinar com as nossas histórias. O processo para chegar aí… tem tanto de prazeroso como de, lá está… alucinante.
De facto, a nossa função como contadores de histórias é fazer uma espécie de papel de Deus. Criamos mundos que não existem, habitados por personagens por nós criadas. Ao mais ínfimo pormenor: desde os trejeitos de linguagem corporal, até aos gostos, às opiniões, aos sonhos.
E pensa-se que essas personagens, ao serem criadas, passam directamente para o papel. Nada poderia estar mais errado.
Elas povoam a nossa mente durante tanto tempo que passam a ser quase indescerníveis de nós. Falam umas com as outras, inclusive personagens de histórias diferentes, cujos universos não se cruzam (embora possamos pensar que todas as criações de um mesmo autor se passam, de alguma forma, no mesmo universo).
Então é um facto de que existem pessoas a viver na minha mente. O facto de não existirem não as torna menos reais. Porque as conheço como se fossem pessoas que partilhassem a vida comigo. Conheço a forma como reagem a todo o tipo de situações. Conheço os seus gostos, as suas frustrações. Fazem parte de mim, porque partilham características comigo, embora outras sejam tão diferentes que fortalecem as minhas próprias convicções.
Se isto tudo parece demasiado onírico ou sobrenatural, não o é. É parte do processo da escrita e é razão pela qual o acto de escrever tem um efeito catártico tão forte. Porque dentro desse processo vamos conhecendo-nos cada vez melhor.
Sendo a nossa função escrever histórias, descrever personagens e situações, é pelas palavras que nos saem da cabeça, pelo facto de sabermos que é “aquela palavra” e não outra, que nos vamos conhecendo. Que vamos aprendendo que choramos com algo, mas sorrimos noutra situação.
E é por isso que cada uma das pessoas que vive na minha mente é parte de mim. Não sei para onde vão quando não penso nelas, mas quero acreditar que continuam a existir para além de mim. E que, quando penso nelas, por um qualquer processo de transferência, eles passam-me tudo o que viveram no silêncio dos meus pensamentos. E talvez seja daí que nasçam as histórias.
Até aí tudo bem. O mal é quando pessoas reais começam a viver vidas artificiais na mente das pessoas, aí é que o caldo entorna.