Crime, dizem eles

Esteve recentemente em discussão no parlamento espanhol uma reforma penal que inclui a introdução da pena perpétua, ainda que sob a forma de pena de 25 ou 35 anos a ser revista no seu termo, e com a possibilidade de ser ampliada. A medida, engendrada pelo PP e aprovada pelo PSOE, é pouco coerente com o terceiro lugar que Espanha ocupa entre os países da UE com mais baixa criminalidade, mas a reforma penal foi apresentada no contexto da luta contra o terrorismo, tema sempre sensível na sociedade espanhola, e ainda mais com a ameaça do jihadismo no horizonte.

Se a bandeira desta reforma penal é a possibilidade de castigar com pena perpétua os responsáveis por actos terroristas que originem a morte de cidadãos, “la chicha” – o miolo – está escondida, como lhe compete. Na prática, sob a capa da protecção face ao terrorismo, PP e PSOE uniram-se para aprovar uma lei que estenderá a definição de terrorismo a actos que até agora não eram mais do que contestação social, desobediência civil e boicote. A nova legislação passa a definir como delito terrorista “as desordens públicas” caso com elas se pretenda “obrigar os poderes públicos a realizar um acto ou a abster-se de fazê-lo”.

Em concreto, e para dar apenas um exemplo, isto quer dizer que as múltiplas acções populares que têm acontecido um pouco por toda a Espanha a fim de boicotar o despejo, por parte das autoridades, de cidadãos que não conseguiram continuar a pagar as hipotecas das suas casas passam a poder ser enquadradas na categoria de terrorismo. Geram “desordem pública” e obrigam os poderes públicos a “abster-se de realizar um acto”, o despejo. Logo, constituem actos terroristas.

Quando vejo que o governo português pretende apresentar propostas de lei com vista ao combate ao terrorismo, e que entre essas propostas estará a criação de novos tipos de crimes de terrorismo, nomeadamente o acto de aceder a sites, ou a apologia pública do crime de terrorismo, fico com a pulga inevitavelmente aos saltos atrás da orelha. Qual será a definição de terrorismo a que o legislador se aterá? Que “manifestações de terrorismo” serão tidas em conta para efeitos de criminalização? Como poderá o cidadão saber que o site a que acede é um dos que integram o índex de sites proibidos (já agora, haverá índex?)

E como irá o governo compaginar esta proibição da simples consulta de um site com um dos direitos fundamentais dos cidadãos portugueses, a liberdade de expressão e informação consagrada na Constituição (artigo 37), que diz que todos têm “o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações”?

A leitura jamais implicou concordância, tão só interesse, curiosidade, e não será de espantar que cidadãos interessados manifestem vontade de conhecer  a ameaça que sobre eles poderá pairar. Não acredito que os legisladores precisem que se lhes explique o que é tão óbvio, e é por isso que me permito desconfiar de que sob o pretexto da luta contra o terrorismo havemos de perder direitos e liberdades mais depressa do que esperávamos. Daí até que os bombeiros nos entrem em casa com lança-chamas atrás dos livros proibidos ainda falta? Suspeito que já faltou mais.

Ilustração: “Ray Bradbury’s Fahrenheit 451: The Authorized Adaptation”, de Tim Hamilton

 

Comments

  1. Homeland Security. Estas medidas são assustadoras e configuram uma resposta óbvia do regime decadente à ascensão de novas alternativas políticas.
    E se aqui ainda é cedo para falar, a eleição do Podemos em Espanha torna-se agora ainda mais relevante na medida em que, a menos que eles vençam as eleições (com ou sem aliança com o Ciudadanos) o directório PP/PSOE vai fazer de tudo para diminuir a contestação social e proteger a casta. Isto é verdadeiramente assustador…

  2. Tudo isto é intolerância, autocracia, em suma, fascismo. Salazar governava da mesma forma. A Constituição de 1933 permitia a liberdade de expressão, de reunião ou de manifestação. Porém, nos termos dessa mesma Constituição esse direito estava condicionado a lei especial. Vivemos, pois, no fascismo, com camuflagem democrática.

  3. MJoão says:

    É , tristemente, o retorno do fascismo! Admira-me a passividade dos cidadãos, não dos portugueses pois cá a maioria são súbditos, mas de espanhóis e por aí em diante

  4. Joam Roiz says:

    Carlos Oliveira disse praticamente tudo, havendo pouco a acrescentar: o capitalismo, no estádio “capitalismo financeiro”, agora ideologicamente respaldado no neo-liberalismo político, como sempre encontra na “democracia” burguesa a sua “legitimação”. A palavra democracia só serve para iludir a sua natureza de classe, exploradora e repressiva.

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  1. […] estas palavras depois de ler o artigo de hoje da Carla Romualdo que me deixou ainda mais céptico relativamente às movimentações em Portugal e Espanha no […]

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