Concluído em Novembro de 1870 o processo de unificação dos 25 estados germânicos, no dia 18 de Janeiro de 1871, passaram há pouco 139 anos, era proclamado o Império Alemão. Em Abril a Constituição ideada por Otto von Bismarck entraria em vigor. Nada disto seria de estranhar se Guilherme I, o soberano alemão, não tivesse sido coroado imperador do Segundo Reich na sala dos espelhos do Palácio de Versalhes. Foi uma humilhação excessiva aquela a que os franceses foram submetidos.
Era a consequência da derrota da França na recente guerra com a Prússia. A causa próxima desse conflito fora a candidatura de Leopoldo Hohenzollern ao trono de Espanha. Mais bem preparado, o exército prussiano, deflagrada a guerra em 19 de Julho de 1870, infligiu sucessivas derrotas aos franceses, aprisionou o imperador Napoleão III em Sedan, e em breve cercava Paris. Foi proclamada novamente a República na capital francesa, tomando posse um Governo Provisório de Defesa Nacional presidido por Louis Adolphe Thiers.
Contra a vontade da população, o Governo Provisório iniciou um processo de capitulação da França, desarmando o exército permanente e entregando o armamento aos alemães. Só a Guarda Nacional formada na maior parte por trabalhadores, se manteve operacional. Procurando limpar o vexame a que a França estava a ser submetida, a Guarda Nacional assaltou a prefeitura e expulsou os membros da assembleia-fantoche que se ia instalar em Versalhes. A administração pública de Paris agora se encontrava nas mãos do Comité Central da Guarda Nacional que manteria conversações com Versalhes até 18 de Março, quando Thiers mandou desarmar a Guarda numa operação-relâmpago, executada de surpresa durante a madrugada.
A indignação dos franceses, com estes actos humilhantes a que os vencedores alemães e os seus aliados franceses os submetiam, atingiu o auge em 18 de Março desse ano de 1871 – o povo de Paris ergueu barricadas e alimentou a utopia de criar uma república socialista. Durante cerca de cinco meses a utopia aguentou-se e várias medidas foram tomadas, como veremos adiante, enquanto a Guarda Nacional passou a ser a única força militar permitida em Paris; todos os cidadãos válidos faziam parte da Guarda Nacional.
O governo revolucionário foi formado por uma federação de representantes de bairro. Uma das suas primeiras proclamações foi a “abolição do sistema da escravidão do salário”. O governo oficial, que ainda existia, fugiu, com as tropas que lhe eram leais, e Paris ficou sem autoridade. O Comité Central da federação dos bairros ocupou este vazio de poder, e instalou-se na prefeitura. O comité era formado por membros da Associação Internacional dos Trabalhadores, Proudhonistas e uma miscelânea de indivíduos não-filiados politicamente, a maioria trabalhadores braçais, escritores e artistas.
Foram realizadas eleições obedecendo aos princípios da democracia directa em todos os níveis da administração pública. Noventa representantes foram eleitos, dos quais apenas vinte e cinco eram trabalhadores, sendo os restantes pequeno-burgueses. A polícia foi abolida e substituída pela Guarda Nacional. A educação saiu das mãos da Igreja, foi criada a previdência social estudou-se a abolição da escravidão do salário. Entretanto, os revolucionários eram maioria. Em semanas, a Comuna introduziu mais reformas do que os governos dos dois séculos anteriores. Vejam-se algumas delas:
O trabalho nocturno foi abolido; residências vagas foram ocupadas por desalojados; todos os descontos aos salários foram abolidos; a jornada de trabalho foi reduzida, sendo proposta a de oito horas; os sindicatos foram legalizados. Projectou-se a autogestão das fábricas, não tendo sido possível implantá-la.
Instituiu-se a igualdade entre os sexos; o casamento passou a ser gratuito e simplificado; a pena de morte foi abolida; o cargo de juiz passou a se electivo; o calendário revolucionário foi novamente adoptado; o Estado e a Igreja foram separados; a educação passou a ser gratuita, secular, e obrigatória. Todas as escolas passaram a ser mistas…
A Bandeira Vermelha foi adoptada como símbolo da Unidade Federal da Humanidade; o internacionalismo foi posto em prática: o facto de ser estrangeiro passou a ser irrelevante; o serviço militar obrigatório e o exército regular foram abolidos; todas as finanças foram reorganizadas, incluindo os correios, a assistência pública e os telégrafos. O salário dos professores foi duplicado.
A Alemanha, apoiante do Governo Provisório, libertou prisioneiros franceses da recente guerra para reforçar o exército francês que íria investir contra a Comuna. Foi uma luta desproporcionada. Cem mil soldados do exército contra menos de quinze mil voluntários da Guarda Nacional. Enquanto resistiam, foram destruindo os símbolos do Império napoleónico, edifícios, monumentos e aplicaram a pena capital aos reféns, quase todos padres, juízes e agentes da polícia.
A Comuna executou uma centena de pessoas e provocou novecentas baixas aos adversários. Os soldados do governo de Thiers chacinaram entre cinquenta e oitenta mil pessoas. Aos combates seguiram-se as execuções sumárias. Quarenta mil parisienses foram presos e muitos deles executados. Só pararam as execuções quando o número de cadáveres insepultos fez temer pelo perigo de uma epidemia.
A herança da Comuna de Paris é ainda hoje bem patente nas esquerdas, pois foi a primeira tentativa de instaurar um governo popular assente na democracia directa. As bandeiras vermelhas, o hino «A Internacional», composto em 1888 por Pierre Degeyter, operário anarquista de origem belga que leu um livro de poemas de Eugéne Pottier, operário francês também anarquista, membro da Comuna de Paris, em cuja defesa participou. A principal simbologia das esquerdas vem, pois, desses dias longínquos da Primavera de 1871, em que as cerejeiras floriam, numa, nunca cumprida, promessa de frutos vermelhos…
A propósito: há uns tempos atrás, publiquei aqui um texto dedicado aos serões da província nos tempos da ditadura, ou seja, como é que os antifascistas se reuniam e o que faziam nas suas reuniões sociais. Ouvir discos, se possível proibidos, era uma das formas preferidas de preencher esses serões. Há quarenta anos, a pequena burguesia bem-pensante, era sobretudo francófona. Por isso, Yves Montand, Georges Brassens, Jacques Brel, Jean Ferrat, dominavam esses serões. Uma das canções que quase nunca falhava era Le Temps des cerises, cantada pelo Yves Montand. Vamos ouvi-la:
Le temps des cerises foi composta no ano de 1866 com música de Antoine Renard e letra de Jean-Baptiste Clément. Nesse ano, sob o império de Napoleão III, no horizonte perfilava-se a ameaça da guerra, na qual, quatro anos depois, a Prússia iria humilhar profundamente a França, como vimos.
Após a 2ª Guerra Mundial, Charles Trenet repôs a canção nas bocas de milhares de pessoas. Em 10 de Janeiro de 1996 foi cantada por Barbara Hendricks, durante a homenagem prestada ao presidente socialista François Miterrand na Praça da Bastilha. A interpretação que mais se ouviu em Portugal foi a de Yves Montand.
A maioria das canções de Jean-Baptiste Clément estão hoje esquecidas. Salvo «La Semaine sanglante», escrita explicitamente para homenagear as vítimas dos massacres de Versalhes. No entanto, o carácter menos explícito, mais poético e menos panfletário de «Le Temps des cerises», conservou-a como uma peça intemporal. Chegou até aos nossos dias, carregada da nostalgia de um futuro de fraternidade só vivido pela Humanidade no nebuloso território das utopias.
Comentários Recentes