Um conto da vida de Zé Pequeno (4)

(Continuando)

Com esforço, Zé Pequeno juntou uns quantos Escudos e foi à Vila para comprar tecido. Trouxe três metros de pano e uma caixa de sapatos, arrumados na grade da sua bicicleta, que cuidava de não passar por poças de água ou mau caminho. E pelo caminho encontrou o Toninho de Tiães, seu colega da obra.

“Oh Zé! Prá semana queres ir à festa da Senhora da Saúde?” perguntou com a sua voz grave Toninho, agitando o seu cabelo preto do alto da sua estatura.

“Ai a essa não falto. Levo aqui a encomenda” disse Zé Pequeno batendo ao de leve sobre o embrulho das compras.

Combinaram encontrarem-se no próximo sábado, junto à curva larga da estrada do Lamal. E durante os dias que faltavam, entusiasmavam-se cada vez mais com a ideia de irem à festa.

Zé Pequeno todos os dias apressava o alfaiate a concluir o fato. Fazia as provas de noite à luz da lamparina, frente ao espelho baço em que via a sua imagem reflectida como se fosse um sonho. Ele, Zé Pequeno, vestido de fato, com uma gravata de tecido, que pendia sobre os sapatos pretos brilhantes. Finda a prova, os sapatos voltavam para a caixa e à guarda do alfaiate.

Era sábado e a noite ia-se espalhando, rendendo o dia quente.

Zé Pequeno retirou a sua roupa do embrulho e vestiu-a com mil cuidados. Como não tinha espelho em casa, havia fixado de memória a imagem da última prova que fizera no alfaiate. Saiu de casa empurrando a sua bicicleta, pelo carreiro poeirento. Calçou meias largas de algodão sobre os sapatos, subidas até a meio da canela para não empoeirar a linhagem.

Chegado à estrada, Zé Pequeno tirou a meia da perna esquerda que depois de enrolada guardou no bolso do casaco. Manteve a direita para que a corrente da bicicleta não bulisse e estragasse a calça ou os sapatos. Firmemente pedalou estrada a baixo ao encontro do Toninho.

“Eh Zé, estás todo fidalgo!” comentou.

“Hoje é o dia da minha festa “ disse Zé Pequeno transpirando ansiedade. Desde sempre a Festa da Senhora da Saúde era o momento mais feliz da sua vida. Os arraiais, os ranchos e as cantigas ao desafio, enchiam-lhe o contentamento minhoto. O frenesim da multidão, as modas populares, os jogos e as moças. Era o único momento em que esquecia as agruras e vivia cada segundo como se fosse o último. Havia tempo para viver. E dançava-se.

Os dois lá arribaram à festa. Guardaram as bicicletas junto ao carro da guarda e logo se misturaram na massa popular. Riram e cantaram. Ouviam anedotas e ripostavam com novas. Noite dentro.

Era tempo de mirar o baile, onde os tocadores lá iam compondo as modas ao som das quais toda a gente andava em ordenado corrupio.

Junto a uma improvisada paliçada, duas moças mais atentas do que divertidas abanavam levemente a cabeça ao som da rústica melodia. A cor alva da pele e os cabelos claros e curtos, fez Zé Pequeno abstrair-se da massa dançante e fixar o olhar naquela criatura tão frágil e delicada. Correu os olhos pelo seu vestido pérola em que descansava nos ombros um casaco turquesa tricotado à mão.

Com o cotovelo alertou Toninho: “Olha lá aquelas duas. Vamos pedir uma dança?”.

“Vamos Zé! E tu danças com qual?” perguntou, curioso.

“Com a branquinha” respondeu ao mesmo tempo que se punha em marcha.

Chegaram juntos delas e com especial cuidado de gestos apresentaram-se. As moças, com sorrisos recatados, responderam à cortesia. Trocaram palavras sobre a festa, a música e do calor que fazia.

Por fim, Zé Pequeno tomou a iniciativa e convidou Luísa para dançar. E logo Toninho não perdeu tempo a levar Maria a dar também um pé de dança.

Zé Pequeno estava feliz enquanto deslizava pelo terreiro com aquela criatura tão delicada. Feliz e nervoso. Estava habituado à pedra, à rudeza. Tentou segurar-lhe a mão com cuidado e deixar embalar o seu braço direito encostando ao de leve a sua mão naquele frágil corpo. Luísa agarrava-lhe a mão com firmeza, como se não quisesse largá-lo. E isso fazia-o ainda mais feliz. Zé Pequeno e Luísa dançaram sem parar até o fogo de artifício irromper nos céus e fazer da noite dia. Todos pararam para levantar a cabeça e assistir àquelas explosões de luz e cor, como se estivessem enfeitiçados. Como se vissem naquelas luzes efémeras as suas próprias vidas, esvaindo-se no fumo.

Fazia-se tarde e era hora de voltar. Luísa e Maria tinham um carro à espera na estrada, e logo Zé Pequeno e Toninho ofereceram-se para acompanhá-las. Os quatro caminhavam em linha pelas clareiras que se iam abrindo e num momento de distracção das moças, Toninho piscou o olho a Zé Pequeno e aclarou a voz como se fosse discursar.

“Zé, na segunda temos de ver aquelas contas no escritório. Vejo que nos andam a roubar no ferro” disse Toninho com ar sério e decidido.

Zé Pequeno custava-lhe responder. Havia qualquer coisa que o impedia de falar, de se aliar à história de Toninho. Mas Luísa olhou-o e sentiu que tinha de dizer alguma coisa.

“Pois é. Acho que vamos ter de mudar de fornecedor”. E logo firmou o seu olhar nos desconhecidos que não o ouviram, contando que ninguém o iria censurar.

“Depois desta obra já garanti aquele cliente de Santiago. O dos cavalos” insistiu Toninho.

“Com esse é que vai dar para ganharmos bom dinheiro” respondeu Zé Pequeno, ao mesmo tempo que começava a ganhar o gosto pela farsa. Nunca havia falado assim. Como falavam os grandes senhores das casas muradas.

Luísa sorria ao mesmo tempo que olhava para estrelas, como se fosse para lá que iria regressar. Parecia que era aquela conversa que iluminava o seu sorriso, pelo que Zé Pequeno continuou ao desafio com Toninho.

“Vais ver que este ano ainda vamos comprar uma báscula nova. Vai ser uma ano na ponta da unha” dizia Zé Pequeno embriagado com a sua própria quimera.

Junto à estrada, lá estava um Ford V8 preto com cromados reluzentes, onde um homem de jornal aberto parecia aguardar pelo regresso de alguém.

Luísa despediu-se de Zé Pequeno com um olhar já de saudade.

“Até mais ver” disse Luísa em tom de certeza.

A porta do carro fechou-se pesadamente e pela estrada fora perderam de vista o feitiço.

Zé Pequeno e Toninho riram-se um para o outro sem saberem bem porquê, mas riram-se. De repente parecia que já não havia mais razão para estarem ali, embora não soubessem para onde ir. Acenderam um cigarro do mesmo maço que se findava, partilhando o lume.

“Sabes de quem é aquele carro, ó Zé?” perguntou Toninho com a boca envolta em fumaça. “É do dono da serração de Ribeiro Grande. Aquilo é que é futuro”.

Os dois permaneceram junto à estrada, num longo silêncio que findou com o esmagar dos cigarros. Os sapatos cobertos de poeira pareciam ter perdido o encanto.

“Vamos embora, Toninho. Parecemos dois esteios”.

Montados nas suas bicicletas, lá percorreram a estrada à luz do dínamo. Aquela luz frouxa e periclitante apontava o caminho de regresso. Mas na cabeça de Zé Pequeno continuava o martelar da frase de Toninho “Aquilo é que é futuro”. À sua alegria parecia ter-se misturado a revolta. Não sabia bem porquê e tentava perceber como tinha alinhado na fantasia de Toninho.

Despediram-se na curva larga e Zé Pequeno seguiu pelo carreiro de terra até casa, segurando a bicicleta a seu lado. Nos pés levava as meias que protegiam os sapatos já limpos de pó e as beiras das calças.

Ao caminhar revia vezes sem conta o rosto de Luísa e na sua cabeça alternavam as frases “Até mais ver” e “Aquilo é que é futuro”. Eram como picos que crivavam na sua memória dois sentimentos opostos. Zé Pequeno queria rever Luísa a todo o custo mas o vaticínio de Toninho chocava com o juramento que havia feito das suas mãos. Sentia-se dividido o que não combinava com a sua determinação.

Já deitado na sua cama, começou por impor disciplina a si próprio. Estava determinado a encontrar-se com Luísa, a enfrentar o mundo dela. Os muros de pedra já não eram obstáculo mas tão só o seu medo de quebrar o juramento que havia feito a si próprio. Que força era aquela que o compelia é que não era capaz de perceber. Mas estava decidido: ia encontrar-se com Luísa.

(Continua)

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