
a punição do povo conforme a lei
Retirado do calendário romano em 1963, o Dia de São Valentim continuou, no entanto, a ser o que era: uma instituição para comemorar o dia do amor. Amor que resulta da ligação de duas pessoas que um dia se encontram, olham uma para a outra e ficam mutuamente seduzidas. Subordinadas uma à outra, diria eu. Subjugadas. Subsumidas ou incutidas umas nas outra. Como acontece nesse dia único, em que a mãe vê, pela primeira vez, a criança que acaba de produzir. Em parceria com o homem que, com ela partilha uma paixão. Desta vez, pai e mãe ficam de olhos abertos ao contemplar o resultado da sua paixão, do seu reprodutivo desejo.
São Valentim começa para a criança e os seus progenitores, tal e qual como antes acontecera entre eles e os seus pais. Uma festa reiterada de carinho, cuidados e delicadezas, festa que inclui as correcções que o carinho manda exercer no mais novo, para aprender. Para entender que a vida é São Valentim, mas que, às vezes, e ai dos pais que o não ensinem, pode ser São Bartolomeu.
Bartolomeu, o Apóstolo de Cristo, esfolado e martirizado por manter, teimosamente, as suas ideias. Um São Bartolomeu instituído para rememorar as mortes dos seres humanos às mãos de Católicos Romanos, época do cristianismo huguenote, esse de Paris do Século XVI. Instituição ou memória de que, para se ser humano, é preciso teimar até ao ponto de perder a vida na base dos princípios ensinados, praticados, herdados e recolhidos dos progenitores e dos seus pares.
Valentim e Bartolomeu, uma aparente contradição. E, no entanto, uma continuidade no processo de vida. Na história de vida e da vida de todo o ser humano. Ainda que desejemos que o quotidiano seja uma festa duradoura, ele tem tristezas, provas, desafios, experiências. E ai, mais uma vez, da criança que o não saiba, e que o não saiba pela herança dos seus adultos.
Pia, será a pessoa que acredite que o dia-a-dia é um conjunto de simpatias. Pia, será a pessoa que pense que o processo histórico é uma gargalhada. Pia, será a pessoa que acredite que todo o ser em interacção com ela, é bom e simpático.
Bem como pia é, ainda, pensar que se deve desconfiar de todo o ser em interacção. Sem prova de culpa. Pios, também, os que acreditam, sem provas, no bom e no mau.
No bem e no mal. Essa dupla que se substitui, na realidade, aos Valentins e Bartolomeus de Fevereiro e Agosto, apenas um dia em cada ano. Porque as crianças vivem centenas de dias por ano, durante a sua infância, época de entender o que o adulto sabe. Essa criança que não distingue, por não ter ideias, o Valentim que habita nos outros, sem saber que há muitos Bartolomeus no quotidiano humano.
Duvido imenso, hoje, em qual das duas instituições vivem os mais novos. Não entendo se deve ser o contexto permanente do amor, ou se devem aprender também a suportar a serem esfolados. Duvido, porque na praça pública de hoje, acontece um debate que nos farta, mas que parece ser necessário, para expor ao olhar público o que, naturalmente, se guarda. Inúmeros Bartolomeus que não aparecem nos jornais, nem vão aos tribunais. Como se não houvesse um Código dos Direitos de Infância. Código que está na lei comum. Código criado recentemente pelas Nações Unidas, para proteger os mais novos das formas vândalas de comportamento dos mais velhos. Na praça pública debate-se, hoje, sobre menores abusados. Não sei se dizer ainda bem, já não era sem tempo, finalmente aparece à luz do dia o que já sabíamos desde sempre. E, no entanto, nem por isso estou contente, eu, que tenho escrito diversos textos neste sítio de debate e, invocado esse abuso, em vários dos meus livros.
E porquê, senhor leitor? Por se concentrar a opinião em menores sexualmente abusados, ao que parece, por adultos do exterior da família. E esses abusos do dia-a-dia, quando um pequeno é esbofeteado, quando a filha deve cozinhar e o irmão lê histórias, esse dia trágico do encerramento da fábrica que paga o sustento quotidiano, dos investidores que, sem serem punidos pela lei, reenviam os seus bens para países mais baratos no que concerne ao pagamento da força de trabalho? E os códigos de trabalho que retiram, praticamente, o direito sagrado à greve? E essas empresas que não pagam impostos, porque a carga fiscal é para os indivíduos que trabalham por conta de outrem? E esses Bancos, defendidos pela legislação, em relação aos lucros e interesses cada vez mais altos? Não será o São Bartolomeu das crianças, a falta de trabalho ou de entradas em dinheiro dos seus progenitores? Como pode São Valentim existir para elas, se os seus pais vivem aflitos? Que opina a praça pública? Que desfile se fez, em Portugal, contra a guerra que a todos ameaça?
O São Bartolomeu das crianças começou no dia da subida do IVA, do pão, dos cereais, do fecho das fábricas, da emigração de capitais, também portugueses, para outros sítios. A guerra é preparada nas nossas costas, os nossos senhores assinam convénios e o nosso interesse pela justiça, acaba por cair no rantamplam do menor sexualmente abusado, até ficarmos fartos. Para vivermos, querem eles, um permanente São Valentim. Festa estrangeira, importada pelo comércio que suga os nossos bolsos, como os telemóveis, as casas novas, a roupa de marca (enquanto os lanifícios portugueses da Covilhã fecham), perfumes que gritam, o carro da mulher e do filho mais velho, todos na mesma casa que não tem biblioteca. Um São Bartolomeu do lucro anda a acontecer, enquanto um São Valentim nos é impingido para o inglês – perdão, português, ver. Ver, como é habitual, para o outro lado, para o sítio do barulho e não para o sítio dos factos que fazem, da nossa vida, um São Bartolomeu.
O nosso prazer seria ter um Dia de São Valentim ou, como deve ser, todos os 14 de Fevereiro dum ano qualquer para que a nossa Soberania nos saiba entender e nos permita divertimento ainda em dia de São Bartolomeu.
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