Jaburu, o Flecha Negra

A memória guarda o que verdadeiramente importa? Estamos sentados frente ao mesmo bife grelhado, ele porque precisa da dieta e eu por solidariedade. Aconteceram-lhe muitas coisas nos últimos anos e não é que ele não se lembre delas, claro que se lembra, não pode esquecê-las, mas também não convém lembrá-las todas. Queremos que a conversa seja banal, o banal reconforta, traz-nos a vida de todos os dias, sem os grandes sobressaltos. Eu fico com as batatas fritas, ele com o arroz branco.

O puto, ao lado, explica-nos a sua preocupação, o único cromo que lhe falta na caderneta, o 117. As cadernetas de cromos são boas para ensinar-nos que é possível viver com a incompletude, que se sobrevive à frustração e se pode aprender a apreciar o que é imperfeito. Falta-te um cromo, há-de faltar sempre pelo menos um cromo em todas as cadernetas, paciência, rapaz, é a vida. Anda, pai, come o bife, que tens que fazer subir essa hemoglobina. E de legumes salteados, gostas? Ó mãe, o pai gosta destes legumes? Olhamos todos para ela porque é ela que sabe. O seu nariz franzido diz-nos que nem por isso. Adiante, arroz branco não faz mal a ninguém.

Não estamos só a almoçar, estamos a fornecer-lhe vitaminas, ferro, hidratos de carbono, estamos a  revesti-lo, a armá-lo para a sua batalha de sempre. Encher-lhe-íamos o prato vinte vezes, se pudéssemos. Ocorre-me que nesta família se confia desmesuradamente na comida e no seu poder curativo. Olhamos para este sobrevivente e acreditamos que, se está aqui, deve-o tanto aos fármacos quanto ao queijo da serra. O puto lembra que o cromo que lhe falta é o do Kelvin, o 117. Sabe o nome de todos os jogadores, como sabe lengalengas e a tabuada.  O avô acha graça e faz-lhe uma confissão surpreendente. Há anos que não sabe o nome de todos os jogadores do plantel nem se importa com isso, mas ainda se lembra dos nomes completos do plantel de 1956. E porquê o de 1956?, pergunto. Sei lá, foi o que me ficou.

Fazemos silêncio para ouvir esses nomes que nenhum de nós conhece. Américo Ferreira Lopes. Acúrcio Freire Alves Carrelo, guarda-redes que também foi avançado da equipa de hóquei, e que marcou um golo de baliza a baliza num Beleneses-F.C. do Porto da época de 1957-58. Virgílio Marques Mendes. António Dias Barbosa. José Maria Carvalho Pedroto, que haveria de ser o Zé do Boné. Carlos Domingos Duarte. Jorge de Sousa Mattos, conhecido como Jaburu, o «Flecha Negra». Armando Pereira da Silva. Noé da Silva Castro. António Dias Teixeira. Gastão Alberto Gonçalves. Fernando Júlio Perdigão. E o treinador era o Dorival Yustrich, um disciplinador com fama de duro.

Jaburu em acção (Foto de arquivo: http://paixaopeloporto.blogspot.pt)

Jaburu em acção (Foto de arquivo: http://paixaopeloporto.blogspot.pt)

Fazemos silêncio porque reconhecemos um momento solene quando nos deparamos com um. Sobreviverá algum desses homens? Fico a saber que Jaburu foi um ídolo da época e morreu na miséria, já de regresso ao Brasil. Nunca tinha ouvido falar nele. Não me interessa para nada o Jaburu mas, repara, se tu tivesses morrido da última vez eu nunca saberia quem foi o «Flecha Negra», não saberia que tu conheces de memória o plantel de 1956, e, não o sabendo eu, que sou quem há-de guardar a tua memória, não o saberia ninguém. Ponho-te o bife um pouco neuroticamente no prato, sabes que nesta família acreditamos no poder milagroso da comida, tratamos tudo com sopa de hortos e arroz de feijão, não sei como não saímos todos gordos.

Comemos e metemo-nos uns com uns outros, piadas ligeiras, humor às vezes infantil, que é uma forma de nos fazermos caso sem pieguices. O restaurante é de bairro, o almoço é uma trégua na batalha dos hospitais. Não, tem paciência mas não podes comer batatas fritas, olha que também não perdes grande coisa, estão duras e não sabem a nada. O bife é bom, por acaso.

José Maria Pedroto tornou-se uma figura lendária no clube e na cidade, mas Jaburu, o «Flecha Negra», acabou os dias como sem-abrigo no Rio de Janeiro. 1956 foi um ano como outro qualquer mas foi o que sobreviveu na tua memória por mais tempo. Hoje era para ter sido dia de angústia e olha, estamos todos a almoçar. Falta um cromo na caderneta e há-de continuar a faltar, é mesmo assim. Enchemos os copos com água, por solidariedade, e podíamos brindar à memória tortuosa, inexplicável, que escolhe caprichosamente o que guardar. Mas nem isso fazemos, para quê?, sabemos que também o dia de hoje há-de guardar-se, e com ele o inesperado Jaburu, o Flecha Negra, que morreu, diz a internet, em data não registada pela imprensa.

Comments

  1. Foste portadora de histórias e memórias da minha infância.
    Vi, no Restelo, o golo do Acúrsio ao José Pereira, guarda-redes do Belenenses e mais tarde da famosa Selecção do Mundial de 1966.
    Pedroto jogou no Belenenses antes de se transferir para o FCP – foi a transferência mais elevada da época, 400 contos salvo erro.
    Jaburu, um ‘negão’ avançado possante, morreu como dizes na miséria no Rio de Janeiro. Desperdiçou tudo o que ganhou e o alcoolismo atirou-o para a rua.
    Achei piada ter sido tu, jovem menina, a trazer aqui estas histórias que, no final de contas, partilho na memória com o teu Pai. As melhoras dele!

  2. Parei, não de paralisar, mas de arredar os freios do pensamento que por este texto se deteve, indo, sem dele sair.
    Obrigado por mais este, Carla.

  3. Carlita, voltei a ler este ‘post’ que me atira para memórias do passado futebolístico, bem mais romântico e humano. Além dos nomes que citaste, há um outro que foi um dos melhores médios de todos os tempos. Jogou nos tempos do Acúrsio e chamava-se Hernâni. Lê isto:
    http://www.record.xl.pt/Futebol/Nacional/1a_liga/Porto/interior.aspx?content_id=77548

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