Postcards from London #1

esta claridade obscura que escorre das estrelas*

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hei-de sempre lamentar que a humanidade não tenha ainda descoberto o teletransporte, como nas séries que via em miúda, por exemplo, ‘espaço 1999’, em que as pessoas demoravam segundos a mudar de planeta. era um tempo, aquele em que eu era miúda, em que ninguém que (me) importava tinha morrido. nem sequer eu vez nenhuma ainda, e em que 1999 parecia um futuro tão longínquo, que ía demorar séculos – e não décadas – a chegar. na escola eu fazia frequentemente de doutora helen devido ao meu corte de cabelo. havia outra miúda que fazia de maya habitualmente e eu, apesar de admirar a doutora helen e de com ela partilhar o corte de cabelo, por vezes chateava-me porque, claro, quem tinha os olhos verdes era eu e não a outra miúda.
isto nada tem a ver com londres, ou terá tudo. por um lado, ainda ninguém inventou o teletransporte e tendo saído de casa às três da tarde, entrei no número 83 de gower street apenas às onze da noite. por outro lado, quando eu era miúda e via o ‘espaço 1999’ era, genericamente, feliz. tal como sempre fui em londres desde há muitos anos. a primeira vez era tão nova, ía a caminho da irlanda, com o meu cabelo muito curto, já nada parecida com a doutora helen, os meus óculos redondos e a minha solidão menos desejada que hoje, é verdade, mas ainda assim, agradável. das outras vezes tive sempre companhia. a mesma, algumas vezes. outra, diferente de muitas maneiras, da última vez, já lá vão quase seis anos. fui sempre feliz em londres. e não é verdade que não podemos voltar, ou não devemos, aos lugares onde já fomos felizes. devemos. e é bom que possamos. voltar a todos os lugares, de certo modo familiares. não digo caseiros, mas aqueles lugares onde nos movemos razoavelmente bem, como em casa de um amigo que só às vezes visitamos.
dois comboios. um táxi. um avião. o metro. os pés. arrasto a mala por tanto meio de transporte, a tarde inteira. a noite inteira. quando chego a liverpool station, na barreira da saída percebo que não sei do bilhete. o homem da barreira pede-mo e eu esvazio o conteúdo da mala à frente dele… a carteira, os óculos, o maço de tabaco, a bolsa dos cosméticos que não uso quase nunca, a agenda, o moleskine fininho e cosido que me deram há uns anos e eu resisti a usar para não o estragar (é cosido, como agora já não são, com pontos em toda a extensão da lombada fina) um lápis, uma caneta, dois isqueiros, o bilhete de avião, o mail com a morada do hotel, um chapéu de chuva, o livro que estou quase a acabar, as chaves de casa, a pen, papelitos… reviro também a carteira. mostro-lhe o bilhete de regresso (comprado ao mesmo tempo que aquele que perdi) e o homem olha-o e depois olha para mim que lhe digo… ‘i guess you will have to take my word, i’m afraid is the only thing i have now’… o homem ri-se… e diz que sim, que aceita a minha palavra. eu que passe e da próxima vez que guarde o bilhete. antes do metro, ali mesmo em frente, subo à rua, para respirar fundo. de alívio por ter uma palavra que ainda vale alguma coisa. a eterna confusão de londres abre-se à minha frente. gente, autocarros de dois andares, mais gente, skates, sacos, lixo. um corropio de coisas, o costume. é agradável. desço ao metro. o senhor da bilheteira trata-me por ‘darling’ duas vezes. quando chego a euston square e saio, não entendo logo a gower street que se abre inteira à minha frente e pergunto a um casal que não sabe… mas o homem que vem atrás dele pergunta-me o que procuro… digo gower street, ele abre os braços e estende a rua como que para eu passar dizendo duas ou três vezes ‘darling’ ou ‘my darling’. gosto desta mania que têm os britânicos, de nos tratarem por ‘darling’ ou ‘love’ e contente avanço pela gower street, passo os belos edíficios da university college of london e ali está o hotel. pequeno, amoroso. abro o cofre noturno seguindo as instruções recebidas por email. eis as chaves. entro e pouso as malas. saio para comer, são 23h. os pubs servem as últimas bebidas, comida já não há. na tottenham court road encontro um subway aberto. peço uma sandes, um sumo. a menina – darling – traz-me uma cadeira e diz que me sente, apesar de já não se poder comer no interior. agradeço-lhe muito. pergunta-me se sou francesa. não, digo eu, mas tenho pena. gosta de portugal, diz ela. é tudo tão barato e acolhedor. na verdade, hoje podia ser portuguesa, foi tão simpática comigo. ri-se. saio e está frio. e húmido. refaço o caminho até ao hotel. a pensar que raio de cidade. tão grande, tão cosmopolita, mas onde dificilmente se come ou se bebe um copo depois das 23h. não é que eu quisesse um copo. hoje não. estou cansada do teletransporte pré-espaço 1999, que durou ‘só’ oito horas no total. e ainda me sinto desmaterializada.
sento-me uns minutos nos degraus do hotel. fumo, troco umas palavras com alguém com quem nunca estive em lado nenhum que merecesse teletransporte, a não ser no coração, esse lugar onde tantas vezes deixamos de ser matéria. subo as escadas alcatifadas. entro no meu pequeno quarto também alcatifado. lembro-me que detesto também isto no reino unido… as alcatifas em todo o lado. reparo em duas ou três manchas no chão. suspiro. o resto parece-me limpo, incluíndo a minúscula casa de banho. está quentinho. abro a janela. tiro uma fotografia ao que está em frente e fica horrível. aplico-lhe um efeito qualquer, continua horrível. tomo banho na minúscula casa de banho. penso que amanhã vou à tate. às duas. mas especialmente à tate britain ver os quadros do kiefer. foi lá que me apaixonei, há tantos anos, pela pintura telúrica deste homem, partilhando as mãos, a descoberta e o entusiasmo, com alguém que já não vive. alguém que se teletransportou para o meio das estrelas, como num quadro de kiefer. londres. frio. ‘cette obscure clarté qui tombe des étoiles’*

*título de um quadro de kiefer que, certamente, verei amanhã.

Comments

  1. Gosto destes passeios interiores.

  2. Maquiavel says:

    No Espaco 1999 o transporte era “à antiga”, por naves.
    Onde havia teletransporte era no Caminho das Estrelas!
    Aiaiaiaiaiaiai!

  3. ups… a minha memória já não é o que era Maquiavel… troquei as estações espaciais. Obrigada

  4. Obrigada mfc. 🙂

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