Éramos humanos espalhados pelo Norte de África, pelo Médio Oriente, pela África a sul, que viviam sem que os humanos doutros continentes o soubessem. A noite dos séculos foi rasgada por uns homens que chegaram até nós em barcos, munidos de lanças e de fuzis. De repente, eles souberam de nós. E nós soubemos que havia outro mundo e outras gentes. Eles vinham vestidos, nós estávamos nus. Sem pedirem licença para ficar, eles ficaram. Tivemos medo e eles fizeram de nós servos. Noutros lugares havia humanos com civilizações antigas. Tiveram curiosidade e desejaram negociar. Acabaram dominados. Os novos senhores descobriram as riquezas do subsolo e provaram que eles é que sabiam extraí-las, não nós. Os minerais valiosos eram metidos em barcos e levados para onde a riqueza entendia a riqueza. Nós ficámos calados perante tanta superioridade. Tudo quanto quiseram, levaram. Nós continuámos descalços, semi-nus e sujos. Lá longe, onde a riqueza entendia a riqueza, bebiam café, punham açúcar, bebiam cacau, faziam chocolates finos, inventavam a mais requintada doçaria, tornavam a sua gastronomia mais apetecível com as nossas especiarias, e por isso todo um comércio milionário foi erguido entre países. Um dia concluíram que precisavam dos nossos braços para trabalhar noutras terras, as da América, ao norte e ao sul. Fomos arrebanhados como gado e metidos em porões de navios, com grilhetas nos pés. Escreveram, com chicote e sangue, a grande tragédia da escravatura. Sofrimento intolerável que levou os escravos a ousarem a revolta. Finalmente, veio a alforria, conquistada com a maior dor. Fomos andando na vida e no mundo, aprendemos a ler, e percebemos por que, em alguns lugares, não nos deixavam ir mais além no saber, nos reduziam à marginalidade. Viver com o racismo passou a ser a regra.
Malfadado o dia em que descobriram petróleo nas nossas terras. Tudo ficou sujo como o óleo, as mãos, as almas, as consciências. Os donos da riqueza que entende a riqueza competiram entre si, de forma selvagem. Para terem petróleo, quantas vezes nos impuseram ditadores vendidos a eles. Vieram as secas, as inundações, as fomes, as doenças. Os nossos que tinham fugido para a onde a riqueza entende a riqueza, contavam-nos a verdade. Alguns maometanos desonestos aproveitaram para se alcandorarem em salvadores e partiram para o terrorismo e a luta armada. Ébrios de poder e violência, mataram quem não estava de acordo, quem não queria converter-se ao inferno que eles propunham. Raptaram as nossas mulheres e venderam-nas como gado para a prostituição e a escravatura. Os ditadores acabaram um a um, em charcos de sangue. Foram substituídos por fantoches da riqueza que entende a riqueza que, fracos e venais, saudaram os bombardeamentos como um maná. Empilhavam-se os cadáveres de homens, mulheres e crianças. Os novos donos e seus próximos enchiam os bolsos de milhões sujos que iam lavar sob a forma de investimento em países caídos em mãos de aventureiros sem escrúpulos.
A nossa vida passou a ser a guerra feita pelos senhores do poder em nossos lugares, mas com armas fornecidas pelos senhores daqueles países onde a riqueza entende a riqueza. Nada mais passou a fazer sentido. Pegámos na família, nas trouxas, no último dinheiro que nos restava e acreditámos nos passadores que nos prometiam a Europa. Fomos abandonados em barcos precários. Muitos milhares morreram afogados no Mediterrâneo, depois de terem atravessado países a pé, sem desfalecimento. Primeiro alcançámos a Itália e a Grécia, e pudemos ver que são países em dificuldades mas que, ainda assim, nos deram do pouco que podiam dar. Deixaram-nos passar para outros países, pois queríamos ficar na Alemanha, de que nos tinham falado como país muito forte e muito rico. E, quem sabe, a Suécia, a Noruega, pela mesma razão. Mas atravessámos países em que fomos tratados como cães vadios. E quando pensámos que a União Europeia era um bastião de força, tolerância e solidariedade, deparámo-nos com a fria realidade da estupefacção, da confusão, das reuniões que não resolvem nada. Agora, só falta descobrirmos se somos demais e se somos a mais.
Nunca pedimos a ninguém que nos descobrisse. Não fomos nós que introduzimos a exploração, a corrupção e a guerra. Demos tudo ao mundo. E o mundo comporta-se desta maneira. Impõe-se a pergunta nesta hora do nosso tão grande calvário: mundo, que te fizemos nós? Que mal te fizemos?
Já cá faltava uma idealização paradisíaca dos povos não europeus, muito new age.
“Não fomos nós que introduzimos a exploração, a corrupção e a guerra …”. Nem pensar que havia dessas coisas na África, na Ásia e na América antes da chegada do cara pálida.
Bem me parecia que o culpado disto tudo foi o Vasco da Gama.