Um banho de realidade

Temos novos santos, temos velhos santos e até heróis verdadeiros. Somos imensamente bons, vivemos num país belíssimo, seguro o bastante (até ver) e, numa escala apreciável, materialmente (estou a ser benévolo) indigente.

Efectivamente, de acordo com os últimos dados do INE, mais de 25% da população residente em Portugal no ano de 2016 – cerca de 2,6 milhões de pessoas – estava em risco de pobreza ou de exclusão social.

Para a aferição deste risco definiu-se, no âmbito da estratégia económica de crescimento (estratégia Europa 2020), um indicador relativo à população em risco de pobreza ou exclusão social que conjuga os conceitos de risco de pobreza relativa – pessoas com rendimentos anuais por adulto inferior ao limiar de pobreza – e de privação material severa, com o conceito de intensidade laboral per capita muito reduzida.

Considera-se no limiar da pobreza o cidadão europeu que não obtenha 60% do rendimento médio por adulto equivalente no seu país, correspondendo a proporção dos que não atingem esse limiar à taxa de risco de pobreza.

Sem querer retomar agora a discussão sobre se é legítimo padronizar desta forma a pobreza, introduzindo uma medida da qualidade de vida das pessoas que não leva em devida conta o custo de vida de cada país – uma vez que o rendimento médio pode, como sucede em Portugal, indiciar já a carência dos recursos financeiros necessários para assegurar aquela qualidade de vida, visto ser muito inferior ao rendimento médio, não dos países mais ricos da Europa, mas da média dos países da UE a 28 -, o facto é que mesmo os dados assim obtidos são de tal modo graves e socialmente insuportáveis que não podem deixar de requerer uma permanente e consequente mobilização política e social contra a pobreza.

Para termos uma ideia, os últimos resultados disponíveis na União Europeia, relativos ao ano de 2014, indicavam que o rendimento médio por adulto em Portugal (8 435€) era quase metade (52%) do rendimento médio por adulto na UE-28 (16 153€). E que para a população em risco de pobreza esse resultado ainda se agravava mais, uma vez que o rendimento médio da população em risco de pobreza em Portugal (3 591€) correspondia a metade (50%) do rendimento médio da população da UE equivalente (7 113€).

Em termos muito simples, uma pessoa pobre em Portugal é duas vezes mais pobre do que a média das pessoas pobres dos 28 países da União Europeia, o que ainda ultrapassa a diferença entre rendimentos médios de portugueses e restantes europeus, que é de 48%. 

Em 2016, de acordo com o Inquérito às Condições de Vida e Rendimento EU-SILC, a taxa de risco de pobreza (pobreza relativa) após transferências sociais era, em Portugal, de 19% da população.

O conceito de privação material severa corresponde à proporção da população em que se verificam pelo menos quatro das seguintes nove dificuldades:

a) Sem capacidade para assegurar o pagamento imediato de uma despesa inesperada próxima do valor mensal da linha de pobreza (sem recorrer a empréstimo);

b) Sem capacidade para pagar uma semana de férias, por ano, fora de casa, suportando a despesa de alojamento e viagem para todos os membros do agregado;

c) Atraso, motivado por dificuldades económicas, em algum dos pagamentos regulares relativos a rendas, prestações de crédito ou despesas correntes da residência principal, ou outras despesas não relacionadas com a residência principal;

d) Sem capacidade financeira para ter uma refeição de carne ou de peixe (ou equivalente vegetariano), pelo menos de 2 em 2 dias;

e) Sem capacidade financeira para manter a casa adequadamente aquecida;

f) Sem disponibilidade de máquina de lavar roupa por dificuldades económicas;

g) Sem disponibilidade de televisão a cores por dificuldades económicas;

h) Sem disponibilidade de telefone fixo ou telemóvel, por dificuldades económicas;

i) Sem disponibilidade de automóvel (ligeiro de passageiros ou misto) por dificuldades económicas.

Em 2016, de acordo com o Inquérito acima referido, estavam em situação de privação material severa 8,4% da população portuguesa.

No ano passado, eram ainda, por exemplo, 47,2% os portugueses que não podiam pagar uma semana de férias fora de casa (51,3% em 2015), 38,3% os que não tinham condições para fazer o pagamento imediato de uma despesa sem recorrer a empréstimo (40,7% em 2015), 22,5% os que não conseguiram manter a casa adequadamente aquecida (23,8% em 2015) e 9,3% com atraso em pagamentos de rendas, encargos ou despesas correntes (contra 10,1% em 2015).

Consideram-se em intensidade laboral per capita muito reduzida todos os indivíduos com menos de 60 anos que, no período de referência do rendimento, viviam em agregados familiares em que os adultos entre os 18 e os 59 anos (excluindo estudantes) trabalharam em média menos de 20% do tempo de trabalho possível.

Em 2016, ainda segundo o mencionado Inquérito, a “intensidade laboral per capita muito reduzida” atingia 9,1% da população portuguesa.

Em suma, a população em risco de pobreza ou exclusão social era em 2016 de 25,1%.

Todos estes dados estão disponíveis num PDF que pode ser encontrado aqui.

Poder-se-ia salientar que este número representa menos 1,5% do que no ano anterior e menos 2,4% do que em 2014 e 2013, o que daria uma indicação positiva do caminho feito pelo actual Governo para reduzir a pobreza em Portugal de acordo com padrões de desenvolvimento mínimos.

Simplesmente, depois da hecatombe civilizacional provocada pelo anterior Governo, alimentado por uma explosiva mistura de ignorância, incompetência, estupidez e teimosia, em que o empobrecimento era o único desígnio estratégico visível, várias vezes anunciado e louvado, e o salve-se quem puder a palavra de ordem, numa demonstração de insensibilidade social para além de salazarista, depois de tal miséria protagonizada por quem insiste no consumo destrambelhado daquela mistura, a situação da pobreza em Portugal exige uma recomposição das prioridades do actual Governo no sentido da urgente assumpção de uma verdadeira estratégia nacional de intenso e permanente combate às suas causas e manifestações e não com meros paliativos.

 

Comments

  1. ganda nóia says:

    não deixa de ser verdade que esse número de 25,1% representa uma descida face aos anteriores 26,6%, medidos com os mesmos criterios ha um ano.

    • jpfigueiredo says:

      Sim, é o que se diz no texto. É bom e quer dizer alguma coisa mas é muito pouco para pelo menos 2,6 milhões de pessoas, 1/4 da população portuguesa.

  2. Esse argumento poderá aplicar-se sempre seja qual for o número de pessoas abrangidas, não é?

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