Carla Castelo: A Liberdade que nos falta

(Carla Castelo, Consultora na área da Comunicação e Ambiente,Co-Fundadora do Movimento de Cidadãos Evoluir Oeiras e ex-jornalista da SIC)

 

Memória de Abril sempre

Quantas vezes cantei “Uma gaivota, voava, voava (…) Como ela, somos livres (…)”
Em correrias de miúdos à solta
Numa azinhaga de pó entre prédios e campo?
Eram tempos em que nada sabia do inverno da ditadura
E me parecia que seria primavera todo o ano
Desse tempo, guardo o vermelho das papoilas sopradas pelo vento
Na encosta que se estendia para lá da via rápida
E a sensação de que, se quisesse,
Poderia correr para sempre seara adentro
Num voo rasante até ao mar.

 

Ainda não tinha 4 anos quando aconteceu o 25 de abril e só muito mais tarde compreendi o significado do dia, de tudo o que ficava para trás, permanecendo como um pesado legado, e do caminho que então se abriu. Mas tenho várias memórias das discussões políticas que me escapavam, e da efervescência que se viveu naquela segunda metade da década em que nasci. Lembro-me das passeatas com outros miúdos em que cantávamos e celebrávamos qualquer coisa que para nós era apenas o presente de correria e de brincadeira na rua.

Tendo crescido numa família patriarcal, a ideia de liberdade começou por ser para mim um ideal de autodeterminação. Poder fazer o que quisesse e com quem quisesse, sem dar satisfações a ninguém. Ser dona de mim, do meu corpo, das minhas opiniões, da minha forma de ser e de estar. Décadas depois, o meu ideal de liberdade foi-se ampliando, muito para lá de mim própria e das minhas irmãs, às outras mulheres, às pessoas LGBT, negras e ciganas, e a toda a comunidade da Terra, que inclui seres vivos e ecossistemas. A comunidade ética da Terra de que fala Aldo Leopold (A Sand County Almanac) e o alargamento da consciência social que passa a ser também uma consciência ecológica.

Liberdade é hoje para mim um pilar essencial do desenvolvimento, em Portugal, ou em qualquer lugar deste planeta que habitamos, como defende o economista Amartya Sen (Desenvolvimento Como Liberdade). Continuamos a ser instruídos na ideia de que o desenvolvimento se mede em Produto Interno Bruto, em rendimento per capita, escolhendo não ver as condições de privação de liberdade que são a pobreza, a precariedade laboral, as desigualdades sociais, a degradação ambiental, da saúde e da qualidade de vida, a falta de democraticidade e de envolvimento dos cidadãos na discussão pública sobre questões fundamentais para as suas vidas.

Hoje a liberdade está intimamente ligada à mudança transformacional de que precisamos, que passa por um novo modelo de desenvolvimento, a começar pela mudança de fontes de energia (abandonando os combustíveis fósseis), mas que não pode ficar por aí. Exige  muito trabalho de diálogo e de cooperação, investigação científica/produção de conhecimento e criatividade, a nível local, nacional e global.

Cada vez mais, é preciso discutir como queremos viver e que herança queremos deixar às próximas gerações, e promover um desenvolvimento assente na valorização do ambiente, da educação, da cidadania e da transparência.  

Perante o problema quase endémico na sociedade portuguesa da corrupção, que tem levado à desconfiança em relação à classe política e ao afastamento dos cidadãos relativamente à política partidária, que se tem traduzido em taxas de abstenção elevadas nas eleições, defender a liberdade é estar disponível para participar e trazer outros amigos também, procurando envolver mais pessoas na participação cívica e política em defesa do interesse público.

Perante as ameaças que crescem, também na sociedade portuguesa, do populismo, do ódio, do racismo e da xenofobia, é cada vez mais importante afirmar liberdade e igualdade como valores inseparáveis, que temos de continuar a defender, porque a liberdade é uma luta constante, como diz Angela Davis. 

Perante a pandemia, e outras crises sanitárias que se lhe poderão seguir, perante a crise global do ambiente, que inclui a crise climática, e perante as consequências sociais e económicas desiguais que comportam, colocando quem menos tem numa posição de ainda maior fragilidade, é preciso mudar de paradigma e exigir a liberdade que nos continua a faltar enquanto coletivo, uma liberdade que é também justiça ambiental e social, base do desenvolvimento humano e que não se pode reduzir à lógica do mercado. 

 

Comments

  1. Tal & Qual says:

    Coitada !
    Tanto escreveu e não disse nada …

  2. Miguel Leão says:

    Muito bom, tudo dito, Carla Castelo!