A realidade tal como ela é

Rui Naldinho

Achar-se que o eleitor português na hora de decidir o seu voto olharia para as questões de carácter, do comportamento ético e moral dos políticos à teia de interesses familiares que se desenvolvem no seio do poder, como um dos factores determinantes na sua escolha, é um erro. Desenganem-se portanto os que pensaram que o acidente com o automóvel onde seguia o Eduardo Cabrita, ou a borla fiscal à EDP, entre outras minudências, iriam mudar o sentido de voto de um número significativo de eleitores. Isso até poderá ser válido em países com elevados rendimentos por habitante, ou com um nível de formação académica muito acima da média, como alguns países do Norte e Centro da Europa, mas nunca em países pobres e com assimetrias regionais e sociais tão grandes como o nosso. O importante é que os problemas mais básicos do cidadão sejam resolvidos em conformidade com as suas expectativas, já de si baixas. O salário, o transporte público utilizado todos os dias ou com frequência, os livros escolares para os filhos, as creches, os lares da terceira idade, a escola pública, o Serviço Nacional de Saúde.

Nada disto são luxos. Chama-se dignidade. O PS conseguiu esses mínimos, ainda que sob pressão de terceiros, e recolheu os louros para si.

Estas eleições vieram demonstrar mais do que o voto útil, existir uma maioria de portugueses que não está minimamente disponível para assistir ao desmantelamento do pouco que ainda nos resta do Estado Social. Quem não perceber isto e mantiver aquele discurso ambíguo como teve o PSD, vai ficar muito tempo à espera até se sentar de novo na cadeira do poder.

Estas eleições eram desnecessárias, reconheça-se com humildade democrática. Chumbar um orçamento claramente de centro esquerda, mesmo que pouco ousado, numa altura em que o país ainda se debate com uma pandemia, foi um erro. Por muitas razões que assistam aos ex-parceiros do PS no governo, PCP e BE, na recuperação dos direitos laborais sonegados pelo PSD/CDS no tempo da Troica, há um tempo para tudo. Ficou claro que não seria esta a melhor altura para o fazerem.

Estas eleições também demonstraram aquilo que para muita gente era impensável. António Costa também sabe secar tudo à sua volta. Mesmo com uma campanha desastrada. O factor medo foi explorado até ao último minuto e surtiu efeito no eleitorado de esquerda. O medo da troica parece sobressair no subconsciente dos portugueses em contraponto com o legado socrático que parece tender para o esquecimento. Quem achar que a política é para moralistas ou fabricadores de casos, pode tirar o cavalinho da chuva. A começar logo pela Comunicação Social.

Por fim, o Presidente da República. Ou António Costa possuiu-o com alguma mezinha, ou o mais alto magistrado da Nação não tem a mínima noção do que anda a fazer. Marcelo está hoje na mesma posição em que Mário Soares se encontrava há mais de trinta anos, quando dissolveu a Assembleia da República e originou a primeira maioria absoluta de Cavaco Silva. Se não era essa a sua intenção, consegui-o. Se queria espetar a faca em Costa e dar a mão ao PSD, tramou-se. Agora está refém dele, e pode acabar o mandato da mesma maneira como acabou Cavaco Silva. A engolir sapos.

Comments

  1. Carlos Araújo Alves says:

    Muito bem, Rui Naldinho, mesmo não estando de acordo com tudo.
    Saliento a argúcia de constatar que Marcelo se encontraa na mesma posição de Mário Soares, a engolir sapos.
    É verdade, sem tirar nem pôr!

  2. Paulo Marques says:

    “Ficou claro que não seria esta a melhor altura para o fazerem.”

    Ok, mas fico sem saber qual seria essa altura. Depois de ficar associado a uma espalhafatosa bazuca que não vai resolver nada de fundamental?

    • Rui Naldinho says:

      Paulo, tu és uma pessoa informada e atenta.
      Quando há dois anos o PR avisou António Costa que se deixasse de ensaiar uma crise política, isto na altura em que se negociava o Orçamento de 2021, porque não convocaria eleições antecipadas, informando tudo e todos, que os partidos tinham de se entender, a começar pelos herdeiros da Geringonça, entretanto extinta no papel, António Costa não teve outra alternativa senão negociar com os antigos parceiros, sob pena de ficar pressionado por uma guerrilha institucional com Marcelo.
      Quando no ano passado, Marcelo dá uma entrevista à RTP, afirmando que a “experiência demonstrava que após uma grave crise económica, pandémica, uma guerra prolongada com efeitos sociais nefastos, o partido no poder ressente-se, e acaba por emergir uma nova alternativa”, percepcionava-se que Marcelo Rebelo de Sousa se preparava para esticar a corda ao Governo e ao PS.
      O tiro saiu pela culatra a Marcelo. O BE e o PCP foram no engodo e tramaram-se.

      • Rui Naldinho says:

        Nessa entrevista, se não me falha a memória, até deu o exemplo de Churchill.

      • Paulo Marques says:

        E qual seria a altura?
        A queda era inevitável. Já uma campanha em que não fossem capazes de enunciar os ganhos e esclarecer futuras possibilidades foi uma escolha. Então a obsessão pela negatividade por parte do BE é um erro repetido demasiadas vezes.

  3. JgMenos says:

    «Chama-se dignidade»

    O uso e abuso que se dá de palavra que a tantos é alheia!
    Faz-me lembrar o equivalente ‘dar o nosso melhor’.

    • POIS! says:

      Pois é!

      Abusam outros do que nem um pingo calha a Vosselência! Que injustiça!

      Sinais dos tempos!

    • POIS! says:

      Pois, e já que Vosselência encheu a boca com a “dignidade”…

      Lembro a Vosselência que ainda não se retratou de uma patranha que inventou ou, simplesmente, ajudou a difundir: Foi esta, cito (entre parêntesis retos, para não haver confusão):

      Dizia “Menos”:

      [«Racismo (Ventura foi recentemente condenado pelo Supremo por segregação racial)»

      VIGARISTA!

      O que o Supremo fez foi anular a parte da sentença de primeira estância que referia uma qualquer componente racista”].

      A minha resposta foi esta:

      Olhe que, segundo consta, o Supremo não anulou coisa nenhuma!

      Nem da primeira INSTÂNCIA, nem da Relação.

      Em primeiro lugar, porque o Supremo indeferiu o recurso por falta de requisitos processuais, não se pronunciando sobre a parte relativa ao tratamento discriminatório que tinha motivado as condenações em primeira e em segunda INSTÂNCIAS.

      Em segundo, porque até nem foi a primeira INSTÂNCIA que deu relevância ao tratamento discriminatório em função da cor da pele.

      Na realidade, foi a Relação. Cita-se:

      “Aceita-se a opção assumida pelo tribunal a quo na medida em que as imputadas, e reconhecidas, ofensas à honra e ao direito de imagem dos autores, por um lado, absorvem a vertente discriminatória em função da cor da pele e da situação socioeconómica dos autores e, por outro, tal autonomização não é essencial para efeitos de subsunção jurídica”

      Ou seja: reconhece a Relação que há uma ofensa discriminatória em função da cor da pele, mas a sua autonomização não é essencial (até que não se trata de matéria criminal, comentário meu) e tudo o resto é suficiente para justificar a condenação por ofensas aos direitos de personalidade dos queixosos, a partir do momento em que essas mesmas ofensas sejam reconhecidas. E foram!

      Que eu saiba, a sentença não está acessível, mas não tenho motivos para duvidar do que está aqui:

      https://poligrafo.sapo.pt/fact-check/andre-ventura-foi-condenado-com-transito-em-julgado-por-racismo-como-disse-catarina-martins

      Fim de citação.

      E acrescentei:

      “Vosselência, ó Menos, não estranha que o Venturoso Quarto Pastorinho Enviado nunca tenha divulgado os acórdãos por sua própria iniciativa?

      Nem depois das acusações de que foi alvo cara a cara?

      Para Vosselência não é estranho?

      Bem sei que a coisa exige mais que uma fotocópia, mas mesmo assim…”

      Então, Herr menos? Nada a dizer?

      Ai a “dignidade”…


      • Está enganado. Em primeiro lugar, não existe crime de “segregação racial”, pelo que o Ventura nunca podia ser condenado por “segregação racial”. O Ventura foi condenação por difamação. O acórdão da Relação, que confirma a sentença da primeira instância, e não foi alterado (como diz bem, o recurso para o STJ não foi conhecido), considera que Ventura e o Chega (cito) “utilizaram a fotografia como arma de segregação social” sendo que a expressão foi, sucessivamente, adulterada na imprensa (que, depois, foi usada para corroborar os “Polígrafos”). Se tem dúvidas, o acórdão está disponível no site da DGSI, em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/0e71bdbb89eaa24a8025876000400276?OpenDocument. Estou-me a cagar para o Ventura, mas é triste ver confirmada aquela tese do Goebbels de que uma mentira repetida muitas vezes passa a ser verdade.

        • Rui SiLva says:

          Se há alguém parecido com o Goebbels, ele chama-se André Ventura.

        • POIS! says:

          Pois enganado…

          Estará o senhor. Eu não falei em crimes. E muito menos no tal de “segregação racial”. Que não existe. E que, mesmo que existisse, exigiria outro tipo de conduta ilícita, certamente.

          E não adulterei expressão nenhuma. Citei o que estava no “Polígrafo” entre aspas. E que confere com a sentença.

          Tratou-se de um processo cível. De Tutela da Personalidade. Compreendido desde o início.

          E o link, que agradeço, refere-se à sentença da Relação. Eu referia-me à falta de divulgação do acórdão do Supremo que, segundo Sua Excelência Distinta Aventesma JgMenos “anulava” decisões da primeira instância.

          Cite-se então o acordão para que remete:

          “Daqui resulta que a questão atinente ao alegado cariz discriminatório das ofensas imputadas aos réus, em função da cor da pele e da situação socioeconómica dos autores, foi expressamente analisada pelo tribunal a quo, tendo o mesmo entendido que não era essencial/necessária a inclusão de tal questão/qualificativo no dispositivo.
          Aceita-se a opção assumida pelo tribunal a quo na medida em que as imputadas, e reconhecidas, ofensas à honra e ao direito de imagem dos autores, por um lado, absorvem a vertente discriminatória em função da cor da pele e da situação socioeconómica dos autores e, por outro, tal autonomização não é essencial para efeitos de subsunção jurídica (cf. Artigos 26º, nº1, da CRP e Artigos 70º e 79º do Código Civil)”.

          “Com efeito, o 1º réu instrumentalizou a fotografia para nela personificar todos os portugueses que, no seu entender, não são “de bem”, aqui incluindo os traficantes de droga, os pedófilos, os que vivem à conta do Estado, os que têm esquemas de sobrevivência paralelos (cf. factos 15 e 16). Os réus utilizaram a fotografia como arma de segregação social enquanto os autores, ao consentirem na sua captura, visaram dar expressão a um evento (visita do Presidente da República) potenciador da inclusão social dos autores e demais habitantes do Bairro ( cf. factos 1 a 3, 12, 14). Convém lembrar, novamente, que Portugal é uma república soberana baseada na dignidade da pessoa humana, tendo todos os cidadãos a mesma dignidade social e não podendo ser prejudicados pela raça, situação económica ou condição social (cf. Artigos 1º e 13º, nos. 1 e 2, da Constituição)”.

          A questão é: isto foi “anulado”? “Pelo Supremo”?

          Foi a isso que respondi. Mais nada.


          • Escrevi no comentário que tinha razão no recurso para o STJ não ter sido conhecido. Quanto ao mais, seja o Ventura, seja quem for, tem direito a que os media não aldrabem a seu respeito, e se a frase é “segregação social” (está citada no seu comentário); quem escreve “segregação racial” está a aldrabar. E, francamente, para denunciar o Ventura nem é preciso aldrabar.