A verdadeira semântica da vitória do PS

No meu artigo anterior, “A Direita e as Direitas” analisei os desafios para as direitas no pós legislativas de 2022. Agora vou procurar analisar a vitória de António Costa e do PS. Para isso vou recordar os dados da Pordata: são 9,2 milhões de eleitores dos quais 5,2 milhões (56%) dependem directamente do Estado (funcionários públicos, trabalhadores de empresas públicas, reformados e pensionistas assim como beneficiários do RSI – nestes 56% não estão contabilizadas as respectivas famílias.

Um dos motivos que me levou a escrever este artigo sobre a vitória de António Costa é a falta de noção de inúmeras pessoas que, perante o resultado obtido, começaram a disparar contra os eleitores que escolheram o PS. Desde o “a culpa é do Povo que é estúpido” ao suposto problema da falta de percepção do eleitorado. No primeiro caso, vi muitos laranjinhas descontentes atirar a matar ao povo. Aliás, uma senhora do PSD disse-o na televisão com todas as letras e sem gaguejar. Já outros queixam-se que o Povo votou no PS graças a um conjunto de medidas que foram impostas pelo PCP e pelo Bloco. Até pode ser verdade mas o erro de percepção é, sobretudo, responsabilidade daqueles que agora se queixam. Será que é o Povo que é estúpido e burro a justificação para a derrota de tantos e a vitória do PS?

Não. O Povo não é estúpido, nem quando nos brinda com derrotas nem tão pouco quando nos oferece vitórias. O Povo vota segundo os seus interesses, o seu bolso, os seus medos e angústias e as suas ambições. Ora, 56% do eleitorado (e suas respectivas famílias) o que viram nestes seis anos? Viram o seu salário mínimo crescer 40%. Viram as suas reformas aumentar e os cortes, antes efectuados, repostos. Viram as carreiras serem descongeladas. Viram o Serviço Nacional de Saúde funcionar para eles antes e durante a pandemia. Viram, como bem explica o José Mário Teixeira neste artigo, que podem continuar a recorrer ao sistema de justiça de forma gratuita ou quase. Mais, durante a pandemia viram o governo actuar segundo os seus interesses, os interesses destes 56% que não perderam poder de compra, que não viram os seus postos de trabalho terminar nem os seus salários cortados. Nada. Ou seja, nestes seis anos, não viram a sua vida piorar, o que é melhor do que na legislatura anterior a Costa.

Reparem, quem mais sofreu foi a classe média mas essa conta cada vez menos porque praticamente desapareceu. Olhando com atenção para o país destes 56% a minha surpresa é outra: como só conseguiu Costa ter pouco mais de 41%?

Só que isto não foi o que se debateu nas televisões ou se opinou nos espaços de comentário. É a bolha de que já falei antes. A mesma bolha que ontem (escrevo isto a 2 de fevereiro) na CNN comeu, com espinhas e tudo, que tudo se resumiu a mudanças de semântica e guiões “netflixianos” de campanha para conseguir a maioria absoluta. E nem quando a razão imperou, na explicação dada pelo que as sondagens realmente diziam, nem aí, repito, a bolha esvaziou. Não, passou como se nada fosse. Porque a bolha não quer ver a realidade, não lhe interessa a realidade. A realidade não deve dar audiências, suponho. 

António Costa e o PS tiveram maioria absoluta porque governaram seis anos de molde a não prejudicar, antes pelo contrário, os tais 56%. Porque, mesmo durante os meses duros da pandemia, garantiram sempre os interesses dos 56%. Porque, mesmo nos últimos meses antes das eleições, souberam, uma vez mais, governar e propor medidas para esses 56%. Só que a malta da bolha, que está dentro da bolha, não se apercebe. Não vê nem se interessa pelo mundo lá fora. Os mesmos que não entendem o sucesso dos “Big Brothers” ou os votos no Chega. E quando António Costa anestesiou a CGTP e a FENPROF usando o PCP, ficou marcado o trilho da vitória. É esta a semântica de Costa. A semântica de quem anda aqui a virar frangos há muito tempo. A semântica de uma vitória absoluta. 

O resto é poesia.

Comments

  1. balio says:

    Este post presume, a meu ver muito erradamente, que os funcionários públicos, reformados, etc, os tais 56%, têm todos os mesmos interesses e todos as mesmas preferências. Não têm. Os funcionários públicos e os reformados são pessoas muito diversas, tal como as outras, têm preferências, prioridades, desejos e gostos diversos.
    É claro que toda a gente, seja funcionária pública ou não seja, gosta de ter um salário a cair na conta de forma regular e previsível. Mas, afora isso, toda a gente, seja funcionária pública ou não seja, tem gostos e preferências diferentes.

  2. POIS! says:

    Bem mas…

    Desculpe lá: os tais 56% só existem agora?

    E só agora viraram todos para o mesmo lado?

    Os Cavacos, Os Barrosos e os Passos não tiveram os votos desses? O s Cavacos e os Passos duas vezes?

    PS. Sobre o facto de o SNS ter funcionado mais ou menos, nada a objetar. Mas sobre o acesso à justiça “de forma gratuita ou quase”, isso não existe, a não ser para meia-dúzia dos tais “56%”. E nem me parece que seja o que escreveu o J M Teixeira. Penso eu de que.

    A não ser que V. Exa. também já esteja abrigado na “bolha” e não saiba o que se passa.

    • Rui Naldinho says:

      “POIS”, o que escreveu o Fernando Moreira de Sá é verdade. Ele não está a generalizar, apesar de poder parecê-lo. Está quando muito a somar os nichos de eleitorado onde o PS maioritariamente vai pescar os seus votos. Esses nichos têm peso. Não é por acaso que António Costa veio com aquele discurso romântico do “Fim da Austeridade”.
      A austeridade não acabou. Foi sim estancada. Parou-se a hemorragia, devolveu-se aquilo que por direito tinha sido conquistado, muitos anos antes.

      É verdade o que você escreveu, quando diz:
      “E só agora viraram todos para o mesmo lado?”

      Claro que não. Só que no período da troica, Pedro Passos Coelho//Paulo Portas majoraram-se as desigualdades, trouxeram a indignação de alguns sectores, com congelamento de salários no sector privado, em 4 anos o salário mínimo subiu 20/25€, no sector público houve cortes de ordenados, cortes nas reformas, para além do truque de incluir os subsídios de férias e Natal nos outros 12 meses, para nos dar a entender que o “tombo” não era grande.
      Cavaco Silva na sua primeira maioria absoluta fez de certa forma aquilo que Costa fez nesta legislatura. Eram outros tempos. Mas a estratégia similar. Havia o escudo.
      Ainda me recordo bem que os funcionários públicos não pagavam IRS, penso que na altura o nome era “Imposto Complementar”, ou melhor, só pagavam a parte do conjugue, caso ela não fosse funcionária pública e trabalhasse no sector privado, e quando todos os portugueses sem excepção passaram a pagar IRS, os ordenados dos funcionários públicos tiveram um aumento significativo, para que na soma final o seu rendimento este não diminuísse, por via do desconto de IRS. Cavaco há época inaugurou o Turismo Sénior, uma medida muito popular entre os reformados, que lhe renderam dezenas de milhar de votos.
      Quem não perceber isto, dificilmente ganhará umas eleições. Ou pior, vai ficar à espera de uma grave crise económica provocada por má gestão da coisa pública, espero que o PS tenha aprendido, para chegar ao poder.

      • POIS! says:

        Mas eu percebi perfeitamente. Não se pode é justificar tudo com base em que são 56%, depende tudo do Estado e está tudo explicado.

        Até porque, por essa Europa fora, há países com muito mais “dependentes do Estado”. Nos tais “liberais” países nórdicos, nem se fala!

        No caso do Cavaco, também avultaram os programas de ocupação de jovens e o alargamento da formação financiada pela CEE que enriqueceu muitos negociantes da formação, entre os quais sindicatos e associações patronais e absorveu quase por completo o desemprego.

        Aquando da introdução do IRS, vi-me na contingência de ter de obter formação na matéria, pois a lógica era radicalmente diferente da do IC. Quem me “socorreu”, na altura, foram uns amigos que me deixaram, por boa vontade, assistir a umas sessões promovidas por uma associação local de Técnicos de Contas.

        Segundo so formadores, vindos da estrutura do Fisco, o IC não era pago pelos funcionários públicos, justamente porque se entendia que não fazia sentido o Estado “dar com uma mão e tirar com a outra”. Pela mesma razão o correspondente à TSU – os descontos para a Caixa Nacional de Pensões – era muito baixo, bem como os descontos para a ADSE. Ou seja, aquilo que o Estado gastava até então, fazia, de modo indireto, parte do vencimento.

        Foi isso que justificou as tais majorações que, segundo muitos, foram uma forma de ocultar durante algum tempo a real perda de rendimentos, que sentiram particularmente os que não conseguiram aumentos significativos de ordenado através das progressões na carreira.

        Tivesse o Cavaco, na altura, o topete de se candidatar a um terceiro mandato e dificilmente chegaria à maioria absoluta.

        Mas o homem foi muito generoso: deixou outro para perder por ele.

        • Rui Naldinho says:

          Concordo consigo. É claro que Cavaco quando sentiu o tapete fugir-lhe debaixo dos pés, pôs-se ao fresco.
          Criou aquele Tabu apenas para, no seu estilo calculista, ver se caía mais algum da CEE e se as coisas entretanto melhoravam. A sua substituição foi desastrosa. O normal era ser assessorado por alguém que lhe desse continuidade, lançado num Congresso dois anos antes da sua saída, para lhe dar protagonismo. Nomeando-o depois Vice Primeiro Ministro, por exemplo.
          Aliás se alguém governou com o dinheiro a cair- lhe aos pés, foi Cavaco. Foi para mim o maior calculista da nossa República.
          A derrota do PSD estava iminente, e não fosse a fragmentação do eleitorado à esquerda, nessa época, Guterres alcançaria maioria absoluta. Aliás teria alcançado duas. Costa com menos votos sacou 119 deputados.

        • Paulo Marques says:

          Por um lado, sim, por outro, criou a ideia do privilégio, que, se era verdade, há muito deixou de ser relevante, e até aliciante. Só não contou com duas coisas: que as “pessoas sérias” do seu governo e seguintes se marimbassem para o serviço público e voassem pelas portas giratórias sem sequer tentar disfarçar, deixando o partido com restos; que aparecem outros a acentuar o discurso aproveitando o vazio político do partido.
          Mas foi genial, provavelmente aconselhado pelo amigo Delors, lá isso ninguém lhe tira.


    • Tem razão em tudo. Depois do post absolutamente lapidar de ontem, hoje o autor estava desconcentrado. O acesso à justiça “de forma gratuita ou quase” é só para indigentes, em especial os falsos (daqueles que só têm um palheiro).


  3. O autor esqueceu-se (o que é imperdoável) que, desses 56%, uma relevante percentagem integra as classes média e alta. Aliás, cada vez mais só têm acesso assegurado a essas classes “funcionários públicos, trabalhadores de empresas públicas, reformados e pensionistas” (no interior, então, é quase tudo). “Assegurado”, naturalmente, salvo em caso de nova bancarrota, pelo que, alguns deles, que não pensam apenas no dia de amanhã – ou que também pagam impostos elevados, para depois terem de pagar creches e escolas privadas (e, agora, mestrados nas universidade públicas) e, para os que não têm ADSE, seguros de saúde – não votam no “partido das bancarrotas”.


  4. O pessoal anda a esquecer-se, como faz o Costinha, do roubo escandaloso aos 100.000 professores a quem foi dito que o tempo de serviço que tinham, deixaram de ter. É como se eu fosse na rua com 100€ no bolso e um larápio me assaltasse e os roubasse. Perante o meu protesto, o amigo do alheio apiedou-se, dos meus 100 ofereceu-me 20 e disse: toma lá meu e bolinha baixa, se não nem isso levas….

  5. JgMenos says:

    Fico esclarecido.
    O PS só sai do poder após cada falência; para o retomar logo que os 56% recuperem das suas consequências.
    O povo não é estúpido!

    • CHEGA, Menos! says:

      “O povo não é estúpido!”
      De acordo.
      Já tu és o quê?

    • POIS! says:

      Pois!

      Por isso é que a União Nacional-ANP já há uns anos que, por modéstia, desistiu de concorrer a eleições.

      Acabou-se-lhes o eleitorado que, nessa época, era composto quase só por funcionários públicos forçados a recensear-se.

      E o povo não é estúpido!

    • Paulo Marques says:

      Como contabilista, devias ter vergonha de não saber o que é uma bancarrota.

  6. Filipe Bastos says:

    Teminado o jogo, perdão, as eleições, a “festa da democracia”, cá temos a longa e inevitável análise pulhítica.

    A tese do Moreira de Sá: 2/3 dos eleitores dependem directamente do Estado; vêem no PS a manutenção do Estado e da tranquilidade das suas vidinhas; por isso votam no PS.

    Há dias o Naldinho contribuiu o seguinte corolário: na hora de votar o tuga está-se nas tintas para casos, carácter, ética ou moral; só olha ao seu bolso e à sua vidinha. Conclusão: PS.

    Julgo que descobriram a pólvora. Vendo os últimos 40 anos, quem diria que o tuga vota em aldrabões que lhe prometem mais Estado, mais subsídios, mais esmolas europeias, mais facilidades?

    Para mim foi um choque; sempre pensei que o tuga baseasse o voto no seu rigoroso código ético e moral. O PS seria assim uma espécie de reserva moral da nação. Muito me enganava.

    Ou então, pensava eu, o eleitor tuga votaria após exaustiva análise das propostas e do histórico dos partidos. Outra desilusão. Nem sei como é Portugal um país tão sério e tão próspero.

  7. Filipe Bastos says:

    Mais a sério, será o povo estúpido? Uma boa questão.

    O povo, como o inferno, são os outros. Nunca somos nós. O nosso voto, seja qual for, é lúcido e consciente. Os outros é que são tolos, comunas, fachos, gente influenciável que vota por razões limitadas. Ao contrário de nós, não vêem a ‘big picture’.

    Dito isto, é inegável que não falta gente estúpida: basta ouvi-la ou lê-la. Ou ver aquilo de que gosta. Um minuto dos programas mais vistos da TV ou vídeos do Youtube esclarece-nos sobre o intelecto e o gosto da maioria. A média é baixa, muito baixa.

    Claro que até alguém estúpido sabe se vive melhor ou não; mas os seus critérios tendem a ser básicos, as suas prioridades limitadas e imediatistas, a sua memória curta. Daí a nossa crónica ‘alternância democrática’, esta pífia dança de pulhas e tachos.

    Sendo eu proponente duma democracia mais directa, como posso contar com este povo? Sendo franco, não conto; apenas não tenho solução melhor. Tenho, vá lá, a esperança de que sendo forçado a decidir, este povo comece finalmente a pensar.

    Difícil? Talvez… mas não podemos é continuar nesta merda.

    • Paulo Marques says:

      A “big picture” só existe na mente de liberais e conservadores (usando a definição inglesa) – não há super-humanos. É perfeitamente natural e espectável que a larga maioria vote nos seus interesses, quer porque vê os outros à sua maneira, quer por idealiza-se a si próprio como de alguma maneira mais real.
      Quando a oposição directa à esquerda e direita se esquece de dizer o que lhes oferece, quando as coisas não vão mal (segundo a narrativa cultural), o governo agradece.

  8. Joana Quelhas says:

    Mas Filipe Bastos, de que é que você se queixa ?
    A sua paixão pela democracia directa pode ser uma utopia também. Acha que uma democracia directa resolvia dos problemas que se queixa ?
    Quem sabe se a democracia directa lhe traria outros ? E seriam problemas maiores ou menores ?

    Joana Quelhas

  9. Filipe Bastos says:

    Paixão, Joana? Acabei de dizer que é tão-só a melhor solução que tenho; certamente não perfeita, mas há algo que o seja?

    Acredito que é o futuro, o único futuro possível e desejável, e que é cem vezes mais justa do que esta partidocracia onde tudo pagamos e nada decidimos. Mas será um longo caminho até termos um povo melhor, mais interessado e informado.

    Haverá problemas, questões, dificuldades, avanços e retrocessos. Está quase tudo por fazer. Daí termos de pensá-la e defini-la ASAP. Ao invés, que fazemos? Brincamos à ‘democracia representativa’. Resignamo-nos ao esgoto partidário.

    Eu sei que o que trago não é tão divertido ou sexy como passar o tempo a discutir partidos, políticos e pulhíticos. A malta gosta deste circo, dos prognósticos e resultados, desta lógica futeboleira. Mas para quê, Joana? Nada disto vale um traque.