Nativos da etnia Picunche, segundo uma gravura do século XVI.
A minha intenção, ao longo dos próximos dias, é explicar as relações de família de nativos de várias Repúblicas na América Latina. Por me parecer mais simples, começarei pelas analisadas por mim e pela minha equipa. Há tantas surpresas, à medida que vamos conhecendo a vida dos nativos!
A primeira com que me deparei, antigamente conhecida por mim, e depois esquecida ao longo dos anos, foi a do matrimónio poligâmico dos Picunche do Chile e da Argentina.
Os Picunche não têm memória da sua aparição na terra. Não liam nem escreviam e eram, durante a época colonial quando o Chile era um Reyno (palavra que não é gralha, mas a forma como era escrita), escravos dos espanhóis que se apoderaram das suas terras. Como não conheciam o cultivo da batata, do milho e o cuidado das ovelhas, agrilhoavam os nativos para não fugirem. Forma de terem sempre, ao pé de si, um livro aberto que não falava e trabalhava em silêncio desde a manhã cedo até a luz do dia acabar. Os que morriam, eram retirados da fileira de índios agrilhoados e lançados a uma fossa construída por baixo de uma capela no sítio de huenchulami. Horror que deu nascimento a outro hábito, de que falarei mais em frente.
. Todos os homens tinham direito a casar com várias mulheres. Eu diria, tantas quanto as necessárias: as terras extensas precisavam de muitos cultivadores, especialmente se não havia maquinaria para a trabalhar. Os filhos das mulheres do mesmo homem, não se reconheciam como irmãos entre si apesar de terem o mesmo apelido. O meu amigo Juan Castillo, como relato num dos meus livros, explicou-me que seria redundante. Não foi essa a palavra usada, falou de reiterativo e sem importância, e que retirava autoridade ao pai se eles fossem seus filhos. Ele mandava na casa de cada uma das suas mulheres, de forma diferente a como usava a sua autoridade. Se a usasse por igual, o que teria era um exército e não grupos de trabalho. As mulheres eram visitadas conforme a época do ano. Eis o motivo pelo que casava em diferentes sítios e altitudes: na cordilheira alta para os animais, na média para as batatas e nas partes baixas para o cultivo de hortaliças e cereais. A divisão do trabalho e a extensão das terras era o denominador para dividir o número de esposas que teria e quantos filhos com cada uma. Se nasciam muitas mulheres, o homem da filha trabalhava para a família da casa onde ela se encontrava, até juntar um número de ovelhas suficientes para o seu sustento, como fazem os Nuer do Sudão com as vacas, relatado por Evans Pritchard. A obrigação do genro continuava até ao dia de ter os seus próprios filhos. O pai de tantos, Castillo um deles, dava-lhes um pedaço de terra para começar a ser cultivador, por conta própria. Essas terras eram acrescentadas, à morte do pai, pela divisão de heranças, uma guerra total mas não violenta porque, como se sabe, os vales da cordilheira dos Andes são de uma grande vastidão, imensos, dava para todos e faltavam braços para o cultivo, bem como para realizar o trabalho principal, esse fiar lã e tecer mantas e ponchos. O trabalho mais importante das mulheres era, pois, a tecelagem. Criavam não apenas ovelhas, como também alpacas, vicunhas e guanacos, pela qualidade da pele e da carne. O trabalho, como a tecelagem, concentrou alguns núcleos familiares em vilas, enquanto outros se espalhavam pela área rural a dias de distância entre as propriedades da mesma família.
Os mais novos eram iniciados na casa dos homens, como no caso dos Baruya da Guiné estudados por Maurice Godelier: sugavam e sugam o pénis dos púberes e por eles eram penetrados, na ideia de adquirirem semente para fazerem filhos, a esta prática junta-se a masturbação colectiva para adubar a terra. A seguir o matrimónio conforme as suas leis. Tive a sorte de encontrar um arquivo jesuíta, que guardo comigo, do Século XVIII, que narra estas histórias. Não eram punidos pela lei: a oficial do Registo Civil estava sempre só e foi a minha melhor informante: tinha tempo… O matrimónio mais usado era o romano, herança dos jesuítas que souberam ensinar a escrita e a leitura.
Dai a história prometida: todos os domingos almoçávamos nas campas dos mortos, em homenagem à união do núcleo familiar e por respeito aos assassinados pelos colonizadores e enterrados em grupos de centenas, sem piedade nenhuma nem respeito pela fé que os novos proprietários diziam ter.
A história, hoje, pára por estas linhas. Os Picunche fizeram de mim santo, médico, padroeiro… um jesuíta dos novos tempos…. Sabiam que eu respeitava os seus costumes, dormia em casa deles, ensinava ideias fora dos programas da escola primária, do secundário, do liceu e do internato, sítio no qual os estudantes púberes ganhavam dinheiro por serem penetrados pelos seus professores jovens. Ou iam à cidade mais perto e usavam os seus rituais para o divertimento dos homens aristocratas da famosa cidade de Talca. O núcleo familiar não ficava surpreendido, habituado como estava aos seus rituais.
Se rendia dinheiro, era bem mais acolhido que apenas a iniciação. Surpreendidos sim, comigo, ao nunca aceitar rapaziada ou púberes para me aquecer a cama do frio da Cordilheira…
Os nativos do Chile, permitidos de serem tratados como cães…, tema que continuarei.
São costumes que de tão afastados dos nossos, só mostram que não há verdades absolutas nem moral que se aplique a todos…