lembranças de mãe

 

Granados. La maja y el ruisenhor (ruxinhol)

Nós, adultos, esquecemos que a mãe é pessoa e vemo-la como processo. Além do carinho e emotividade que unem uma criança à sua progenitora, existem, de forma igualmente importante, várias fases no percurso da sua vida, sendo um o caminho de mãe. A primeira, que de todo não pode ser escolhida, é nascer mulher: até aos nossos dias, não se inventou um ser que a substitua na estrutura hormonal e na configuração biológica necessárias para dar vida a um bebé e amá-lo. Muito menos, a invenção da leveza do ser que caracteriza a relação mãe/criança. Não me esqueço da frase de um amigo meu ao confidenciar-me a sua tristeza pelo facto da mãe ter ficado inválida:

Não sei o que fazer… apenas consigo chorar! A minha resposta foi rápida e directa: O que o meu amigo chora não é a doença da sua mãe, o que chora é a falta do mimo embelezado dos carinhos dela. Doravante, será o contrário: é a mãe que vai precisar dos cuidados do filho. Ele, incapaz de devolver essa elegância de mimos que na sua infância, a mãe lhe incutira, optou por nunca mais a visitar. É esta arte da fuga que os (as)

filhos (as) adultos, configuram na relação ascendente/descendente, face a pais já anciães, no seio de uma sociedade que ensina (embora nem sempre se aprenda) a honrar pai e mãe. O hábito de contar, desabafar ou ser aconselhado, fica inserido na mente do adulto maduro, como se ainda fosse um catraio. Tudo se torna mais difícil, se a mãe passa a ser uma pessoa lenta, esquecida, voltando, ela própria, à fase de bebé, ao regredir.

Mas, se a mãe é um processo, é preciso sairmos da regressão para entrarmos na História. A rapariga casa com paixão (ou opta por uma união de facto, hoje em dia é igual). Dentro dessa paixão o bebé é estruturado, até se converter num ser humano autónomo necessitanto da mãe para saber o que e como fazer com os seus próprios filho. Embora saibamos que existem mães que ignoram os filhos, não são as que, de momento, me interessam, eu diria, aliás, que o que me interessa é exactamente o oposto. A mãe, leal como sempre é com a sua criança, ouve, vê, sente e proporciona-lhe ideias. As lembranças de mãe passam por factos que a criança nunca entendeu e, como adulto, continua a ignorar, por isso não partilha com o seu ascendente. No Diário de Vida de uma Senhora, que me foi ofertado num período em que estava em trabalho de campo, li este pensamento: como devo fazer para a minha pequenada não ouvir a intimidade que tenho com o pai, os meus suspiros, os meus naturais gritos de prazer, a exibição da minha nudez que desejo mostrar ao meu homem para o manter vivo? E se o meu pequeno entra no quarto…. ? É este problema que a maior parte dos adultos têm. Especialmente as mães. O corpo da mãe tem várias funções. A primeira, é ser ela própria e considerar qual a forma de manter a sedução para o seu homem. Uma mãe não é apenas uma entidade que amamentará a descendência: é também cônjuge ou parte integral de uma relação que permite que o seu estatuto maternal seja um processo de crescimento. Ocultar o corpo que deve também mostrar, é um dos dilemas da mulher. Dilema não contraditório, mas muito delicado. Diz esse Diário de Vida: estávamos a namoriscar a noite passada (sempre à noite, não sei porquê), entrou no quarto, de forma inesperada, o nosso filho mais velho; foi preciso esperar, dissimular, trocar lugares na cama… a correr. No entanto, penso que ele intuiu uma «aldrabice», ao comentar no dia seguinte se a mãe estava a brincar à Julia Roberts em Notting Hill, ou à Andie MacDowell em Quatro Casamentos e um Funeral, quando elas mostravam os seios, tal como eu ao meu homem?

Dilema de mãe, lembrança de mãe. Lembrança de mãe porque para o homem é natural mostrar a intimidade que tem com a mulher: a sua ou outra qualquer. Não há registo, no citado Diário de Vida, da mãe ter tido outro homem para além do seu. Porque a lembrança da mãe tem por base o sentido de pertença para a pessoa com ela comprometida e com a qual se comprometera na saúde ou na doença, para toda a eternidade. Conceito de fidelidade ou lealdade, base também para toda a interacção com o mundo exterior. A lembrança que desenha melhor a mulher/mãe, é a sua entrega à casa e aos que nela vivem, sejam adultos ou crianças. Relação que passa à frente de qualquer outra, mesmo com o cansaço do trabalho provocado pela forma económica actual (a mulher tem de trabalhar fora de casa como agente activo do orçamento familiar) e, paralelamente, manter a organização e a disciplina do lar. Lembrança dupla da mãe: trabalho doméstico nas suas mãos, trabalho económico fora do lar mas para o lar e os seus. É a entrega infinita no seu processo de adquirir o estatuto de progenitora, apenas reflectido no mito religioso de uma Nossa Senhora, das muitas que existem face ao grupo social. Uma Nossa Senhora a concorrer com a real progenitora.

O Diário de Vida encerra muitas lembranças, desde a alimentação à intimidade sexual. No entanto, foi esta última que me chamou à atenção. Raramente se fala da intimidade dos adultos da casa, principalmente das lembranças da mãe. Como diz um outro amigo meu: um calafrio percorre o meu corpo se penso na minha mãe a fazer as «porcarias» que eu faço com a minha ou com outras mulheres. A mãe não tem direito ao seu próprio divertimento e, muito menos, a falar dele, mesmo que a conversa seja pura, calma e directa. A mulher/mãe é apenas um processo de criar e amamentar. As roupas, o batom, as pinturas, as jóias, os livros, as flores e até namoros com outros homens, que podem acontecer porque são naturais, fazem parte do seu universo. Um desejo natural de possuir figuras diferentes do eterno companheiro adquirido até à morte porque o Concilio Romano de Trento assim o definiu em 1539. Será que Alice Miller em 1998 estava enganada ao escrever que A verdade libertar-te-á, ou em 1984, Não sereis conscientes da verdade. A traição da criança. Ou Melanie Klein no seu artigo de 1928: Estágios iniciais do conflito Edipiano? Ou, ainda, Eduardo Sá, em 1995, ao falar das Más maneiras de sermos bons pais? Qual das duas ideias de Daniel Sampaio é mais importante, a de 1994, Inventem-se novos pais, ou a de 1998 Vivemos livres numa prisão?

Não posso concluir. A temática é extensa e demasiado importante num País Romano como Portugal. Mas, ficam na minha memória as confidências de outras lembranças das muitas mães que comigo falaram, para saberem como podiam ser explicar explicitamente aos mais novos que eram mulheres ao mesmo tempo que mães, porque os seus filhos não cresceriam se não entendessem essa diferença fundamental. Diferença que leva muitos a pensarem que um adulto deve ocultar a sua vida à criança. Especialmente se são lembranças da mãe, porque ser mãe é o processo de entrar como uma Nossa Senhora, ideia que a maior parte dos Cristãos Romanos, dos Koptos da Arménia e dos Ortodoxos da Grécia e da Rússia, definem a mulher. Nunca se pode esquecer que é mãe e não mulher, muito menos senhora, porque é apenas Sra. de….. Tratamento injusto e desadequado como temos visto nos dias de guerra, ao observamos serem elas a procurar alimentos, enquanto eles aldrabavam com armas fracas para se sentirem masculinos a lutar contra um inimigo configurado. A lembrança da mãe alimentar, levou muitas mulheres a passar em frente das balas. Como a minha própria mãe, a única que me visitou num campo de concentração, faz já trinta anos. Curou o meu sarampo, aconselhou-me nas doenças das netas, com discrição, e soube guardar distância silenciosa entre as suas ideias monárquicas e as minhas socialistas, que, sem saber, apoiou. Pelo que fico agradecido. Mais uma lembrança de mãe, porque o seu amor é incondicional.

Raúl Iturra

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