Desabafo ao desabafo de Ruy de Carvalho

Ruy de Carvalho tem 86 anos e 70 de carreira, é um actor que aprendi a admirar, fosse na televisão ou no teatro. A idade é, de facto um posto. Eu acho que aos 86 anos, uma pessoa deve poder dizer o que lhe vai na cabeça, mesmo sendo alguém de quem se espera tudo e mais alguma coisa. Mesmo havendo o risco de desiludir admiradores, amigos. Caramba, 86 anos têm de servir para alguma coisa.

O desabafo do Ruy de Carvalho merece, no entanto, alguns desabafos, também da minha parte. As críticas que faz ao Estado – algumas certas e outras nem por isso – vêm, sobretudo, pelo facto da alteração da denominação da sua arte e do roubo que está a ser feito em sede de IRS. Tem toda a razão, Ruy, mas vamos aos factos. Sim, que tantos anos e tanta vida também hão-de comportar momentos menos felizes:Ruy de Carvalho tem pena “de ter chegado a esta idade para assistir angustiado à rapina com que o fisco está a executar o músculo da cultura portuguesa. Estamos a reduzir tudo a zero… a zeros, dando cobertura a uma gigantesca transferência dos rendimentos de quem nada tem para os que têm cada vez mais”. Pois é, caro Ruy. Mas isso não é de agora. Quando o Ruy de Caravalho apoiou Cavaco para Presidente da República já não era propriamente um miúdo, já tinha vivido as guerras, apertado o cinto, vivido privações e nem se apercebeu que estava a apoiar um dos grandes responsáveis por elas, nos anos mais recentes da nossa história. Mas o Ruy estava lá ao lado dele. Porquê, Ruy?

Quando Ruy de Carvalho apoiou Santana Lopes e, depois, Carmona Rodrigues – ambos do campo do PSD – para a Câmara de Lisboa já devia saber o que aí vinha, não acha?

Quando Ruy de Carvalho integrou a comissão de honra da candidatura do PSD-CDS-PPM à Câmara Municipal de Vila Franca de Xira também esperaria diferente? Tudo bem, este caso é diferente. Estava em causa o apoio à candidatura do filho. Mas não se pode esperar diferente de quem se enquadra naquele campo, nem na cultura, nem na economia, nem no trabalho.

Para Ruy de Carvalho, é “lamentável e vergonhoso que não haja um único político com honestidade suficiente para se demarcar desta estúpida cumplicidade entre a incompetência e a maldade de quem foi eleito com toda a boa vontade, para conscientemente delapidar a esperança e o arbítrio de quem, afinal de contas, já nem nas anedotas é o verdadeiro dono de Portugal: nós todos!”.

Não dá, Ruy. Não se consegue perceber. Tanta indignação acaba por errar o alvo. Acredito que, talvez, o Ruy possa não ter consciência mas, ao apoiar determinadas pessoas, o Ruy passa a escolher uma via política. Escolheu, pública e invariavalmente, a da direita. E se há coisa de que a direita gosta pouco é de cultura, enquanto forma de educação dos povos. Quanto menos cultura, melhor. Quanto menos soubermos, melhor. Se não se souber, por exemplo, que foi Álvaro Cunhal, na prisão, que fez a primeira tradução portuguesa do Rei Lear, que o Ruy tão bem interpretou, melhor.

O Ruy também é político, como eu, como todos, mesmo os que afirmam não ligar à política. E temos todos responsabilidade. Atirar para essa entidade estranha que parecem ser “os políticos” é sacudir a água de um capote que o Ruy tem encharcado.

No entanto, será bem-vindo a este lado da barricada.

Comments


  1. Tinha colocado este comentário no post do João José, “Roma não paga a traidores”, mas acho que também se ajusta bastante a este post e por isso repito-o aqui:

    Era de minorias como esta que eu falava algures num qualquer post anterior.

    Todos aqueles que, por uma circunstância ou por outra, se agregam em grupos com um centro comum, acreditam, não sei porque carga de água, que têm de ter mais benefícios, mais benesses, mais direitos, do que qualquer outro cidadão.

    Arvorar-se de especial na profissão nada tem a ver com o direito a ter mais direitos! Mas, na realidade, é isto que se passa: os actores porque são actores acham que merecem mais, os políticos porque são políticos acham que merecem mais, os reformados banqueiros porque foram banqueiros acham que merecem mais, os maquinistas porque são maquinistas acham que merecem mais, e por aí fora…

    Já para não falar daqueles que escolhem, livremente, a profissão que querem exercer e depois vêm exigir benesses especiais, como por exemplo: os polícias com o subsídio de risco, os faroleiros com o subsídio de solidão, etc., etc.

    Enfim, com jeitinho ainda havemos de descobrir que todos temos algo especial (o que é física e mentalmente correcto: não há ninguém igual a ninguém) e havemos de lutar por um subsídio qualquer, ou por um benefício qualquer….

  2. Ricardo M Santos says:

    Todos os trabalhadores devem ter direitos. Sejam actores, polícias, faroleiros. Ser político não é, na minha visão da política, uma profissão. É a prestação de um serviço à comunidade enquanto a comuniade assim o quiser. Se há quem faça disso modo de vida é porque nós o permitimos.


  3. Todos os trabalhadores devem ter uma remuneração justa pelo trabalho que efectuam, isso sim! E isso é equidade.

    Agora, se por cada “especificidade” de grupo se exigir mais e mais, deixa de existir equidade e amplia-se desmesuradamente o fosso entre uns grupos e outros.

  4. Hugo says:

    Não percebi. Os actores não pagavam IRS e agora têm de pagar? Qual era a contrapartida? Isso faz-me lembrar a situação dos bolseiros de investigação que também não pagam IRS, mas em contrapartida não têm praticamente direito a nada (subsídio de desemprego, subsídio de doença, apoio à maternidade, etc.).

    Não sei por isso se a indignação do Ruy de Carvalho é justa ou não, mas é como a Isabel diz, nós ficamos todos indignados quando nos vêm ao bolso e achamos sempre que nós e o nosso grupo temos sempre mais direitos que os outros e que os outros é que devem pagar. É certo que todos temos de pagar a austeridade mas também é certo que os cortes devem ser proporcionais a cada um e não cegamente iguais para todos. Resta saber se a situação dos actores/artistas constitui um privilégio injusto ou não.

    Concordo também com o teor deste post em relação à postura do Ruy de Carvalho. É óbvio que qualquer pessoa tem direito à sua opinião e tem direito a mudar de opinião, mas de facto fica muito mal quando a mudança de opinião em relação a um governo acontece ao mesmo tempo em que esse mesmo governo retira benesses ao opinador.

  5. adelinoferreira says:

    Como disse o Escritor e o Homem:
    “COMO SE FOSSE ÁGUA”
    Foi bom ter andado por aqui!

  6. Luis Alcide Lopes says:

    O problema dele é que nunca apoiou socialistas. Senão hoje estava rico, ao que consta também não milita na irmandade do pega de empurrão, nem nos aventais, ora aí está, estão, mais duas lacunas que qualquer pessoa com mais de 18 anos já devia saber. Até apoiou as pessoas certas porque nennhuma delas deixou o país na bancarrota. Antes pelo contrário. Mas percebo que ande chateado. Anda toda a gente como ele. É a vida como diria o “saudoso” Guterres. É fazer as contas….


  7. Este texto podia ter como subtítulo “ir a Faro para chegar ao Porto”
    Era preciso uma análise curricular (para não escrever partidária) a Ruy de Carvalho para chegar à conclusão das responsabilidades políticas e sociais?
    Entretanto questiono, o eleitorado de Lisboa – que apoiaram António Costa – do campo PS (daqueles que anseiam por poiso maior que a gestão camarária) não viram os seus impostos aumentados também?