Fidelizados até 2016

Há dias ia eu no metro, sentada ao lado de uma desconhecida de aspecto simpático. A certa altura ela atendeu o telemóvel, respondeu que era a própria, disse uns quantos sins e nãos, e rematou com um imperioso “não posso, estou fidelizada até 2016”.

Uma afirmação extraordinária, pareceu-me. O grau de certeza no futuro que implica aquele “estou fidelizada até 2016”! Os outros, os da concorrência com a qual ela não está fidelizada, telefonam-lhe, acenam-lhe com promoções, descontos, regalias, um autêntico canto das sereias das telecomunicações, e ela, amarrada ao leme do contrato que a obrigaria a pagar as mensalidades todas até 2016, não ouve, não vê, prefere nem saber. Quando muito, indica-lhes o mês em que o contrato vencerá para que lhe liguem por essa altura com as suas melhores ofertas.

Ela provavelmente não saberá, nem ela nem ninguém, se em 2016 terá trabalho, se viverá na mesma casa, se manterá a mesma relação amorosa ou o mesmo celibato, se terá saúde, se será mais gorda ou mais magra, se será feliz, mas sabe que terá a mesma operadora de telemóvel. Já é qualquer coisa.

Lembrei-me de uma crónica antiga do espanhol Juan José Millás, da qual já não me recordo o título, que contava a história verídica de um homem que, tendo morrido muitos meses antes, só fora encontrado em casa quando o saldo da conta bancária se esgotou e os seus pagamentos por débito directo começaram todos a falhar. Enquanto fora um cidadão cumpridor das suas obrigações para com os credores, aquele homem estava vivo socialmente, ainda que morto e putrefacto do ponto de vista biológico. A sua morte só aconteceu, de facto, quando entrou em incumprimento contratual, quando pela primeira vez infringiu o que as suas fidelizações o obrigavam a executar. Aí sim, foram procurá-lo e confirmaram aquilo de que suspeitavam: se deixou de pagar as facturas é porque estava morto.

Da mesma forma, um homem pode estar biologicamente vivo – ter corpo, fome, sede, cansaço, dores num joelho – e estar socialmente morto, porque a sua conta bancária está a zeros, ou nem sequer existe, e esse homem não tem um cêntimo para cumprir as obrigações essenciais da vida de um cidadão comum – pagar casa, comida, roupa, transportes, telecomunicações, etc.

As biografias poderão um dia redigir-se assim: da marca das primeiras fraldas à funerária que lhe tratou da cremação, a vida de um homem resumida aos serviços que contratou e aos produtos que consumiu. E cada etapa marcada pelo respectivo período de fidelização, entre os 20 e os 22, entre os 46 e os 48, dos 75 aos 77, uma sucessão de escolhas e compromissos, contratos e facturas, contratos e facturas, contratos e facturas, até ao fim.

A pensar nisto, e já a chegar à minha estação, ocorreu-me: se um homem morrer a meio do contrato, a fidelização mantém-se? Talvez seja esse o conceito de “vida depois da morte” dos tempos que correm.

Comments

  1. Joam Roiz says:

    Um excelente resumo do que o sistema capitalista é capaz de fazer do ser humano.

  2. Luis Coelho says:

    Como alguém disse, antigamente o futuro era melhor.

  3. Paneleiro says:

    Concordo com tudo. Por isso o patrão que pague à Carla mês a mês e quando não a quiser mais que a despache.

  4. antonio oliveira says:

    Promoção da EDP visando captar clientes: 10% de desconto sobre o consumo de energia + 10% sobre o consumo de gás acrescidos de mais descontos (basta clicar). Tudo isto em letras garrafais piscando o olho ao consumidor mais distraído ou com pouca paciência para se perder em detalhes. E é aí que a “porca torce o rabo” : é que a campanha só é válida se o consumidor aceitar a factura electrónica e pagá-la através de débito directo. No rodapé e em letras miúdas.

  5. Reblogged this on O Retiro do Sossego.

  6. Eu para esses tipos, ou estou fidelizado até 2020, ou estou desempregado há 3 anos, ou tenho 15 anos. Resulta sempre.

  7. Nas comunicações de voz ou dados nada tenho contra as fidelizações, pois a elas adere quem quer. Normalmente é a forma que muitos alcançam para conseguir um smartphone a preço reduzido, baixar o preço da factura, ou obter uma oferta de serviço, por exemplo minutos ou SMS à borla. Só assina quem quer e existem alternativas sem que alguém fique obrigado ao que quer que seja. É possível comprar um telefone desbloqueado e subscrever um tarifário livre. O mesmo se passa com a internet.
    O que a Carla não falou e seria um excelente ponto, são os serviços de televisão. Experimentem tentar adquirir um sem fidelização. Não é uma questão de preço, pura e simplesmente não existe (pelo menos não existia há um ano). O mínimo a que alguém fica obrigado são 24 meses…

  8. Maria says:

    Muuuuito BOM!!!! Do melhor que tenho visto.

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