Então cala-te e continua a remar

Portugal, Fevereiro de 2015. A vida cá dentro (des)corre como de costume. “Nós andamos do jeito que Deus quer, entre os dias que passam menos mal, lá vem um que nos dá mais que fazer”. Naquele, que é 25, vais testar outra vez o que resta do nosso Serviço Nacional de Saúde. Tão bom, ainda. Tão maltratado, porém. O Hospital chama os doentes um dia antes das intervenções cirúrgicas. Não há, à partida, uma razão plausível. Talvez tenha a ver com o facto de haver cada vez menos gente a trabalhar nos diversos serviços, e o tempo, implacável, não chegar para tudo, nem para cinco minutos de questionário aos que chegam para remover do corpo o que não está bom. Cinco minutos, seguidos de outros cinco, que os enfermeiros gerem o melhor que conseguem para o tal “acolhimento”, para te fazerem sentir tão melhor quanto conseguem. Na sala de espera almoças, lanchas e jantas. Matas o tempo o melhor que consegues, em frente ao país que passa na Tv a horas certas, entre o saudosismo que o Herman exibe e o melodrama que passa de canal em canal. Um país pode medir-se por aí, pelos seus programas de televisão, feitos a pensar num público que não pense muito. E ali ao lado, ao teu lado, hás-de cruzar-te com cada fatia desse Portugal que agoniza, sob o olhar displicente dos que insistem em acreditar isso da crise foi tudo inventado por meia dúzia de malandros que não querem trabalhar. Desse bolo faz parte aquela senhora de meia idade com quem hás-de partilhar mais tarde a enfermaria. A reforma chega para o bife, aprendeu a lidar com as novas tecnologias, tem um telemóvel moderno e até conta de Facebook. Do lado de lá, vai lendo em voz alta as notícias que lhe aparecem no feed.

– “Jovens até aos 18 anos vão deixar de pagar taxas moderadoras”! Sim senhora, uma boa coisa. Está aqui, na página do Partido Social Democrata!

Na cama do lado, outra fatia. Mais nova, velha demais para o serviço, a senhora de olhar triste diz que já não era sem tempo.

– Já nos tiraram tudo…agora vêm com essa para calar a boca ao povo, porque não se esqueça que vêm aí as eleições.

Há cinco camas na enfermaria e o conjunto segue a conversa com atenção. A confiante, consegue sempre retorquir.

– Você não vê que primeiro tiveram que pôr as contas em dia, por causa desse ladrão do Sócrates, e que agora é que estão a pôr tudo no sítio? Mas do mal menos, aquele já está preso, já não rouba mais dinheiro.

Como já estás no pós-recobro e ainda meio atordoada, faltam-te forças para dizer seja o que for. E continuas a ouvir as gargalhadas de quem passou incólume ao empobrecimento. Está agora concentrada [a mulher] na surpresa que a Casa dos Segredos lhe reserva para essa noite. Há-de ir e voltar da sala de espera para anunciar que “É o Castelo Branco!”, entre as chamadas que recebe do filho – “sabe que ele está muito bem, trabalha na Câmara, é engenheiro, e a mulher também lá trabalha”. Ouves contar da vida boa que têm, das viagens, de como a seguir vão levar o menino à Disney, de como é bom ir ao Algarve na Páscoa à casa que os pais dela lá têm. Ligas o discurso todo e imaginas o rapaz a subir a pulso na Jota, a vestir o seu melhor fato para ir ao jantares do partido, a mostrar-se, a fazer pela vida. Estás tu nestes pensamentos acelerados pela taquicardia que a anestesia te provoca quando a do lado a interrompe.

– Pois olhe, tem mais sorte que os meus. Ela ainda está a estudar, sabe Deus para quê, ele, coitado, foi-se agora embora para Inglaterra. Ficou desempregado, a mulher também, eram os dois professores…ele foi agora em Janeiro e a mulher vai lá assim que puder. O que me custa é a menina, têm uma menina com três anitos…e vão levá-la também. Antes de adormeceres outra vez ainda ficas a saber que também ela, a avó tão nova, foi atirada para uma pré-reforma forçada, quando a fábrica fechou. A outra, que só trabalhou em França, no duro, mas nos tempos em que havia trabalho para todos, encolhe os ombros e volta à TVI.

– Meu amigo…paciência…

Lá fora o vento não te deixa esquecer que ainda é inverno. Perguntas por duas mulheres que dividiram a sala de espera contigo, antes da operação. Casos complicados, de saúde também. A I. fez uma paragem cardíaca durante a intervenção. O coração nem sempre aguenta tanta partida da vida. Percebe-la triste, desde o início, pela morte da mãe, ainda não há um mês. Ficas a saber que pouco mais de 50 kg de gente podem carregar o mundo às costas: há muitos anos vivia bem, tinha um negócio, dois filhos pequenos. Um dia o marido emigrou e nunca mais voltou. Quando deu por ela, estava crivada de dívidas. Deprimiu. Depois levantou-se da cama, arranjou três trabalhos. “Andei seis anos sem quase ver os meus filhos, enquanto a avó os criava”. Pagou tudo o que o marido devia. Trabalha agora como doméstica em casa de gente-bem, e engana a solidão com caminhadas, meadas de lã, agulhas e tricô.

Perguntas também pela M. A enfermeira (doce e paciente, como deviam ser todas) explica-te que foi um caso mais complicado do que se estava a espera. Passa pela cama do lado. Não há reforma dourada que compre saúde à L., uma habituée daquela enfermaria, a contabilizar sucessivas operações. Agora foi ostomizada. Lida mal com as gargalhadas alheias e com a vida. A filha da M vem entretanto ver como estás. (É curiosa esta ligação que se estabelece entre pares, nos corredores de um hospital público). Nessa altura ainda não sabes, mas mais tarde a mãe há-de contar-te que é psicóloga. No desemprego. Para sobreviver e manter a sanidade mental, colocou um avental à frente, enfiou-se na cozinha e faz comida para fora. Sorriem sempre, as duas, com aquele sorriso de quem só tem o amor.

O relógio da enfermaria não passa das 8h40 (como aquele que a Carla descreveu, certa vez), mesmo que a realidade te mostre como andam a mil à hora os médicos e enfermeiros. Aquele foi um hospital (injustamente) esvaziado pelo sistema, nos últimos anos. Uma enfermeira ia contar-te como foi que fecharam a maternidade, como lhes custaram tantas mudanças, como uma nova direcção clínica lhes trouxe algum alento nos últimos tempos, quando a tv a interrompe com a notícia que passa em rodapé: Passos não pagou Segurança Social durante anos.

Ias dizer alguma coisa, mas a enfermeira olha-te nos olhos e já não é preciso. Então cala-te e continua a remar.

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