Sísifo, ouvelá, que leve era essa pedra, man. Olha aqui para o pessoal, à fome e à sede de tudo, da boa, do pão, da cama, dum corpo quente. A roupa rasgada e os dedos escuros de lama e sangue seco. A cheirar vielas, como os cães, a meter as mãos nos caixotes, a farejar o que se apanha, a metê-lo à boca. A olhar de lado, a olhar com medo. A pensar no mal. A não querer fazê-lo. A juntar moedas como quem junta tempo, um dia mais, umas horas, um naco de vida, ainda quente, ainda pulsante.
A empurrar o calhau pelo monte acima, com as mangas da camisa negras, os sapatos rotos, eram de um morto, foi a viúva que mos deu. A empurrar para nada, só para não doer tanto, a empurrar para começar de novo e nem é amanhã, é já daqui a bocado.
A ter frio, a ter medo, a ter a boca rebentada e não poder comer. A sofrer de febres, caganeiras, doenças de pele. A levar porrada, a ter feridas que não curam. A já não ter amor nem tusa, e já não querer saber.
A andar pela rua, à chuva, de noite, a correr, sempre atrás daquela merda, a dar um pontapé a um gajo como nós para chegar primeiro a uma moeda, a correr sempre, a mentir, a ser insultado, a pedir piedade a gente lavada, a pedir piedade a quem nos despreza, a correr atrás dos faróis, a esconder as unhas negras da mulher que nos olhou.
Sísifo, essa pedra, man, essa pedra também eu a carrego e é maior, e pesa mais, e não me mata. E essa merda é que mexe comigo, não entendo. Não me mata.
Voltámos ao ‘antigamente’? Então era a PIDE. Agora é o medo que lenta mas inexoravelmente se espalha a toda a sociedade. Medo de tudo, mas sobretudo de viver em instabilidade permanente, de viver (melhor, sobreviver) precariamente, em que não dominamos o nosso futuro.
«Tudo é incerto e derradeiro./Tudo é disperso, nada é inteiro./Ó Portugal, hoje és nevoeiro…»
Somos 10 milhões de arrumadores potenciais. Se lhes dermos tempo, acabaremos a disputar a arrumação de uns poucos milhares de carros (de alto luxo).