Direitos, a obscenidade destes tempos

Entre colegas de trabalho e no comentário político de direita, a alguém que ouse falar de direitos logo se lhe aponta o estigma de ser um moinante calaceiro.

naomi klein

Naomi Klein documentou que os neoliberais advogam o uso de crises para impor políticas impopulares enquanto a população está distraída. Fotografia: Anya Chibis para The Guardian.

O cidadão de hoje, produto de uma construção ideológica apenas suspensa durante curtos períodos, como a revolução francesa,  é, antes de cidadão, um trabalhador. Faça-se a experiência de juntar algumas pessoas, pedindo-lhes que se apresentem. Não falarão das suas raízes familiares, nem das suas convicções. Definir-se-ão pelo que fazem, numa visão calvinista da sua existência. [Read more…]

O romance do Raposo

raposa

Henrique Raposo irá, decerto, propor, numa próxima revisão constitucional que a realidade, a crise e a bancarrota passem a ser consideradas extremamente constitucionais e que as pensões e os direitos adquiridos, devido ao seu “peso brutal”, sejam declarados inconstitucionalíssimos. Enquanto tal não acontecer, o mesmo cronista não hesitará em declarar inconstitucional a própria Constituição, o que, a ser confirmado pelo Tribunal Constitucional, será facto inédito num Estado de Direito.

No fundo, Henrique Raposo acaba por repensar o aforismo “A lei é dura, mas é lei”. Para ele, a lei não é suficientemente dura, inferindo-se, portanto, que não pode ser lei. Para o corajoso cronista, a Constituição é, portanto, mole. Ergo, a Constituição é inconstitucional.

Para Raposo, só quando for possível limpar a Constituição das molezas que a afectam será possível resolver a crise, a bancarrota e a realidade, porque todas as três são consequências dos “tais “direitos adquiridos” de partes da população”, direitos esses tornados intocáveis por uma lei praticamente ilegal. [Read more…]

Adquiridos, a tua tia

Direitos conquistados.

O dogma dos direitos adquiridos

Ao que parece a ministra da Justiça decidiu legislar contra a crise, cortando nas gorduras inúteis do estado e promovendo a solidariedade social, dois em um que se obtém acabando com os longos processos em tribunal porque um sem-abrigo rouba um pacote de bolachas ou um sabonete.

A direita já lhe chamou de socialista para baixo (a direita não faz a mínima ideia do que é o socialismo mas gosta de usar a palavra como insulto, a sua imitação do clássico “fácista”), horrorizada, como diria Noronha de Nascimento, com a perda do direito adquirido à propriedade privada, neste caso em formato microscópico. Quando as hordas de pobres lhes invadirem as macro-propriedades vão ter outro colapso, tipo 75. Habituem-se, saiam da zona de conforto, emigrem para a Alemanha e deixem-se de pieguices.

Era uma vez um país muito muito pobre

Há muito pouco tempo, num país muito muito perto, os governantes disseram que o país só ficaria rico se os seus habitantes ficassem cada vez mais pobres, tal como já tinha feito um outro governante do mesmo país que andava sempre de botas e que acabou por cair de uma cadeira.

Esses governantes já tinham sido governantes e eram amigos de outros que também já tinham sido governantes. Como eram muito comilões, passaram anos a comer o que era deles e, sobretudo, o que era dos outros. Também deram de comer aos amigos e aos amigos dos amigos. Um dia, descobriram que a comida tinha acabado e puseram a culpa nos habitantes.

Os governantes começaram, então, a tirar tudo aos habitantes do país, e disseram que os habitantes tinham sido uns privilegiados e que, agora, precisavam de aprender a viver com menos ou que até deviam pensar em ir para outros países ou que era uma sorte perderem apenas quase tudo o que tinham, porque é melhor do que perder tudo o que tinham.

Como os habitantes não estavam habituados a contrariar governantes, vieram grandes fomes e doenças. Os habitantes que se revoltaram não eram ouvidos ou eram calados. Muitos habitantes morreram, porque os médicos deixaram de tratar os que não tinham dinheiro para pagar os tratamentos. Outros habitantes passavam tanta fome que chegaram a beatificar o bolor de um pão encontrado no lixo. Outros fugiram para países distantes, onde aprenderam a ler de tal maneira que perceberam que não podiam voltar para o país deles.

Ao fim de alguns anos, deu-se o milagre: os habitantes que ainda estavam no país ficaram muito pobres e agradecidos. O país estava, agora, muito muito rico.