A pedagogia do oprimido. As minhas memórias de Paulo Freire

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Recebi-o no Instituto de Ciências Sociais, da Organização Mundial para a Educação e a Unidade-ORMEU, da UNESCO, que eu presidia. Não tinha trabalho, convidei-o a ser mais um docente do Instituto. Mas que docente! Corria o ano de 1966. Fugia da perseguição irracional do Presidente do Brasil, Marechal Castelo Branco. Esteve meses em prisão e submetido a tortura.
Antes, mandei-o descansar, mas Paulo era Paulo Freire: o seu melhor descanso era ensinar. Começou de imediato.
Eu tinha 24 anos e ia casar e partia para a Grã-Bretanha para estudos de pós graduação. O Paulo, talvez trinta e oito ou quarenta. Este texto é das minhas lembranças do nosso trabalho de alfabetização em conjunto. Eu era advogado, o Paulo teimou e foi estudar Antropologia, e Antropólogo sou, ao longo da minha vida, desenvolvendo a especialidade que aprendi de ele: Etnopsicologia da Infância. Os anos passaram. Estava na aldeia galega de Vilatuxe, a morar na casa do meu amigo Herminio Medela e família, um amigo fraterno, Ramón Maiz, foi-me visitar para me avisar que Paulo tinha falecido a 1 de Maio desse ano de 1997. Chorei por ele. Está marrado na biografia História de Vida, que escrevi para Herminio: Como era quando não era o que sou. O Crescimento das crianças, Profedições, Porto, Portugal. Livro sempre comigo. Eu era Don Raúl, o Herminio, meu compadre avô.

1. Uma noite.

Eramos um grupo de sete ou oito pessoas. À noite. Quando os camponeses têm que sair de casa e entrar numa sala de aulas. Eramos sete ou oito; seis deles, calados e de vista serena, sobre a mesa. Inquilinos chilenos, picunche, huilliche, ou com um certo ancestral ibérico. Mãos no colo, chapéus na cabeça, manta sobre o corpo – um poncho. E eu perguntava: “os vossos filhos vão à escola?”, Eles, olhos fixos na mesa, dizem “Sim”. Monossilábico. Difícil de falar. Difícil de conversar. E eu, “a qual?” e eles ” a do fundo”. Silêncio. E pergunto: “e os filhos do patrão, também?”, eles reagem vivamente: “Não, não, nem pensar! Eles vão a um colégio bom, lá longe, em Santiago. Aí onde nem castelhano se fala…!” O que era dito com orgulho e brilho nos olhos. E eu, “Mas, de certeza, os vossos filhos aprendem também outras línguas”.  “Não os nossos filhos não, são muito burros”, com raiva respondem dois. “Burros?”, pergunto. Responde um, “feitos por nós!”. “E para quê?”. “Para que saibam trabalhar, pois”, diz o mais calado, esse ao qual eu endereço a pedrada “Burro como o senhor que nem sabe castelhano…” diz com reticência. Acrescenta o mais ousado “que os meus pais não me tinham deixado ir à escola, para trabalhar com eles”, “e para eles” acrescento, “porque havia que dar trabalho para o patrão, pois iñor“, me diz com força. “Não sabe que se não dermos ao nosso pai tempo para trabalhar nas terras do senhor, o pai, a mãe e nos, íamos à rua?” “Ir à rua, ir à rua, ser despedido?” Pergunto, e todos dizem “pois”. “Então o patrão é má pessoa!”, frase que saiu espontaneamente da minha  da minha boca. “Oiça, não, ele até nos dava presentes para as nossas mulheres, e pão às sextas-feiras”. “Presentes e pão, de favor?”. “Pois”. “De favor”, reitero. Silêncio. Calam. Pensam. Calo. Silêncio. Pego no giz, escrevo “o patrão é bom” e desenho uma figura de homem com uma auréola na cabeça e digo “o São Patrão”, e todos riem, e às gargalhadas quando eu reitero a santidade do homem. Esse que ia “às Uropas todos os anos” aí onde “eu nunca tenho colocado os pés”. Conclui depois de duas horas de compararmos a vida deles com a do proprietário do latifúndio, o “patrão, dono do fundo”. E assim, pela noite dentro, até repararem como é que eram usados e abusados. Um ressonar me diz que um já dorme, e fechamos a sessão.

2. As noites.

Das sessões de debate de conceitos chave na epistemologia rural: trabalho, salário, lei, viagens, lazer, filhos, escola, aviões, família, outros. Genealogia deles e do proprietário; contexto deles, e do proprietário; descanso deles, e do proprietário. Sindicato. Direitos. Cadeia. Polícia. Deus. Ordem. Disciplina. Igualdade. A lei do mais forte. A estratégia do mais fraco. O medo e a liberdade. Tecnologia. Animais. Como curar esses. Como fugir da maquinaria, que bate e parte os ossos. Método comparativo, na observação participante do convívio quotidiano nas suas casas, de noite a noite, períodos prolongados de convívio. Método relativo, quer para eles entender, quer para eu entender. Relativização do sentir mais forte, o etnocentrismo, esse ideal de nos, que não permite a comunicação, hierarquicamente organizada. E as noites. E as noites que permitiam essas noites de debate e transferência de entender o real contextualizado de cada um, de esses compatriotas separados pela Historia da formação do seu estrato. Essas noites, quando reunia sob árvores do mato, aos homens das mulheres com as que eu falava durante o dia, enquanto andava e andava pelos caminhos rurais. Essas mulheres que davam chá e perguntavam sobre a nossa vida pessoal. Esses homens que apareciam quando ninguém podia vê-los, chapéus sobre a face, lenços para esconder, disfarçarem, o queixo. O medo á divindade da lei policial do patrão, a divindade que representava a pessoa do patrão – o proprietário de terras e pessoas. Essa frase, que tanto ouvi durante meses de trabalho de campo, proibia que se identificassem uns aos outros. Até nem falavam, porque “sabe-se lá se o senhor, ou qualquer um, não vai contar isto ao patrão, depois, pui inhor” diz um, na sua casa. Eu, inexperiente, percebo que não sabem que têm direito à terra, que podem denunciar o patrão e ficar com quintas do latifúndio, serem coproprietários e deitarem fora o grande absolutista fundado e instituído pela invasão ibérica do século XVI. Inexperiente. Pelos meus anos. Pelo costume de classe que ia comigo. Inexperientes eles. De pensar que podiam agir e avançar para dentro da produção conjunta da terra própria. Inexperientes. De que a lei permitia essa mudança. Inexperientes da mudança e a temer a punição divina e terrena. Inspirado, levo a passear pela zona ao Bispo, meu amigo, sem Mitra, anel ou báculo. De preto, o que devia ser roxo. E aos Padres. Para dizerem Missa no meio das pessoas e na sua língua natal, sem latim, a língua Romana Universal. Inspirados, agimos mão na mão de Paulo Freire, durante horas, as ideias e os gestos, para procurar uma alternativa possível para hábitos históricos rígidos no tempo, pelo tempo acumulado ao longo da cronologia. Estruturados no ideal, na cultura rural, na cultura urbana. Noites dos anos 60, primeiro, e da época da Sua Excelência, o Sr. Presidente da República Dr. Salvador Allende, depois. Quando os inquilinos camponeses, quer huilliche, ou picunche, ou mapuche mestiço, quer chilenos geneticamente misturados, ou chilenos com um certo ancestral ibérico, nenhum deles sabia entender de que tinha poder político. A rigidez cultural da Historia, o não permitia. Para o nosso desespero, feito serenidade no relativismo cultural do trabalho de campo.

3. Os conceitos.

Era o que o Paulo costumava insistir que deviam ser usados. Os conceitos das pessoas. Não os das teorias das ciências. Mal entendíamos nós, os seus etnocêntricos discípulos, de que o camponês, ou o membro de um bairro de lata, ou um membro do Sindicato de alguma indústria, fossem capazes de terem teoria. A teoria era fruto da experiência. Qual, a dos inquilinos? A vida, diz Paulo, a vida é a experiência. E é na vida que são retirados os conceitos, no convívio com as pessoas: no ver, ouvir e calar, até saberem bem o que se fala e o conteúdo da conversa. Esse conteúdo da conversa é o que é para debater. A literacia de hoje, a antiga alfabetização na qual tantos trabalhamos no mundo todo, está em fornecerem às pessoas os textos que manipulam no seu quotidiano. A literacia não é o ler e o escrever do alfabeto. Alfabetizar é deixar esclarecido – consciente – na mente popular, o que a mente popular fala todos os dias, sem dar por isso. A oralidade debatida, é a melhor aprendizagem para a ação. De todas até agora invocadas no texto, esta foi a melhor frase do Paulo. A mais pedagógica para nos, para os alfabetizados do mundo, a seguir. Ação que é entender o funcionamento da terra, que é vista e trabalhada pelo costume, mais que pelo hábito de fazer a seguir o debater. Porque o hábito era, por séculos, de fazer sem debater, de fazer por ver: o que não se explica, não fica consciente. E o debate faz consciência. Consciente está em vós, acrescentava o Paulo, o método teórico, esse com o qual, os vossos pais e os seus amigos, vos refreiam a espontaneidade e as iniciativas. Isso é que é preciso aprender para depois relativizar. E o relativismo para vós, é ouvir, ver e calar. Nunca ver, ouvir, calar, sentir, pensar, agir. Mas, os vossos vos travam. Porque o que é sabido na ciência, não mobiliza ninguém, não é bandeira de luta, mas sim do vosso luto pela perda dos afeitos, do luto rural e popular, pela perda do saber reprodutivo. E assim foi que fomos separando o nosso ideário social, e o popular. O popular não era social, nem podia ter esse luxo de partilhar, capaz de desestabilizar o trabalho caridosamente permitido pelo patrão. Era altamente individual, para poder estrategizar comportamentos com novos recursos, a serem usados em silêncio, ou no silêncio doméstico. Para ganhar, com a ventagem da produção melhorada, o favor do senhor. Era altamente genealógico, da memória do que os pais e os avós faziam, para fazer outra vez. Em grande silêncio, aprendíamos a viver com eles, e a fazer uma lista dos temas conscientes nas palavras, e dos não conscientes no agir, para depois debater. Primeiro, com o Paulo e nós; depois, com os grupos que estudávamos. Quando eu aprendi que estudá-los, era ouvi-los sem comandar. E debater depois de observar, ouvir, calar, sentir, pensar, debater, agir.

4. O debate.

Resultava sempre da correlação entre a genealogia dos indivíduos do grupo, e que no tempo dos seus, tinha acontecido. Não era suficiente traçar o genograma; ao pé de cada geração de pessoas, escrever os acontecimentos históricos relevantes que tinham sido o contexto da vida da pessoa ou pessoas conhecidas. E genogramas dos proprietários das indústrias ou latifúndios, para comparar. Comparação de genealogias em genogramas contextualizados, sem comentar. Porque o comentário do alfabetizador, investigador o professor das escolas ou grupos de debates organizados pelo País fora – Paulo no Brasil, na Tanzânia, no Chile – Eu, no Chile, na Escócia, na França, na Espanha, na Galiza e no Portugal especialmente, na Inglaterra. Metodologia não destinada a fomentar raiva nem ódio, nem desrespeito de si e dos outros: isso, era impossível de gerar em pessoas que tinham uma hierarquia vincada de emoções e de estratos sociais. Amor aos progenitores e amor aos descendentes, emoção que era a metáfora do pão, do vestido, da proteção. Pão, vestido e segurança que estavam adstritos ao proprietário dos bens pelas próprias pessoas, cuja memória individual reproduzia a História ouvida aos avós, que contavam o que os seus avós já tinham referido: dezenas de anos de factos reproduzidos iguais, semelhantes, sempre com um senhor à cabeça. Senhor que sabia que isolar a sua hierarquia de visão e ouvidos do povo. Senhor que era temido, e por isso amado, para que a sua mão não fosse bater nos pobres, que ficavam sem vestido. Dos senhores só era bom falar para desmistificá-los, na medida em que o debate comparativo mostrava de quem a vantagem, de quem a perda, e no quê. Ensinar raiva não só não era possível. Não era também preciso. Havia já raiva histórica nas pessoas contra histórias sabidas de si próprias, contra os mais próximos que não queriam entender. Uma ausência de identidade entre o motivo da raiva, e a relação ou interação que a causava. Aprendi que só as crianças eram capazes de dizer quem era o culpado da miséria, quando brincavam. Aprendi que a festa, o carnaval, a procissão, o ritual interativo, permitia as pessoas desabafarem e definir o perfil de quem faz dono, e no que é que faz. O aprendi do Paulo, que sempre o comentara.

5. As mulheres.

Eram as mais espontâneas. Falavam sem medir as palavras. Ou seu estatuto de seres inferiores, assumido cedo na vida. De seres do pecado, do demónio, do mundo e da carne, o facto de serem bruxas, precisadas de serem batidas e mantidas á distancia – exceição para procriar sem desejo com a mulher sacramental e para apagar o desejo com amante e a prostituta, conforme a Concilio de Trento do Século XVI tinha escarafunchado nas mentes católicas colonizadoras e colonizadas – Mulheres situadas conjunturalmente em uma situação privilegiada para falar mal, para falar dos outros, mal. Para os mexericos, para as conversas de análise do perfil dos donos, para transferir a informação. É o que cedo aprendemos, de que eram pessoas a saber menti ou verdade  parcial, mas a saber por entender contextos observados sempres, desde fora. Mais de mil senhoras, andaram nos cursos que, com a metodologia criada, organizámos durante a época em que estive no Chile, quando Allende Presidia a República. Lá iam elas, às sessões da nossa Escola Camponesa, organizada no campus rural da nossa Universidade Católica do Chile; orgulhosas de serem universitárias, colocavam a tiara académica como uma algema. Algema que as fazia falar. Debatíamos o conceito trabalho. E o conceito igualdade perante o sexo masculino. De trabalho, nem queriam dizer um ai, porque era muito pesado. Quanto aos seres masculinos, eram tontos porque nem reparavam que elas mandavam e eles calavam: a comida era com elas; as crianças, criadas por elas; o trabalho a fazer, aceite por elas. A vertigem que em 1973 me levou outra vez fora do Chile, queimou os meus registos e os quilómetros de fita que, com Blanca Iturra e Nilsa Tapia, as minhas assistentes, tínhamos gravado desses debates. Apagadas ao longo de uma noite e um dia pela minha mulher, caso fossem requisitadas pelos novos aos da Nação. Mas, ficou a memória que me permite escrever estas linhas. Essa memória sintetiza-se no dito; e na lembrança das mulheres a dizer: “Oiça lá, Don Raul, não fale mais, que já nem quero voltar a casa! Haja Deus, para que as paredes explodam e tudo venha ao chão!”.Dois maridos abordam-me um dia e dizem: “então, o senhor é o professor da minha mulher? Mal raio o parta! Antes, era eu a mandar, agora tenho que consultá-lo todo”. Enquanto o outro acrescenta “Ainda bem, Don Raul, já não sou só eu a ter que pensar em tudo”. O Paulo tinha-me ensinado a base; a pesquisa, materializou-me as ideias. O terramoto social que o neoliberalismo lançou no Chile a 11 de Setembro de 1973, acabou com a experiência de dois anos. Quer Paulo Freire, quer eu, a sair. A sermos deitados fora: ele, por ser estrangeiro. Eu, por ser chileno estrangeirado, conhecedor de ideias, muito graduado, traidor de classe, da minha classe. Deitado fora pelo Pai, pela junta ditatorial, pelas espingardas que iam fuzilar as ideias que mudam o mundo, ao fuzilarem á pessoa. Conseguimos fugir: Paulo, pela Embaixada Sueca; eu, pelo grande Pai que tive, Jack Goody e o meu hoje reformado Bispo, esse que ia de preto as populações, Carlos González Cruchaga. Uma filha nasceu-me, a filha do símbolo da vida renovada. Companheira deste continuado exílio. Mulheres nossas, que tomaram conta de nos.

6. Os homens.

Tímidos. Muito tímidos. A esconder a fraqueza trás o silêncio no lar, a bebedeira com os amigos, a procura de outras mulheres não vinculadas a eles pelo ritual, a lei ou a maternidade. Até que um filho de outra nascia. E passavam a alimentá-lo, com o saber da outra mulher. Tímidos. Mas, apenas, tímidos. Porque cedo estavam já no trabalho da horta da casa, para depois ir trabalhar a terra dos senhores primeiro, a comunitária ou a coletiva depois. Ventura Galván, amigo como Hermínio tinha por hábito sair de manhã noite, a regar, lá em Huilquilemu, no sítio onde ficavam as, agora, suas terras; enquanto Margarida Huenchu, sua mulher, com oito filhos, abandonada por Ventura por causa do terror a los militares, após estarmos juntos no campo de concentração. Margarida preparava a comida do dia e tratava dos animais domésticos. A minha vida com eles, ensinou-me a trabalhar conceitos rurais, da forma que o Paulo tinha definido nas nossas conversas. Ensinaram a ler o texto que o quotidiano, tecia. Foi essa amizade de morar em casa deles, na aldeia de Huilquilemu de Talca, Vale Central do Chile, que mandou, um dia, parar as suas atividades: fartos de não poderem ler nas suas vidas o uso da tecnologia para o trabalho produtivo das terras, iam Margarida – guiando ao seu homem Ventura – e este, aos outros todos, para devolverem as terras expropriadas ao senhor, para o Estado. Sorte teve em saber, entender a desventura do que viviam como proprietários-produtores, com palavras simples, pedi para voltarem para trás. Voltaram. Bem sei, com alegria, que tinha aprendido deles. Senti ter colaborado assim, a não aceitar uma derrota popular, tornar-se pública. O que me esqueci desse dia, foi que o Paulo tinha dito mil vezes que o poder político estava na apreciação do povo e não na estrutura do poder. Embora o poder tiver armas, conjuntura desses tempos, inimigos com armas mais poderosas. Porque o poder era constituído por ideologias sem experiência dos factos íntimos das consciências pragmáticas do quotidiano. Lembrei, e escrevi o artigo – mais um –, que a nossa Revista Chile Hoy, que a Marta Harnecker, discípula de Louis Althusser em Paris, publicara na nossa Revista, já jornal semanal: A reforma agraria, uma medida impossível: a greve dos conchenchos. (intermediários dos produtos agrícolas). Os homens tímidos tinham a força para defender os seus interesses. Na prisão, Ventura disse-me: “isto é assim, porque Deus está zangado por nos revoltarmos contra o patrão, o seu representante”, e eu tímido de medo, pedia para ele calar. Contra as ideias do Paulo. Essas, de nunca abdicar e ensinar com os factos. Agir. Mas, sem debate? A conjuntura tinha mudado. Ventura viveu, a matar a fome. Eu, escrevo hoje, 41 anos depois, dos trinta e três que sou um outro, sem mais raiz do que este textos. Paulo, voltou a sua terra, a esse Recife onde foi para a Historia. Os homens, fracos. Somos todos fracos, quando há um outro que manda. Os meus, eram fracos antes, durante, depois. Fraqueza, fruto da falta de entender o debate. Do peso da cultura. Da falta de estrutura política que acompanhe, essa outra frase do Paulo Freire.

7. Um oprimido.

Que fez pedagogia: Como digo no meu comentário mais à frente. Oprimido, porque andou no exílio duas, ou mais vezes. E porque o seu contexto oprimia o seu espírito: uma família toda, a sentir saudades da Pátria, para tornar as saudades logo a seguir. Um fez pedagogia, no entendimento do seu contexto derivado do contexto, e compreensão do mesmo, dos outros. A sua metodologia é, – viva como está na sua obra –, retirar uma palavra central do vocabulário usado no quotidiano, para torná-la explícita na consciência histórica da pessoa e dos seus conviventes. Uma pedagogia de explicitar o que está consciente, mas sem palavras para entender o que se diz. Tem a ver com a psicanálise, como foi exprimido por ele próprio, apenas com o modelo. Freud tirava dos sonhos e das palavras, as reminiscências que tinham ficado guardadas no inconsciente. Freire, retirava a palavra do contexto da História e da experiência. Eis a pedagogia de tornar conscientes os factos: que sejam dados para quem os produz. Para esta metodologia, é preciso saber História. Economia, Ciência Política, Antropologia, Ciência da Educação, Sociologia, Etnografia, conviver com as pessoas que queremos alfabetizar à Freire. Como Filósofo e Antropólogo, Freire usou a teoria para construir, junto com a sua equipa, seminários de debate. Debate que ele orientava, enquanto deixava falar os que viviam no campo, a observar sem intervir. Não é apenas a sua obra em livros a importante. É o seu trabalho, observado e participado por tantos de nós, que é o melhor texto que, dele, li. Paulo Freire tinha a capacidade de virar para dentro da consciência da pessoa, a questão que a pessoa colocava. Como se eu perguntar, o que é o povo? E Paulo ripostar: “Qual é o que tu conheces”, e eu começar a hierarquizar experiências alinhavadas no seu saber etnocêntrico, e Paulo a desalinhavar-las com comparações retiradas da sua própria experiência. Até que o conceito ficava arrumado conforme o saber de quem as colocara. Uma pedagogia do oprimido, aprendida no seu convívio com os habitantes das favelas de São Paulo, Brasil; e da multiplicidade de estudantes de diversas culturas do mundo, que lhe confidenciavam as suas emoções juvenis, irracionais.

8. As ideias.

Que exprimo no texto, são o mais puro da minha lembrança. Anos volvidos, até nem tem sido, para mim, fácil separarem Paulo Freire, de Meyer Fortes, de Jack Goody, os meus mestres. É daí que eu próprio tenho desenvolvido, a partir dessas pedras, no meu trabalho pessoal. Que até posso não distinguir o meu de o deles, os meus mestres, esses que moram no altar dos meus ancestrais. E que transmito no trabalho com as minhas equipas de diversos sítios do mundo. O terramoto social de 1973, no País denominado Chile, afastou-nos para sempre. Ficamos a saber uns dos outros, mas nunca mais tivemos o prazer saber freiriano de nos ver. Faz um ano, enquanto reestudava uma aldeia galega 25 anos depois, avisam-me da sua morte. Escrevi um obituário. Era um 1º de Maio de 1997. O dia justo para morrer, esse homem que lutou, epistemologicamente pelos trabalhadores. Para dar ideias aos que lutavam politicamente por eles. É estranho, mas enquanto escrevo, a lembrança do que com ele aprendi, faz-me recordar a Teologia da Libertação. Essa que aplicamos no Chile de Allende – quando lá estive-, no movimento Cristãos para o Socialismo. E que, retornado à Europa, tenho falado aos cristãos de cá, o que me permitiu trazer centos de chilenos que o Primeiro-ministro Britânico (Billy Callaghan) dos anos 70 me solicitara escrever numa lista. Quer Paulo Freire, quer eu, pertencemos à cultura de amar-se a si próprio para amar ao próximo, essa cultura cristã à qual, no Ocidente, todos pertencemos. Foi daí que Paulo Freire retirou o seu material mais primário, para construir a sua obra teórica, em prol do socialismo. As ideias estão vivas em nós, e em milhares de pessoas que fabricaram o seu texto mental próprio, a partir do Silabário para Alfabetizar, que escreveu primitivamente no Brasil dos anos 60. Quantos, hoje em dia, nem sabem que sabem que Paulo Freire entrou na Historia pela porta largo e grande, esgotado por tanta procura de tanta pessoa. Essa admiração que mata para enterrar a semente que floresce. Freire, a raiz alemã do conceito latino libre. Liberdade que o fez trabalhar também no Portugal de Abril.

Raul Iturra

Professor Catedrático de Antropologia Social, da Educação Social e da Educação Simples

Parede, 25 de Abril de 1998.

Tratado a 11 do 11 de 2005, para Etnopsicologia da Infância.

Reescrito em Portugal a 11 do 11 de 2011

Bibliografia do texto

Fortes, Meyer, 1938, Sociological and psychological aspects of education in Taleland, in Africa, 1938, Vol.XI, N 4. Página web para pesquisar o facto: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Meyer+Fortes++Fortes+Sociological+and+psychological+aspects+of+education+in+Taleland&btnG=Pesquisar&meta=

1983, Oedipus and Job in West African Religion, Cambridge University Press. Página web com texto:  http://www.questia.com/PM.qst?a=o&d=53364421

1987, Religion, morality and the person, Cambridge University Press

Freire, Paulo: A obra está citada na Revista. Página web para investigar: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Meyer+Fortes++Religion%2C+morality+and+the+person&btnG=Pesquisar&meta=

Goody, Jack, 1977, Memoire et aprentissage dans les sociétés avec et sans ecriture: La transmission du Bagré, in L’Homme, Vol XVII (I), página web para investigar  http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Jack+Goody+&btnG=Pesquisar&meta=

1980, Les chemins du savoir oral, in Critique, Vol.XXXVI, N394, Paris, Minuit. Sítio para investigar: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Jack+Goody+Les+chemins+du+savoir+oral&btnG=Pesquisar&meta=

Iturra, Raúl, 1973 El paro de los conchenchos in  Revista do Centro de Estudios de agricultura y sociedad (C.E.A.S.), Chile Hoy, Santiago de Chile. Não há pagina web nem há texto: todo ardeu em 1973.

1990: A construção social do insucesso escolar, Lisboa, Escher. Motor de pesquisa: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Raul+Iturra+A+constru%C3%A7%C3%A3o+social+do+insucesso+escolar&spell=1

1996: O saber das crianças, Setúbal, I.C.E. (org. e escritor). Motor de pesquisa, como o previo.

1997: O imaginário das crianças. Os silêncios da cultura oral Lisboa, Fim do Século, 1ª edição; 2ª edição 2007, Motor de pesquisa: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Raul+Iturra+%09O+imagin%C3%A1rio+das+crian%C3%A7as&btnG=Pesquisar&meta=

1998: Como era quando não era como sou O crescimento das crianças, Profedições, Porto. Motor de pesquisa: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Raul+Iturra++1998%09Como+era+quando+n%C3%A3o+era+como+sou+O+crescimento+das+crian%C3%A7as&btnG=Pesquisar&meta=

2004: A religião é a lógica da cultura, em Rodrigues, Donizeti (0rg) En nome de Deus. A religião nas sociedades contemporâneas Afrontamento, Porto. Motor de pesquisa para o meu texto;  http://aventar.eu/2011/04/05/a-religiao-e-a-logica-da-cultura-2/

Vídeo La Marseillaise:  http://www.youtube.com/watch?v=L1QVeKN1oyM

Comments

  1. maria celeste ramos says:

    Para erradicar ervas daninhas aprendi o que eram herbicidas e fungicidas e arboricidas ?? Como se denomirá o “produto” de erradicação de prssoas ?

    • Raul Iturra says:

      Não consigo entender o comentário de Maria Celeste. Não quer que eu escreva, não gosta do Paulo, ou refere-se aos patrões dos camponeses? Estou tão habituado a receber pontapés no Aventar, que somatizo todo comentário! Queira desculpar!

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