A língua portuguesa e os acordos ortográficos

1 de Janeiro deste ano de 2010 era a data prevista para a entrada em vigor do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. No entanto, nada de concreto foi ainda avançado. Isabel Alçada, ministra da Educação, limitou-se a dizer que, no sistema de Ensino, o Acordo vigoraria no «início de um ano lectivo». Em que ano? Adiantou também que há adaptações a fazer, no plano técnico e no humano. Que adaptações? Reina, pois a indecisão. Enquanto esperamos, falemos um pouco sobre a fixação do idioma e na história dos Acordos Ortográficos.

O único documento que nos ficou do português proto-histórico, no que se refere à linguagem não literária, é um texto notarial, a «notícia de torto». Mais ou menos pela mesma época, em 1214, foi redigido o testamento de D. Afonso II que utilizou pela primeira vez o português em detrimento do habitual latim. No que respeita à linguagem literária, existem mais pistas. Carolina de Michaëlis datou de 1199 a cantiga «Ay eu, coitada, como vivo» que a investigadora atribuiu a D. Sancho I (1185.1211). No entanto, não existe consenso quanto a esta atribuição, há quem indique como autor Afonso IX de Leão (1188-1230) ou mesmo Afonso X, o Sábio, de Leão e Castela (1252-1284). Como se sabe, a língua literária, por excelência, da corte leonesa era o galego-português.

Sem que na linguagem corrente surgissem textos normativos, a linguagem literária ia sendo pautada pela escrita de mestres – Fernão Lopes, Gil Vicente, Sá de Miranda, Camões, António Vieira, Bernardes, Francisco Manuel de Melo… Na era de quinhentos surgiram as primeiras tentativas de aprofundar o estudo do idioma e de lhe criar regras – Fernando Oliveira, João de Barros, Duarte Nunes de Leão. Esforços que se prolongaram pelo século seguinte com João Franco Barreto, Madureira Feijó, Luís António Verney, entre outros. Preocupavam-se com a normalização da pronúncia e da ortografia, tentando nunca quebrar o vínculo do vernáculo com os seus antecedentes latinos.

Contudo, foi um clérigo francês residente em Portugal, Raphael Bluteau, quem organizou, em 1712, um primeiro inventário de palavras portuguesas o «Vocabulario Portuguez e Latino, em 8 volumes (1712-1721). O título completo é «Vocabulario Portuguez e Latino, Aulico, Anatomico, Architectonico, Bellico, Botanico, Brasilico, Comico, Critico, Dogmatico, etc. autorizado com exemplos dos melhores escriptores portuguezes e latinos, e oferecido a el-rey de Portugal D. João V». Um título e tanto.

Em 1789, finalmente um dicionário – o «Dicionário da Língua Portuguesa», escrito por António de Moraes Silva, feito a partir do «Vocabulário» do padre Bluteau. Em 1813, uma edição revista e acrescentada desta obra transformava-se no famoso «De Morais» que ainda hoje é uma referência para todos os trabalhos que nesta área se queiram fazer. Em 1798 saiu o famoso «Elucidário» de Frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo. Foi com estes materiais diccionarísticos, sem um grande acervo de normas, que os grandes escritores do século XIX trabalharam – Garrett, Herculano, Camilo, Antero, Eça e tantos outros. E que grande literatura construíram!

Em suma, entre o século XVI e o princípio do século XX, o português escrito subordinava-se a uma matriz etimológica – a origem latina e grega de um vocábulo determinava a forma de o escrever. No Brasil seguia-se o mesmo critério. Mas, em 1907, Academia Brasileira de Letras desencadeou um processo de simplificação que fugia a esta tradição, dando início a uma deriva relativamente ao português de Portugal.

Em 1910, após a implantação da República, foi nomeada uma Comissão com o objectivo de estudar a simplificação e uniformização do uso ortográfico da língua em publicações oficiais e educacionais nos dois países. Na sequência desta medida, em 1911 foi promulgada em Portugal a primeira Reforma Ortográfica, procurando uniformizar e simplificar a escrita. A reforma aplicada em Portugal, teve efeito na metrópole e no espaço colonial, mas não foi aplicada no Brasil.

Em 1915, a Academia Brasileira de Letras tentou uam aproximação da ortografia brasileira à portuguesa, mas essa decisão encontrou forte resistência, sobretudo dos intelectuais brasileiros, e foi revogada em 1919. Em 1924 as Academias das Ciências de Lisboa e a sua congénere brasileira tentaram encontrar critérios comuns de grafia, mas as alterações introduzidas em 1929 no Brasil aumentaram a distância entre as duas normas. Houve uma outra tentativa de acordo em 1931 que nunca chegou a ser formalizada. Em 1943, foi realizada em Lisboa uma reunião entre Brasil e Portugal visando de novo a harmonização das duas normas.

Deste encontro resultou o Acordo Ortográfico de 1945, que não foi ratificado pelo Brasil, mantendo-se ali as regras de 1943. Nos anos 70, foram promulgadas alterações ortográficas no Brasil, que só em 1973 foram aplicadas em Portugal, reduzindo ligeiramente as divergências ortográficas entre as duas normas. Em 1975, as Academias dos dois países elaboraram um novo projecto que, no entanto, não recebeu aprovação oficial.
Em 1986, sob o governo de José Sarney foi organizado um encontro dos países lusófonos no Rio de Janeiro. Foi apresentado um Memorando sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Em 1990, as Academias elaboraram a base do Acordo Ortográfico, agendando-se a sua entrada em vigor para 1 de Janeiro de 1994. Levantou-se grande celeuma quer em Portugal, quer no Brasil, sobretudo entre os intelectuais. Em 1996, o Acordo foi ratificado por Portugal, Brasil e Cabo Verde. Em 2004, em Fortaleza os ministros da Educação da CPLP reuniram-se, sendo proposta a entrada em vigor do Acordo com a ratificação de apenas três países. Timor-Leste assistiu pela primeira vez.

Em 2008 o Acordo foi aprovado por Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Brasil e Portugal. Previa-se nessa altura a sua entrada em vigor no início de 2009. O que não aconteceu. Um dado novo é a criação da Academia Galega da Língua Portuguesa, em 20 de Setembro de 2008, e sediada em Santiago de Compostela. Esta Academia propõe-se assinar o Acordo Ortográfico e bater-se pela sua implementação na Galiza . E em Portugal, quando será implementado?

Comments

  1. Luis Moreira says:

    Belo trabalho!

  2. Carlos Loures says:

    É uma espécie de GPS.

  3. João de Medeiros says:

    Com tanta inércia do governo português, em matéria económica e social, não admira que o seja também a nível cultural. Portugal vai perder a liderança e o comboio da língua portuguesa, e vai, não o faz por menos.

  4. Carlos Loures says:

    Por muito que nos doa, o Brasil é o grande motor do nosso idioma comum. Talvez um acordo (mesmo não sendo o melhor) seja preferível a uma deriva total. A adesão da Galiza é, por outro lado, uma boa notícia. Nem tudo é negativo.

  5. João Roque Dias says:

    Algumas notas sobre a a aplicação dos AOs no Brasil, pelo Prof. Maurício Silva (USP): Reforma de 1911: «Curiosamente, a despeito das inúmeras críticas que a reforma portuguesa recebera no Brasil, sua aceitação acabou sendo até maior do que aquela anteriormente realizada pelos acadêmicos brasileiros, pelo menos nos primeiros anos subseqüentes à mesma: em 1915, por exemplo, a própria Academia Brasileira de Letras acabaria aceitando um parecer de Silva Ramos (julho) que tornava oficial o sistema ortográfico lusitano, eliminando todas as divergências ortográficas entre Brasil e Portugal (novembro), apesar de que quatro anos depois (1919), a mesma academia voltaria atrás, renegando a proposta de Silva Ramos e abolindo a resolução de 1915. O amor-próprio e o sentimento nacional brasileiros parecem ter, no final das contas, prevalecido». Sobre o AO de 1945: «Permaneceu, portanto, uma situação de divergência entre as duas nações signatárias do acordo, já que o mesmo foi, num primeiro momento, adotado por Portugal (Decreto 35.228, de 08.12.1945) e pelo Brasil (Decreto-lei 8.286, de 05.12.1945), mas posteriormente rejeitado por este (Decreto-lei 2.623, de 21.10.1955)».

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