Memória descritiva: A capital e o capital – («Braga reza, o Porto trabalha, Coimbra estuda e Lisboa diverte-se»)

Capital é palavra com muitos significados. Das mais importantes acepções destaco duas, dois substantivos com géneros diferentes – o capital, acepção do foro da economia; a capital, na área da geopolítica. Dois famosos livros, entre muitos outros, celebram cada uma das acepções – «O Capital», de Karl Marx, e «A Capital», do nosso Eça. Como adjectivo tem também a sua importância – pena capital, por exemplo, para quem a ela tiver sido condenado, assume uma dimensão transcendente.

O significado de que, para já, me quero ocupar, é aquele sobre o qual Eça de Queirós dissertou num romance que viria, depois, a dar lugar à sua obra-prima «Os Maias». Isso mesmo, a capital de Portugal – Lisboa. No seu livro, Eça relata as vicissitudes de um provinciano numa capital, também ela provinciana. Porque naquela época final do século XIX, tal como agora, a capital era um espelho do País. Como se cada país tivesse a capital que merece.

Em Portugal, a primeira sede da Corte foi, como se sabe, Coimbra. Desde a Fundação até 1255, ali esteve instalado o rei. Nesse ano, no reinado de D. Afonso III, a Corte foi transferida para Lisboa. Mas os reis e os seus familiares, conselheiros e servidores iam deambulando pelo território (Mário Soares com as suas «presidências abertas», não inventou nada) – Santarém, Leiria, Coimbra…

Porque, segundo julgo saber, o termo «capital» não existia na Idade Média. Dizia-se a Corte. E a Corte era onde os reis estavam na altura. Estas reais deambulações, desde o século XIV, não incluíam o Porto, pois uma carta de D. Fernando, datada de 1374, marcaria a história do Porto para os séculos seguintes. Por essa carta régia, ficavam os nobres e prelados do reino proibidos de permanecer na cidade Porto por mais de três dias. O direito de aposentadoria que obrigava os súbditos do reino a ceder a sua casa ao rei, a qualquer nobre ou alto prelado que assim o desejasse, deixou de ser observado no Porto. Um privilégio do burgo.

Esta medida imposta pela burguesia portuense, vantajosa no curto-prazo, retirou protagonismo à cidade, dela afastando os eventos mais importantes. Importância que viria a recuperar, quase quatro séculos depois, no consulado do Marquês de Pombal, com a criação da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, em 1756, e situando no Porto as infra-estruturas de escoamento do vinho produzido nas encostas do Douro – na época, o mais importante produto nacional de exportação.

A necessidade de centralizar, de criar estruturas como, por exemplo, a Casa da Mina e da Índias, parece-me, entre nós, ter nascido com os Descobrimentos. Creio que não se utilizava ainda, no século XV, o termo «capital», mas Lisboa começou nessa altura, como maior cidade do País, a concentrar as funções de «cabeça do Império», pois ali se concentravam todos os órgãos gestionários quer das frotas que demandavam os mares, execução de mapas (o termo «cartografia» só apareceu no século XIX), armazenamento das mercadorias que saíam e entravam, e toda essa complicada operação de logística que implicava infra-estruturas fixas.

Lisboa é desde a Idade Média a maior cidade do País. Na lógica que veio pegada ao dealbar do Renascimento, era o sítio ideal para instalar o centro de um império vasto que se espalhava pelos cinco continentes. Como diz Oliveira Marques, no 1º volume da sua «História de Portugal», terá sido «o desenvolvimento de Lisboa que caracterizou demograficamente o fim da Idade Média em Portugal». Era quatro a cinco vezes maior do que qualquer das outras cidades portuguesas.

Ignoro quando apareceu o termo «capital» na acepção geopolítica, mas só o começo a ver mais ou menos generalizado em textos do século XVIII (embora possa surgir esporadicamente em documentos mais antigos). Mas se a palavra não existia ou não estava vulgarizada, existia desde os alvores da Idade Moderna, em Portugal e nos restantes países europeus a realidade da concentração numa cidade dos órgãos de poder e das estruturas e infra-estruturas de governação. Na Corte.

Carlos V transformou Madrid, uma pequena vila no centro geográfico da Península, numa grande capital. Em todo o caso, saudosistas da grandeza espanhola, lamentam que Filipe II não tenha instalado a capital em Lisboa (na época a maior cidade da Península, só acompanhada de perto por Sevilha e Barcelona). Ter-se-ia, segundo ele, com essa manobra, consolidado a unidade ibérica.

Bem, vamos lá «al grano». Como se vê, as razões por que Lisboa é a capital do País são históricas, têm a ver com o desenvolvimento de uma cultura a que hoje chamaríamos tecnocrática. Países houve que preferiram instalar as suas capitais em cidades pequenas e sossegadas – caso da Holanda, cuja capital Haia é, no dizer dos holandeses, a maior aldeia do mundo. Mas mesmo aí, Amesterdão é o verdadeiro centro da economia e da política holandesas. Foi inevitável que a concentração em Lisboa de serviços, indústria, sedes de empresas, gerasse assimetrias que se têm vindo a acentuar ao longo do tempo.

Porém, nada disto aconteceu por culpa de Lisboa, ou seja, dos lisboetas. O mal vem da política centralista. Se o «centro» passasse a ser no Porto ou noutra cidade, tudo ficaria na mesma se não mudassem as políticas e, sobretudo, os políticos. Isto só não vê quem não quer, quem fica cego com o regionalismo e futeboliza a vida nacional.

É uma posição que não conduz a nada. Já estamos divididos em classes sociais; as lutas corporativas afectam muitas vezes o que deveria ser a solidariedade social. Se também nos dividimos em facções regionais, melhor nos governarão os capatazes. Não os da capital, embora possam lá viver, mas os do capital – alcoviteiros e criados de banqueiros e grupos multinacionais.

A porta de acesso poderá ser o regionalismo que, sobretudo a Norte, entristece e enfurece grande parte das pessoas. Têm toda a razão para protestar e para se sentir prejudicados. Parecem-me é estar a ser engenhosamente enganados quanto ao criminoso. Lisboa é a suspeita do costume. Não será que neste crime o assassino é mesmo o mordomo? O mordomo dos senhores, portugueses e estrangeiros, que manipulam o poder

Sei bem que este tema, não é simpático nem pacífico Mas parece-me ser necessário debatê-lo. Já vi, aqui no Aventar, defender a secessão (talvez com união à Galiza) e já li, escrito por um estimável companheiro, a salazarenta afirmação de que o Norte é que trabalha e ganha o pão que o resto do País come. O que é um disparate de todo o tamanho.

Para terem razão de queixa do poder central, os portuenses não precisam de recorrer a falácias nem de acusar compatriotas seus de serem causadores dos seus problemas. Em Lisboa as condições de vida são igualmente muito más e a culpa, obviamente, é de quem governa e não coloca um freio à exploração dos grandes grupos económicos.

Porque há aforismos inaceitáveis. Esse de que «Braga reza, o Porto trabalha, Coimbra estuda e Lisboa diverte-se», tão do agrado do Salazar, é de uma perfeita estupidez e aflige-me ouvir nortenhos inteligentes e esclarecidos a debitar tal coisa. Na área metropolitana de Lisboa, muitas centenas de milhares de pessoas trabalham no duro e têm uma qualidade de vida das piores do país.

E já que falámos em retorno do capital investido, os economistas do Aventar que nos digam se a região de Lisboa e Vale do Tejo não é responsável por uma fatia do PIB que ultrapassa em muito a proporcionalidade do seu peso demográfico? Será que isso é conseguido pelos tais do jet set (sempre os mesmos e vindos de todo o País) que se divertem no Estoril ou pelas centenas de milhares, diria mais de dois milhões, que todos os dias, levantando-se de madrugada, trabalham a troco de baixos salários e com uma péssima qualidade de vida? A pergunta que se faz é: o que ganham os lisboetas com a capitalidade?

Há temas incómodos. Este é um deles. Mas, em vez de evitarmos falar neles, devemos abordá-los, dissecá-los. Muitas vezes chegaremos à conclusão de que não passam de questões inventadas, artificialmente alimentadas de falácias, de aforismos tontos como o tal de «Braga reza…». Para quem goste de aforismos, lembro outro – «dividir para reinar». Parece-me mais adequado à circunstância.

Comments

  1. Miguel says:

    Como minhoto, tenho medo deste novo centralismo disfarçado de regionalização, que tem vindo a deslocalizar serviços regionais de Braga para o Porto…

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