Dia mundial da poesia?

Dia mundial da poesia?

Comemora-se hoje o dia mundial da poesia. Não é coisa que eu engula facilmente.

Por todo o país e, provavelmente, por todo o mundo há tertúlias e coisas mais ou menos engraçadas. Algumas coisas boas, e outras de pouco ou nenhum valor. A pergunta mais corrente será: O que é a poesia? O que é ser poeta?

Daniel Barenboim, um dos maiores pianistas e maestros da actualidade, diz que é impossível falar de música, e que são muitas as definições de música, mas que, na prática, se limitam a descrever uma reacção subjectiva. Todas elas parecem dizer muito e não dizem nada.

Sem querer pôr-me à ilharga de Barenboim, eu também digo que não sei o que é a poesia, e duvido muito de quem diz que sabe. Desde a respiração de Deus à depuração absoluta da palavra, já ouvi de tudo.  Parecem dizer muito e não dizem nada.

Isto, porque a poesia é um sentimento, o sentimento poético, como o sentimento do amor, o sentimento da alegria, o sentimento da tristeza, o sentimento do medo. O mesmo acontece na arte, ou sentimento artístico, seja qual for a expressão artística, plástica, musical etc. E o sentimento é um fenómeno muito complexo.

Assim sendo, o sentimento poético pertence á nossa área neuronal, à esfera das emoções e dos afectos. Todos nós possuimos no nosso cérebro o mesmo esquema neural do sentimento, já que é o esquema neural da nossa espécie. Mas o padrão neural do sentimento, o padrão sentimental de cada um, que vai encaixar no nosso esquema neural, é completamente diferente em cada um de nós.

Todos nós temos idêntico esquema de vida. Todos nos levantamos, todos tomamos banho, todos tomamos o pequeno-almoço, vamos para o trabalho, andamos de carro, frequentamos o café, fazemos férias, todos rimos e choramos. No entanto, as nossas vidas, os nossos padrões de vida são completamente diferentes desde a camisa à profundidade do nosso íntimo.

Um CD comporta um processo electrónico, um esquema de registo que é idêntico em todos os CDs. No entanto, aquilo que nele introduzimos, os ficheiros que nele registamos são completamente diferentes de CD para CD.

Os sentimentos não aparecem nem se manifestam de um dia para o outro. Todos nós nascemos com os esquemas dos sentimentos da nossa espécie. Mas cada um de nós vai criando os padrões dos seus próprios sentimentos, através de uma curva de vivência e aprendizagem de uma vida inteira.

Uma pessoa que tenha tido uma vida repleta de amor, que tenha vivenciado o amor na sua plenitude, tem um padrão do sentimento do amor muito diferente do sentimento do amor de uma pessoa que nunca amou ou nunca foi amada.

Uma pessoa que toda a vida viveu na miséria, no meio de agruras e dificuldades de toda a ordem, tem um sentimento de carência e pobreza totalmente diferente do sentimento da pessoa que nunca teve dificuldades e viveu toda a vida na abundância.

Os sentimentos nascem, vivem-se, constroem-se, elaboram-se, estruturam-se, cinzelam-se, esculpem-se, apuram-se e afinam-se. Para o bem e para o mal.

Todos sabemos que a música se exprime através do som, mas o som, em si mesmo, não é música, é apenas o meio através do qual se pode transmitir a mensagem da música. Todos conhecemos as notas musicais, todos somos capazes de as dedilhar nas teclas de um piano, mas daí à música vai um abismo.

Todos conhecemos as letras e as palavras, todos somos capazes de juntar palavras e com elas comunicar, de forma primária ou erudita, mas daí a fazer arte literária ou poesia vai um abismo.

Criar poesia não é ligar palavras dentro de uma matriz chamada poema, encastelar versos uns em cima dos outros, fazer frases labirínticas que ninguém entende, engendrar rimas forçadas e idiotas.

Então poderemos tentar dizer, cautelosamente, o que será um poeta. Ser poeta é, antes de tudo, ter um sentimento poético muito apurado e afinado, construído através de uma vivência de amor, atracção e dedicação à poesia, lendo muito, escrevendo muito e vivendo a poesia de uma forma indissociável do viver da vida. Ser poeta é sentir que a poesia é o sangue que percorre transversalmente qualquer forma de expressão artística. Qualquer obra de arte só é arte se contiver dentro de si a poesia.

Mas para além desta aprendizagem de uma vida inteira, é fundamental na construção do sentimento poético uma formação cultural global do ser humano, tão profunda quanto possível, e uma segura formação humanística, a par de uma bem estruturada formação ética e estética.

Sem ter a veleidade de pretender encontrar definições de poesia, eu penso que a poesia poderá ser algo de muito subtil, uma espécie de brisa mágica, uma essencialidade rítmica e harmoniosa da vida, quase uma ascese ética e estética que nos transporta à mais nobre e sublime expressão da realidade, através das mais impressivas, expressivas e sugestivas formas da nossa linguagem.

Ela combina a palavra justa com toda a energia sinestésica e sensível que faz o poema acordar ou deflagrar. A poesia não é a cópia da realidade, mas a simbolização, a evocação e a invocação da beleza e da nobreza da realidade. O fenómeno poético é entendido como a harmonia verbal e a musicalidade em que todos os materiais fonéticos e simbólicos se diluem num resultado de suprema fruição estética.

Daí a minha descrença no dia mundial da poesia. Pode ser o dia mundial de muita coisa, mas tenho profundas dúvidas que possamos chamar-lhe o dia mundial da poesia.

Comments

  1. Luis Moreira says:

    A arte, (música, poesia, escrita,pintura…) é uma forma extraordinariamente bela de comunicarmos. Disse-me o meu professor de português Dr. Alberto Fialho Júnior que tinha por mim um sentimento de amor/raiva…

  2. Carlos Loures says:

    Adão, a Florbela Espanca dá uma excelente resposta à tua pergunta com o soneto «Ser poeta», que o Represas musicou de forma feliz. Mas as respostas são tantas como os poetas – Pessoa dir-te-á, que «o poeta é um fingidor» o que não sendo tão belo como «ter cá dentro um astro que flameja», é, talvez, mais lúcido. Eu diria que um dos grandes encantos da poesia é não ter fronteiras é entrar num território fantástico onde «tudo é e não é alternadamente», como dizia o António Maria Lisboa. Com tempo, rapidamente se reúnem mil definições de poesia. Todas eventualmente belas; nenhuma definitiva, nem completa.

  3. Eu não diria, Carlos, que um dos encantos da poesia é não ter fronteiras, mas sim, situar-se para além da fronteira a partir da qual não tem fronteiras. É entrar num território fantástico “onde tudo é e não é”, mais do que “onde tudo é e não é alternadamente”. Como sempre, os teus comentários são tão preciosos como os teus textos.

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