Num pequenino restaurante do Porto, onde se comem, a meu ver, as melhores papas de sarrabulho, estava eu deliciando-me com uma tigelinha das ditas. Ao meu lado esquerdo, de pé e encostados ao balcão, encontravam-se dois homens com aspecto de imigrantes ucranianos, bebericando cada um o seu copo de vinho tinto.
Quando viram as minhas papas fumegantes, um deles perguntou ao dono do restaurante quanto custava uma malga de papas. Um euro e meio, respondeu o patrão. O homem contou os trocos na palma da mão, encolheu os ombros e meteu os trocos no bolso.
Claro que eu tinha todo o gosto em pagar uma malga de papas a cada um deles. Ainda esbocei um gesto mas contive-me. Tive receio de humilhar os pobres homens no meio daquela gente. Neste momento estou arrependido de não lhes ter pagado a porra das papas.
No fim da refeição, na pausa do café, salpicada de pequenos beijinhos no meio bagaço, peguei no jornal, e logo numa das primeiras páginas deparei com o anúncio de que estava para sair a nova bomba da Mercedes, que custava à volta de duzentos e vinte e tal mil euros.
Parei um pouco, retirei os olhos do jornal, detive-os na porta da retrete ao fundo da sala e perguntei a mim mesmo: que merda de mundo é este? E pensei que, na realidade, o homem é uma estrutura complexa e interessante, mas foi mal acabado. O remate foi um desastre. Na verdade, tudo no homem deveria funcionar, a priori, com regras, normas e leis como funciona o nosso cérebro. Isto é, a nossa actividade social não deveria sair da órbita fisiológica das nossas neuro-transmissões cerebrais.
Assim como é impossível que a adrenalina seja anti-adrenérgica, como é impossível que o sangue seja sólido, como é impossível respirar ao contrário, deveria ser impossível haver quem tenha um carro de duzentos mil euros e quem não tenha um euro e meio para comer umas papas de sarrabulho.
Se toda a nossa vida fosse orientada pelos estritos mecanismos do nosso sistema nervoso autónomo e não pudesse desviar-se de um determinado comportamento fisiológico normal, como o imperioso comer e cagar, não haveria BPNs a roubar o país, nem faces ocultas ou as muito mais frequentes faces às escâncaras.
Por estas e por outras, desiludido com os acabamentos deste ser, dito humano, que mais parece retroceder do que avançar, já não acredito em sonhos nem na possibilidade de, algum dia, se virar o bico ao prego. O homem que dizem civilizado e de sucesso conseguiu atingir o mais alto grau de podridão mental, ao ponto de a sua meta ser mais euros nos bolsos do que glóbulos no sangue. Que puta de fisiologia!
Estou a ser sincero se disser que voltei por várias vezes ao restaurante, na esperança de encontrar os dois homens e dizer-lhes: amigos, vamos a uma rodada de papas de sarrabulho. Que se foda o Mercedes. Mas não voltei a vê-los.
a evolução ainda não terminou, não é? Acredito que essa impossibilidade se torne real num Homem do futuro, que não sei a que distância está.
Belo texto, adão
E no entanto, a mercedes contribuiu de maneira decisiva para a evolução da tecnologia, que permite que os médicos olhem para dentro de um coração sem o abrir , e sem haver quem compre os mercedes não há evolução… o único mal é que qualquer pessoa devia ter direito a uma malga de sarrabulho. mas não estaríamos a falar da mesma coisa,
Que naco de prosa fabuloso!
Obrigado a todos
também uma carreirinha de palavras que não chegaram a auxílio (03/80)
Se fosses um puto
tinha-te abraçado, acarinhado
tinha-te dado a mão
para que só não estivesses
nessa tua solidão;
se fosses um puto
tinha-te ajudado
tinha contigo falado
tentando resolver
os problemas de então;
te havia de proteger
não te deixava de olhar triste
chamando palavrões à vida,
não te deixava em forma que existe
sem forma de vida;
Mas… assim crescido
nada fiz, nada disse
as palavras e os gestos se ficaram
no silêncio do sentido
onde me tornei auxílio morto
antes haver nascido.
Publica, Maria!
Luís, publicado já está… entre os comentários do povo
bjs, abraço, obrigada
manda que eu publico.Posso publicar aqueles dois, assim às duas da manhã para nos levar a todos para o vale dos lençóis…
Pronto Luís, senão nunca mais me largas… que seja às duas da manhã … tipo chá de erva cidreira : )
Lhe digo que nunca tenha vergonha de ajudar seja quem for…já o fiz, tive essa vergonha mas deixei-a de lado e perguntei…quer alguma coisa daqui…e a resposta foi: agradecia muito que me pagasse um bolo e um copo de leite…paguei…e chorei por dentro…e fui a uma igreja e chorei mesmo ali…e continuo a pagar sempre que puder e vir fome…sempre que me pedirem…mesmo que ao meu lado me digam…que vão trabalhar…é para a droga…eu não sei para o que é…só sei que me alivia a alma e o coração ajudar e ver naqueles olhos que me pedem ajuda, a gratidão de Deus…e depois aquele Deus lhe abençoe…
Que saudades tenho de comer umas papas de sarrabulho à moda antiga,,, a última vez que comi esta iguaria no Porto, minha cidade natal, decepcionaram-me pois não tinham o sabor que guardava na minha memória.
Brevemente vou visitar de novo a cidade que me viu nascer e tenho um desejo enorme de comer
as papas de sarrabulho, só que não sei onde é esse restaurante pequenino… pode ajudar-me?
olá … ainda que fora d´horas, só queria saber … como se chama o “pequenino restaurante do Porto, onde se comem, a meu ver, as melhores papas de sarrabulho” ? Um abraço grato.