Pencahue, Vilatuxe, Vila Ruiva, século XXI

picunches do Século XX, a descansar no seu domigo

Rua Central da Vila Picunche, Pencahue, Província de Talca. Membros do Clã descansando em pleno domingo.

Queira o leitor saber o que penso destes três sítios visitados nos últimos anos. A cada um estou intimamente ligado pelas pesquisas e, simultaneamente, pelo prazer que usufrui no convívio com os amigos que aí fui deixando, ao longo dos anos. Como se fossem da minha família. Queira o leitor saber também que ocorreram mudanças nos três locais, que estão ligadas entre si, não apenas pela economia mundial, como pela memória do tempo. Cada um deles é um lugar diferente. Visitados, também, por um antropólogo diferente. Talvez, não no físico, mas sim nas ideias e no pensamento. Pensei que no Chile era possível falar com liberdade. Enganei-me, eu não estava certo. Os Picunche que conheci outrora como inquilinos e com quem, nos anos 60, do século XX, colaborei na formação dos sindicatos, são hoje em dia pessoas individuais e

autónomas, todas elas com empresas individuais, única forma de sobreviverem ao contexto socio-histórico que têm vivido, e vivem. As famílias solidárias e submetidas ao patrão não existem. São patrões de si próprios, ou empregados que já não aceitam o nome de jornaleiro, embora o sejam no que diz respeito a horas de trabalho e ordenados. O matrimónio endogénico alargou-se e passou a ser uma necessidade económica. A liberdade das pessoas se juntarem sem contrato deu lugar ao contrato e ao sacramento, para obtenção da segurança da propriedade. Matrimónios feitos com separação de bens prévios ao casamento, com capitulações. Com matrimónio a prova, ou seja, com relações íntimas antes do contrato. O que acaba por levar ao amor entre casais. A herança, é resultado da aplicação do Código Civil, partilhas para todos por igual, e melhoras para os filhos mais requestados pelos pais. Filhos que, contudo, estão a abandonar a agricultura e o trabalho pesado das indústrias. Actualmente não se vê nenhum jovem a trabalhar no campo, excepto quando colabora com os pais (de uma geração anterior) na própria terra. Não há casa em Pencahue, que não tenha uma descendência habilitada pelos estudos pagos por si própria, através de trabalhos em cafés, bombas de gasolina, ou em outros sítios transitórios. Os jovens que entram no século XXI, sabem que todos os trabalhos são transitórios e subordinados a contrato. Contrato que dura enquanto perdurar  o incremento da riqueza do proprietário. A geração do século XXI, ficou marcada pela autodeterminação, a disciplina e a autonomia. A escola foi capaz de introduzir-lhes os ideais do neo-liberalismo existente no mundo. Eis que o mundo que entra com 18 anos no novo século é um mundo desconfiado, não solidário, juntando-se em família apenas para as festas rituais, e quando há dinheiro que permita a viajem. Durante  três invernos, foi-me possível apreciar a movimentação da juventude, a maior parte  a estudar e sem dinheiro para custear as deslocações de férias, sempre pagas pelos pais para verem os seus rebentos, autonomizados pelas práticas trazidas pelo novo milénio.  De seis milhões de jovens no País, mais de trinta por cento frequenta as universidades. Universidades privadas todas elas, mesmo as que foram públicas, e espalhadas por todo o País. A aquisição de habilitações não é já para uma elite, é uma necessidade para poder ser elite dentro da pobreza geral de todos os sítios que tenho estudado. Novidade é ver como trabalham e estudam. A minha observação, feita em instituições de ensino superior, estendeu-se ao Centro do País e ao sítio dos Picunche, que se deslocam para a cidade de Talca afim de obterem os estudos secundários. Porém, a cultura tradicional de divertimento e nocturna, é combinada com estudos negociados entre docente e discente. Novidade é também, a subordinação da mulher ao homem. Atitude e prática que, gradualmente, é abandonada para existir uma igualdade de género, de pessoas humanas que convivem. Os Picunche que tenho analisado eram nativos, mas hoje em dia, quinhentos anos depois de lhes serem incutidas as ideias etnocêntricas europeias, estão cada vez mais ocidentais. A tristeza, é não estar na Europa, sítio muito conhecido, devido à emigração e exílio da geração anterior. Com um milhão de habitantes que saiu do País desde 1973 é um perigo de vida permanecer no mesmo. O Chile dos Picunche que entra no século XXI, é criativo, ordenado e militar na disciplina. Com o hábito de protestar por tudo o que não for conveniente para os objectivos pessoais, definidos dentro do contexto conjuntural em que vivem. Pode afirmar-se: um povo que protesta enquanto cala. Protesto realizado em interacção, enquanto cala publicamente. Um País com uma grande cabeça no centro do mesmo, e caudas curtas no resto. Despovoado no resto. Donde, a cabeça política é o centro do que se faz, ignorada pela população da juventude que entra a crescer. Os Picunche, são parte da empresa que gere o mundo, o lucro. Para o qual dedicam, saibam ou não, as suas horas de trabalho. Empresa de lucro não estabelecida em Pencahue, por enquanto, mas que um dia será. Um será pouco informado. Pouco informado, pelo sincretismo acontecido ao longo da curta memória histórica, desde que foram feitos cidadãos de uma nação de cronologia esbatida e breve. O saber, muda todos os cinco anos. Excepto, o saber adquirido para procurar dinheiro. E para parecer estar a viver no meio do mundo. Como era quando não era, fica só na memória, que será usada noutra conjuntura cronológica. Esse sou, é a concentração no futuro lucro. O que será, fica para uma continuação desta análise. Um será, governado pela lei deixada pelo exército, ignorada pelos jovens, mas central para os que governam esse jovens. O Século XXI, é um século de direitos humanos abatidos pela luta da reprodução. É assim que crescem essas crianças.

Vilatuxe, é que foi a surpresa. Uma forma de ser de abandono da aldeia, de procura no pequeno País, de alternativas para cada ser individual, se preocupar consigo próprio. É o País no qual manda a conveniência de se ser como o resto da Europa. Todo o debate hereditário, passa a ser inexistente. A terra não é o centro dos jovens que entram ao Século XXI. A terra está a ser objecto do estudo centralizado no Parlamento de Bruxelas, é mais uma indústria, uma mercadoria onde são trabalhadores os filhos dos proprietários.

A Galiza, tem passado por cima das leis escritas e costumeiras, para transferir direitos ao trabalho e não à pessoa. À capacidade de trabalho, e não à pessoa. Eis que os que entram no século XXI aderem, sem saber, a um novo conceito de relação familiar: espalhada; e de afectividade: a conveniência: e de propriedade: a habilidade para produzir e para procriar. Quanto debate e disputa eu tinha presenciado em anos anteriores pelos nacos de território, é assunto que não interessa. Como no resto do mundo, a Galiza corre aos estudos, ao ensino superior, às contas do Banco, aos créditos, ao carro, ao investimento. A tudo o que possa fazer de uma pessoa, uma entidade com dinheiro. Passível de observar no vestuário, na habitação, na modernidade dos instrumentos da casa. Reconstruir o que éramos, tem sido uma tarefa trazida de arquivos e de memórias de épocas recentes. É no meio deste povo, que se vê que o tratado de adesão à UE, foi um ingresso sério numa Europa que quer ser igualitária, que faz por suprimir memórias históricas menos desenvolvidas, menos adictas a processos de idade média. Galiza está dividida entre o que é a cultura galega, e o que a Europa de Bruxelas procura nessa cultura. Se o que eu sou, é ainda uma transição, o que virá a ser é um funeral de pessoas e maneiras de entender. Apagadas pelos filhos dos derradeiros anos do Século XX. A Galiza é uma construção feita com base nos sistemas derrubados ao longo de trezentos anos, com um padrão base, a União Europeia. Pedra base não difícil de entender para um povo já aberto à luta de identidades com a nova forma de ser conjuntural. É surpreendente morar de novo num sítio que era hierarquicamente heterogéneo, e que, enquanto a geração que ainda é viva e a por ela formada, o que eu sou, existam relações parentais, de amizade e de vizinhança que subsistem. A morrer a pouco e pouco. A criançada que cresce para os próximos anos, que acontece ser um novo milénio, cresce já em instituições públicas. Como os infantários. O que será, será resultado da liberdade de acção que os que hoje são, têm. Como é que será, é possível prever no que sou: casais de indivíduos. Paternidade e maternidade de casais individuais, dedicados ao trabalho e ao doméstico o tempo todo. A mulher e o homem, são género, não sexo. Machismo e feminismo, não são já precisos: quem quer, escolhe. Orientados pela economia. O homem total, é um sujeito económico. É o que alguém denomina, o horror económico. No erro económico. A criança cresce guiada pelo horror. Do qual um dia sairá para tornar à memória emotiva e social que fica. E mais quereria dizer. Mas, dizer mais, é impossível. Porque o que interessa, são as bases do crescimento das crianças. Gerações do que era, governam sem perceber a mudança que acontece no quotidiano do povo.

Como acontece em Vila Ruiva, que até o nome habitual, mudei. Quis mudar. Tal como as formas de ser em Vilaruiva mudam também. Como Portugal, o mais afincado na memória social e emotiva da Europa antiga, tem que lutar muito para sair da mesma. Em costumes e em hábitos. O predomínio da Igreja Católica neste seu último bastião de suporte sem condições, tem mantido o País no meio do ritual. Desse Versalhes, que eu costumo chamar. Com a corrida às habilitações, que o Chile tem, e que a Galiza já tinha desde os anos sessenta do Século XX, na cidade. Uma corrida que define as habilitações como a possibilidade de se candidatar a um trabalho. Portugal tem ainda muito a viver, para ser mudado da transição anterior. É só agora que se debatem os assuntos que estão resolvidos no resto da União Europeia. De Trás-os-Montes ao Alentejo, Portugal é um País rural. Lisboa é filha de mouros ou cristãos antigos vindos de Guimarães e do Porto. Vilaruiva será também outra maravilha não adivinhada, mas falta tempo ainda para ver o quê. A juventude trabalha, uma combinação de agricultura e estudos. No entanto, será uma corrida para o saber. A Educação sabe o que está a fazer, o grupo Doméstico, ainda não. Santa Eufémia de Nelas, e Fátima da aldeia, uma comemoração de todos os Setembros, têm muita força no quotidiano. Uma força que faz desconfiar que o Euro venha ser a moeda imperante e entendida por todos. A juventude que é, o é pelo crédito. Vilaruiva está vendida à banca, ao crédito, aos empregos conjunturais. E, ainda que as universidades privadas sejam muitas e as oportunidades abertas, sejam modernas e tenham levado a uma percentagem alta (mais do setenta por cento) da população jovem aos estudos, esta população jovem está obrigada a trabalhar ou a depender da casa. Para avançar. Os dois factos, a fé e os estudos, travam o avanço de Vilaruiva. É verdade que a agricultura de Vilaruiva é trabalhada pelos que eram, e que é ignorada pelos que são. Mas, é muito cedo para dizer. Portugal, um País novo da velha Europa, será um País diferente em poucos meses. Como a regionalização que fez a Espanha andar mais rápido. Como a divisão do trabalho que fará de Vilatuxe, uma futura fazenda de três famílias. De quantas famílias virá a ser Vilaruiva?

Permita-me o leitor parar por estas perguntas. Tudo o que interessa dizer, é que a epistemologia da criança, é um campo sempre aberto ao estudo. E que a interacção entre as duas culturas, adulto e criança é uma interacção mútua, na qual ambas as parte aprendem. Porém, não há plano de educação, institucional ou privada, que não oiça primeiro genealogias e histórias de vida, para saber como incutir o saber do tempo acumulado na emotiva memória social.

À laia de conclusão, e de honra para as hoje crianças, que se tornarem adultos empresários no Século XXI. Porque,  a criança não é a individualidade que vemos, é a experiência acumulada do saber no tempo. Adulto maior ou criança formal.

Na entidade cultural que não tem idade. Que cresce formalmente entre o nascimento e a puberdade, que cresce em saber entre o nascimento e a morte. Que está sempre a crescer, quando se faz um ser autónomo e independente, com a capacidade que essa autonomia e independência dão, para interagir e saber mais. É isso o que entendo por crescimento, Crescimento que será, no Século XXI, independente e autónomo. Como a sociedade e as crianças de hoje, futuros pais, o desejam. Filhos de pais autónomos como cidadãos, o tempo para emotividade ficará escaso, o tempo para o lar aquecido, ficará escasso. Que o saibam as mães, ainda na esperança de terem uma descendência em casa. Que o lembrem os pais, esses seres criados para saberem pouco dos pequenos. Que o aprendam Victoria e Anabela, testemunhas da mudança, da mesma forma que o soube Pilar a seguir o nascimento do seu único filho. A União Europeia e a adesão ao conjunto de mercados no qual homem e mulher são seres produtores iguais, o crescimento tem passado a ser uma mercadoria especializada na sua produção. No entanto, filho do Século XX , pergunto-me se por acaso a memória social, a mente cultural que denomino nos meus textos, não tornará a vincar uma ideia afectiva forte que comande por sobre a racionalidade incutida na economia que domina as interacções das pessoas. Porque toda a idade tem avanços e recuos, ideias novas e ideias velhas que renascem. Modificações que se modificam. Um como sou, submetido à dúvida do seu valor. Um como era, que retorna com o desenvolvimento da vida pessoal e a sua solidão. Um como não era, recuperado até aos seus mínimos detalhes para ler a história do povo em cada canto das pedras arrumadas outra vez. Essas pedras que permitem a criançada entender a passagem do tempo e o cuidado de si, porque tem um texto em frente para lhes ensinar que o tempo é feito de ciclos de saberes, geridos pelas crianças que crescem, enquanto crescem e fazem crescer os que parecem crescidos. Como Bach fez. Da vida, um matrimónio reprodutivo. Da viuvez, uma procura da paixão que em Madalena encontrara. Da cegueira, um ditado para Madalena. Da música que para ela e os filhos, escreve. Como a sua arte final, que nunca consegui acabar, a sua Arte da Fuga.

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