A Dam


Saindo para o jantar de família na noite de Natal de 1995, deparei com esta minha conhecida à porta do prédio. Estava um frio de morte e chovia a cântaros. Conhecia-a há perto de um ano, quando nasceu no rés do chão, em casa de uma vizinha. Pouco a pouco foi subindo as escadas da traseira e com alguma cerimónia entrava na cozinha e petiscava os biscoitos que lhe oferecia.

Quando a vi à porta, pensei que por lapso a tinham deixado fugir de casa e fazendo soar a campaínha da “dona”, devolvi-lhe o precioso membro da família. Quando às tantas da manhã regressei, lá estava ela na rua, encharcada e enregelada. Não saíu da porta da entrada, silenciosamente manifestando os seus direitos de residência. A partir daquele momento, comigo passou a viver em “união de facto” e nem sequer me dei ao trabalho de pedir explicações a quem tão ignominiosamente a abandonou.

É uma gata extraordinariamente bem educada, discreta e bem conhecida pelas suas poses que não podiam deixar de ser femininas. Traça as patas dianteiras e gosta de se esticar no chão, sempre em posse de esfinge egípcia. Paciente na espera pelas refeições, limpíssima, de pelo farto e brilhante, daquele negro-azulado que faz a inveja de qualquer salão de cabeleireiro. A nossa linda colega Glória Martins já a conheceu e partilha comigo a convicção de se tratar de uma rara e distinta beldade felina.

A Dam* (cujo nome quer dizer preta, em siamês), será hoje operada a um tumor numa mama e após a consulta de ontem, o médico ficou surpreendido pelo vigor físico e cardíaco desta senhora que já conta com mais de dezasseis natais, quinze deles passados com a normalidade necessária. Aproveito para nesta época de estio e de todos os abandonos, procurarem uma destas vítimas do desleixo a que os bípedes votam quem deles tanto necessita.

Não podemos ficar apenas pelas alegrias catalãs.