Analfabetismo


O Público tem divulgado uma série de textos alusivos à comemoração do centenário da República. Por regra, o tom laudatório predomina, escamoteia a realidade histórica e reafirma as superstições que ao longo de gerações, foram insistentemente inculcadas nas mentes dos portugueses. O analfabetismo na sua versão mais moderna que sem dúvida é a iliteracia, torna-se assim, numa preciosa ferramenta para a manutenção de um teimoso olhar para um passado, onde a divagação ocupa o lugar de primazia, relegando a análise multidisciplinar, para o âmbito de um número muito restrito e díspar de curiosos da história. Simplificando, a narrativa do preconceito é de fácil divulgação, atinge o objectivo político e torna os eventos identificáveis em termos sociais, atravessando sem distinção de extractos, todo o corpo nacional. É esta afinal, a exclusiva e mais perene vitória do defunto PRP.

No mais moderado e credível texto do Centenário divulgado pelo Público, Joaquim Pintassilgo aborda os temas do analfabetismo e da educação popular, que aparentemente tiveram os seus defensores em entrecruzadas trincheiras, quando não opostas. De facto, o problema da escola e da formação já vinha de longe e o chamado Iluminismo pombalino, num afã imediatista de concentração de poderes à laia de modernização do Estado e liquidação das informalmente aceites autoridades multipolares numa sociedade predominantemente rural, comprometeu de forma irreversível, a criação das desejáveis elites de que o país, apesar de tudo ainda imperial, necessitava. A escola tacitamente confiada aos clérigos como aliás, passe o anacronismo do conceito, a “assistência social”, foi uma das primeiras vítimas do desejo do controlo absoluto de um poder político emergente que de imediato, identificava a velha nobreza e a Igreja, como os principais adversários. Rapidamente, o restrito corpo discente viu-se sem mestres capazes, expurgado pelas maciças expulsões e sobretudo, pelo progressivo estiolar da investigação, compilação de registos e arquivos e também, da necessária salvaguarda da formação dos instrumentos humanos que garantiam a normal continuidade e adequação da administração pública. Mais tarde, os republicanos, encandeados pelos grandes princípios generalizantes que de fora chegavam, totalmente submeteram o seu “programa” a um sem número de artigos, onde o populismo fácil de mera propaganda assimilável pela massa citadina, garantia uma audiência minoritária, fazia vista e sobretudo, era ruidosa. Os grandes mitos do sangue, da terra e do altar da Monarquia, tornaram-se naquela trilogia que na prática, acabava por justificar a outra, a parisiense ressonância que incendiara a Europa. Numa Lisboa que de novo se transformara numa terra de muitas e desvairadas gentes, estava criado o cadinho essencial para a agitação permanente condicionante da política e mais ainda, que tolhia de receios uma população de extracto médio, imbuída por um geral respeito e aceitação da ordem estabelecida pelo liberalismo constitucional, este sim, introdutor das tais sempre aguardadas novidades e progressos que fizeram Portugal caminhar naquele sentido europeu reclamado pela burguesia.

O populismo teve como principal arma, o recurso ao inflamado discurso nacionalista. Assim aconteceu no dealbar das novas nações-Estado do centro e leste europeu, onde nalguns casos, revivificaram-se idiomas há séculos secundarizados por outros, originários da potência que tutelava o território que as contingências das quase ininterruptas guerras, foram integrando em espaços mais dilatados. No caso português, um Estado em crónica crise financeira e sem o necessário apoio de um sector privado que garantisse a chegada dos meios técnicos modernizantes do todo, via-se obrigado a acorrer à acção em sectores que normalmente, deveriam pertencer ao labor de empresários interessados em engrossar cabedais e à própria promoção pessoal, naquele oitocentista sentido da filantropia, criação de riqueza e velar do bem estar geral das sociedades liberais da revolução industrial. Bem pelo contrário, as vias férreas, os portos, estradas, universidades e escolas técnicas, estavam sempre dependentes desse Estado que estava longe de possuir os recursos que desde o fim do ciclo brasileiro, foram drasticamente diminuindo as suas possibilidades. Criava-se desta forma, o ciclo crónico do défice público e do recurso ao dinheiro que do estrangeiro chegava, submetendo o fraco sector privado, a uma informal dependência do Estado.

A falsa “questão da Monarquia”, punha-se como elemento agregador de uma heterogénea camada de revoltados, que não tendo conseguindo ascender aos pretendidos lugares que garantiam uma tranquila, mas quase sempre frugal subsistência, colocou-se na oposição ao regime. Tem sido esta, uma constante na vida política portuguesa e é um facto que chega aos nossos dias, apontando-se facilmente a cupidez de “classe”, as “cumplicidades de clube” e a “ganância pelo enriquecimento fácil”, como óbices à modernização do país, entendida esta nos seus múltiplos aspectos da educação e cultura, justiça, administração pública e até, na defesa militar de um património pluricontinental que era entendido como uma invariável sempre presente e querida, embora totalmente desconhecida pela grande maioria da população. O Império existia, estava nos mapas e garantia nas mentes, um certo estatuto que satisfazia a opinião pública. Isso bastava. Paralelamente, apresentava-se a laicização, como um imprescindível instrumento para encontrar um outro ethos que facilmente resvalou na impressionável oratória republicana, para um histriónico pathos que acabou por fatalmente contaminar o restrito, mas decisivo microcosmos nacional que era a capital do país.
Não tendo em conta a necessidade da concentração de esforços familiares para a obtenção de recursos monetários que tornassem aceitável a vida do núcleo, propagou-se a ideia de uma forçosa e imprescindível política de educação que na óptica dos directórios republicanos, só ao Estado competiria. A criação de centros republicanos – alguns ainda nominalmente existentes – que faziam a vez da educação primária, consistiu antes de tudo, numa tentativa de fidelizar futuros contingentes militantes para a luta política de conquista do poder do Estado que proporcionava rendas, lugares administrativos e também, aquelas interdependências com um sector empresarial sempre carente de meios financeiros.

Tal como mais tarde Salazar ressuscitaria esta política, o nacionalismo foi habilmente aproveitado na grande fase de comemoração de diversos Centenários, sobressaindo o de Camões e o de Vasco da Gama, habilmente republicanizados como exemplos de uma perdida grandeza. Pombal serviu como esteio, naquele sentido centralizador que hegemonizava o Estado e principalmente, os detentores do seu poder. Logicamente, o PRP transformou a questão do analfabetismo, como a pedra fundamental do atraso português e como bem explicita Joaquim Pintassilgo, não tendo em consideração o próprio desinteresse dos núcleos familiares sempre dependentes do trabalho de todos os seus componentes. Aparece então a refulgente luz da “alfabetização por decreto”, princípio basilar que tem sofrido algumas alterações de adequação aos tempos, mas que ainda hoje faz de tarimba na luta política. Numa fase conturbada da evolução para novas realidades sociais, a adequação do país aos ímpetos modernizadores provenientes da Europa, dependeu quase sempre de iniciativas de entidades ou figuras cimeiras do Estado. Na verdade, as obras mais perenes – e que foram pelo PRP ostensivamente secundarizadas, quando não combatidas – chegaram pela decisiva acção da própria rainha, uma francesa educada naquele sentido bastante regalista de dever que a sociedade liberal impunha. O que os exaltados tribunos pela República não souberam ou quiseram entender, foi a certa similitude de situações que se verificavam no seio das mais prósperas sociedades industrializadas europeias, onde numa Londres financeiramente hegemónica à escala mundial, existia uma colossal massa de miseráveis que remetia os pés descalços lisboetas, à categoria de aceitável componente social do tempo. No entanto, um factor fundamental que passou despercebido, consistiu na própria dinâmica da sociedade britânica, onde a contestação das instituições liberais conformadas pela Monarquia, não foi além da luta pelos direitos cívicos – as sufragistas, por exemplo – e o labour do sindicalismo que jamais puseram em causa a estabilidade do regime político. Em Portugal, prevaleceu a superstição salvadora de uma súbita quebra da continuidade ou evolução gradual, identificando-se uma instituição, ou melhor, um homem, como a grande questão nacional a resolver de imediato, surgindo todas as demais, como naturais dependências. O Ultimatum e a demente e nefasta espiral populista dele decorrente, acabaram por conformar a opinião pública de Lisboa, especialmente aquela que ociosamente enchia as ruas da capital e se prestava ao serviço da agitação, no tempo em que os “anarquistas” apareciam como justificativo que rotulava as mais díspares ocorrências denunciadoras do mal estar. Daí à mitificação de um passado distante e ainda possível de recuperar através do abrupto e paradoxal corte com um tempo presente que afinal o justificava, tornou-se naquela necessidade que o belicoso sector que o PRP representou. Este heteróclito partido, decididamente afrancesou os fervilhantes impulsos nacionalistas republicanos, que à “esquerda” – uma parte da maçonaria e ramificações carbonárias, o “anarquismo” – e à “direita” – maçonaria e sectores abastados de proprietários rurais e empresários urbanos -, criariam as condições que o Estado Novo aproveitaria para consolidar a própria República que tão bem lhe serviu. O extenso programa oratório de construção de escolas primárias e secundárias, tendo sido iniciado na fase final do reinado do rei D. Carlos I – e incentivado durante o governo do caçador no terreno republicano que foi João Franco -, encontraria o seu apogeu durante o governo de Salazar, acompanhado pelo culto aos símbolos da bandeira, hino e instituição presidencial, cuja explicação era remetida para um passado com o qual os precursores republicanos disseram querer definitivamente cortar.

A República portuguesa deve afinal a sua sobrevivência, à imperiosa necessidade orgânica da sua segunda versão, o Estado Novo que nela colheu o nacionalismo e construiu a sua escola.