Pela hora da morte

É verdade, morrer está pela hora da morte. Pelo menos neste país.

Faz precisamente hoje uma semana, vi-me confrontada com aquilo que todos sabemos que vai acontecer, mas tentamos nem sequer pensar que vai realmente acontecer: a morte dos nossos progenitores.

O meu pai morreu há uma semana. Se eu não me atrasar na redacção, fará exactamente uma semana no momento em que este post for publicado. Será mais uma das pequenas e simbólicas homenagens que lhe posso fazer.

Recebi a notícia por telefone, pela voz da minha mãe, quando estava a caminho do trabalho, depois de uma parte do dia passada com as minhas filhas e o meu marido em Esmoriz, perto da praia, apesar do frio e da chuva. Eu estava particularmente irritada nesse dia.

De imediato, fui para casa dos meus pais. Fui ver o meu pai, deitado na cama articulada que foi, estes últimos dois meses, o seu leito, toda a sua habitação. Já nem para tomar banho o conseguiam tirar daquela cama. Achei-o frio e, ridiculamente, percebi logo depois de o ter feito, tapei-o bem tapadinho, para não ter frio.

Telefonei para todas as pessoas a quem era necessário avisar. Fiz-me forte. Na minha família não se chora. Não por coisas importantes.

Por ter que se decidir tudo muito rapidamente e por ter que fazer uma quantidade considerável de telefonemas, não pude acompanhar a minha mãe na decisão dos pormenores do funeral. O meu irmão mais novo ficou com ela e deixou-a decidir.

Mas, embora noutra divisão, ouvi um valor que me assustou. Cerca de três mil euros. Três mil euros um funeral!!! Pelo que percebi, houve alguma conversa sobre os valores cobrados nestas circunstâncias e não pude deixar de ficar chocada. De facto, até para morrer é preciso ser rico neste país!!! Ou melhor, não é para morrer, que nisso até querem que os pobres sejam mais rápidos, é para se ser enterrado.

Do que eu percebi dos valores cobrados, sei que a Junta de Freguesia cobra mais de duzentos euros pela estadia no seu hotel mortuário, uma salita gelada, num complexo de quatro salas todas iguais, todas geladas, todas impessoais, situadas junto ao cemitério.

Sei que se déssemos a morada real dos meus pais, teríamos que pagar mais mil euros para enterrar o meu pai no jazigo de família, situado na freguesia adjacente.

Sei que um anúncio no jornal, na secção de necrologia, de tamanho relativamente pequeno, custa duzentos e trinta ou duzentos e cinquenta euros.

Sei que as urnas menos caras, pelo menos daquele armador, estão entre os setecentos e cinquenta e os mil euros.

Sei que são cerca de cem euros para o padre celebrar uma missa usando um tom de voz irritante, sem o mínimo de emoção, debitando uma série de palavras nas quais não acredito minimamente. Aliás, nem ele parecia acreditar naquilo que lhe saía da boca para fora.

Também sei que há o funeral social, algo de que nunca tinha ouvido falar. Ao que percebi, consiste em pegar no defunto, colocá-lo na urna e enterrar. Por quinhentos euros.

Quer se pague quinhentos ou três mil euros, morrer está pela hora da morte.

Descansa em paz, meu velho pai!

Comments

  1. Konigvs says:

    Antes de mais os meus sentimentos.
    Acho que já o tinha escrito aí por num tópico qualquer que, claramente, “as pessoas andam a morrer acima das suas possibilidades”!

    Já agora, e olhando só para o lado “comercial” da morte, não mencionou a cremação, que baixa um pouco o preço, visto que a urna é simples, só a madeira, porque não pode levar vernizes nem pegas uma vez que vai tudo para o forno.
    Colocar um anúncio no jornal a fazer publicidade a meu ver é um completo desperdício de dinheiro. Informam-se as pessoas que se tem de informar e ponto final.

    Depois das muitas coisas ridículas dos funerais das de pior gosto são as pagelas, apesar que aí não as querendo não se poupa nada uma vez que “já estão incluídas”. As pessoas chegam e tiram, lêem, metem ao bolso, e passado um bocado, num total desrespeito já andam os papeis na rua com a imagem do morto que ainda está na capela mortuária. Depois há as pessoas que as colececionam, e há inclusive as pessoas que trocam pagelas dos mortos como quem anda a trocar cromos de futebol para completar a coleção. Não estou a ironizar, é mesmo verdade.

    E por fim a melhor homenagem que podemos fazer a alguém é mostrarmos à pessoa em vida o quanto gostamos dela e o quanto ela é importante para nós. Depois da pessoa morrer? Ela já não precisa de nada, nem de um caixão caro, nem de procissão, nem de homens contratados para pegarem ao caixão, nem de uma pedra mármore da melhor qualidade ou de uma estátua, ou do melhor jazigo na melhor localização do cemitério. Nem de flores nem que as pessoas vão em romaria com as suas melhores roupas, qual desfile de moda, no dia de todos os santos ao cemitério.


    • Caro Konigvs, segundo me disseram, a cremação é ainda mais cara do que o tradicional enterro. Isto porque quanto mais lisa for a urna, mais cara se torna e porque para arder não pode ser qualquer tipo de madeira.Só uns mais especiais. É verdade que depois de mudarmos de estado, já nada interessa, mas há a derradeira prova de amor, a necessidade de respeitar a vontade e, muitas vezes, a memória do defunto, fazendo velório e funeral com missa. Pessoalmente, não quero e não quererei nada disso. Atirem-me para a vala comum, quero lá saber! A minha memória ficará com quem privo de perto. Mas o meu pai era de outra geração. A importância de uma pessoa via-se também no funeral e na quantidade de flores recebidas, algo que eu acho absurdo. Tendo ele sido uma pessoa apreciada e admirada por muita gente durante a sua vida e antes da doença que acabou por atirar com ele para um mundo desconhecido e para uma cama articulada, houve a necessidade de colocar anúncio no jornal. Esse anúncio acabou por levar até nós alguns dos amigos antigos do meu pai. Pessoas de quem eu ouvia falar, mas que não conhecia. A essas pessoas fiquei muito grata por terem aparecido. Como, de resto, fiquei grata a todos os que fizeram o esforço de estar presentes num ou noutro momento.
      Quanto aos homens contratados para carregar a urna, os gatos pingados, não necessitamos deles, os filhos, eu incluída, o genro e netos prestaram-lhe essa homenagem. Pela minha parte, senti que era uma obrigação, caminhar ao lado do meu pai até ao fim. Dar-lhe a minha força para se apoiar uma última vez. Claro que se ele ainda estivesse vivo, me diria algo do género «Tem algum jeito uma mulher ir a segurar um caixão?, deixa isso para os homens, rapariga». Mas ele sabia de que têmpera a filha é feita. E orgulhava-se de mim, embora me criticasse frequentemente.
      As pagelas são, realmente, algo de muito estranho. Fazem lembrar os postaizinhos da comunhão, mas com imagem do defunto.Muito mórbido e surreal. Quase não se gastaram e a minha mãe acabou por ficar com uma pasta cheia de postalitos que não servem para nada. Pelo menos, o poema/ oração de Santo Agostinho era bonito.

  2. FJPS says:

    Aceite o meu pesar pela morte de seu Pai.
    Diz que na sua família não se chora. Mas não disse por que não choram. Se por vergonha, se por medo, se por um qualquer trauma do foro psicológico. Ou se defende que a morte não eh mais nem menos do que o corpo (concha) desprender-se da alma (espírito), e por isso a morte eh o prolongamento da vida.
    Chorar não minimiza nem menoriza ninguém.
    Reconheço a minha incapacidade de perceber o que esta por detrás de alguém quando diz : “eu não choro” !
    O não chorar perante um acto importante na nossa vida não significa coragem, domínio de personalidade ou indiferença casual e temporal do acto, Pode tão simplesmente apenas e só significar “refugio” sentimental.
    Quanto ah voz irritante do padre, minha senhora ele só la foi por que o chamaram. Certo? Acha que algum padre acredita ou faz aquilo que apregoa? Se acredita eh muito ingénua.
    Vou-lhe dizer ( se isto a pode “esclarecer” em termos de custos) que onde vivo um funeral do mais económico (cremação) anda nos 5 mil dólares que equivale a mais ou menos 4,5 mil euros.
    Se for enterrado a fasquia sobe para uns 7 mil and over.
    Afinal morrer em Portugal “ainda” eh barato ou sai barato.
    Aceite a renovação dos meus pesamos.


    • Eu não digo que não choro. Pelo contrário, sou uma chorona. Passo a vida a chorar por qualquer porcaria. Simplesmente, não costumo chorar nos funerais. Não na presença de outras pessoas. E no do meu pai ainda menos choraria. Tive sempre que manter muita frieza para preservar a minha mãe. Fui com ela os dois dias abrir a capela às 8 da manhã. Estive com ela até fechar a capela nas duas noites. Não podia de maneira nenhuma ir-me abaixo. Em casa, tinha que estar bem para as minhas filhas pequeninas terem alguma normalidade nas suas vidas.
      Chorei baixinho e discretamente no dia do funeral, depois de ter ajudado a transportar o caixão onde estava o corpo inerte do meu pai. E chorei em casa depois do funeral.
      Mas, muito antes do coração do meu pai ter finalmente cedido, chorei copiosamente. Chorei de todas as vezes em que ele foi internado. Receei sempre não o voltar a ver de cada vez que ele ficava no hospital. Receei que ele não acordasse da cirurgia a que foi sujeito. Chorei no dia em que ele não me reconheceu. Chorei quando se queixou de dores e me perguntou «por que raio é que não me vou embora desta vida?».
      Simplesmente, não entro naqueles prantos gritantes, dolorosos, perturbadores. Quando o momento é de dor, choro baixinho e escondo a cara. Tal como a minha mãe. Não é vergonha, nem trauma, nem medo. É, creio, autopreservação.