Europa: misantropia e terrorismo de Estado

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© Harry Clarke (1889-1931) Mephisto

Numa entrevista de 2005 ao jornal francês Le Monde, Peter Stein (n. 1937), o famoso encenador alemão, fundador da companhia Schaubühne (que mudou o teatro, e não apenas na Alemanha) e pertencendo à mesma geração que Wolfgang Schäuble (n. 1942), fez o que esparsos alemães da sua geração procuraram fazer: matar o pai nazi através da arte. Foi a fazer isso que construiu uma encenação mítica do Fausto de Goethe (Hannover, 2000), o poeta maior da Língua alemã que Stein nunca mais largou, apesar da memória de quando a Língua alemã foi um fardo para a sua geração, nascida para carregar a culpa dos pais. Mas como demonstrar que o Alemão “não era só a Língua de Hitler [mas também] uma língua maravilhosa, melódica, sensível”? (Peter Stein ao Expresso, em 2012).

Voltando à entrevista do Le Monde: afirmando-se extremamente afortunado por se ter tornado homem numa altura em que era demasiado jovem para poder entrar nas SS (o que teria sido a normalidade, pois a generalidade dos alemães participou acriticamente no hediondo crime histórico, na cumplicidade silenciosa e no seguidismo medroso), Stein também disse que a responsabilidade da sua geração – responsabilidade de fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para não repetir os desastres dos nazis – lhe pesou nos ombros. Pois não era possível, nessa época pós-Guerra, simplesmente alinhar com o coro de fatalistas que habitualmente anunciam – com evidentes estragos para a construção da realidade futura – dias piores para amanhã. Porque segundo eles, misantropos falando de si próprios, tudo tem tendência para piorar.

«O terrorismo de Estado formou a minha geração. Por isso não me venham dizer que hoje [que desde o 11 de Setembro de 2001] é muito pior. Isso é ridículo.» É certo que em 2005, quando Stein deu a referida entrevista, a nova guerra santa não havia tomado as proporções de hoje, 2015. Mas ver a Alemanha a liderar a política de aniquilamento dos povos do sul, levada pelo mesmo impulso que na Alemanha tendencialmente celebra «a supremacia pragmática e impositiva da razão técnica sobre a vontade» de participar na construção de um ideal mais interessante para a Humanidade, e sendo nisso dirigida por homens como Wolfgang Schäuble, é algo com que não podemos compactuar.

Sabemos portanto que a geração dos pais de Stein e de Schäuble jamais fez decentemente o luto da culpabilidade pelo Holocausto, e que os seus filhos (Peter, como Wolfgang) cresceram nesse silenciamento e nesse tabú. Alguns puderam fazer o trabalho de exorcismo eles próprios, mas a maioria não foi capaz, e fez o que também em Portugal se faz: mandar para debaixo do tapete a ver se desaparece, e castigar os filhos, amiúde sem consciência do que se está a fazer.

Quando Peter e Wolfgang eram miúdos, era-lhes apenas dito que era preciso reconstruir a Alemanha. Mas os pais e os professores calavam-se, evitavam o confronto – o confronto com a verdade da humanidade sem Humanismo, e com a História. Foi assim que a geração de Peter Stein e de Wolfgang Schäuble se tornou perita em assobiar para o ar e em fugir para a frente.

Mas há vozes debaixo do tapete que cantam lamentos insuportáveis. «Para mim», disse Stein nessa mesma entrevista, «o passado é um túmulo gigantesco. O único sentimento que tenho relativamente a ele é a tristeza, a tristeza que se sente por um defunto. Foi também por isso que quis deixar a Alemanha, e que a troquei por Itália.»

Wolfgang Schäuble não ouve, essas vozes debaixo do tapete? Aos 73 anos, ao cabo de quarenta e tal anos de vida política e duras agruras pessoais, não ouve?

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  2. […] de 2005 e sobre a qual se debruçou a Sarah Adamopoulos num artigo de Março deste ano “Europa: misantropia e terrorismo de Estado“, foi traduzida pelo Luís Sérgio Reis Fernandes. Para ele, o agradecimento do […]

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