postal de um dia na estrada…

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saio de Aveiro com o Daniel pouco passa do meio dia. Chegamos à Boavista, Porto, pouco passa da uma da tarde. A primavera parece ter-se instalado neste dia e depois de o Diogo entrar no carro, seguimos A4 acima, IP4 mais acima (ao tempo que não subia o Marão para lá do qual ‘mandam os que lá estão’). Passamos Vila Real, reencontramos a A4, comemos qualquer coisa numa estação de serviço deserta e passa pouco das três quando chegamos a Mirandela. O Daniel entretanto pôs uma câmara no tejadilho do carro (aka a torradeira). Digo-lhe que não me responsabilizo, mas chegamos todos, incluindo a ‘GoPro’, bem ao parque em frente ao rio onde a Liliana já nos espera com o pequeno (e traquinas) Eduardo.

Fazemos a entrevista à beira do rio, à sombra de um chorão no qual definitivamente se entranhou a primavera. Já não parava em Mirandela há tanto tempo! A cidade está bonita, parece. O parque cheio de crianças. Dos pequenos ruídos das crianças felizes e livres. Do cheiro da erva e da água. A vida parece fácil. Acho que a vida é fácil, quando voltamos ao carro às quatro da tarde, depois de a Liliana nos confirmar que o caminho mais perto para Miranda do Douro é por Espanha.

De novo a A4 até à fronteira de Quintanilha, que atravessamos com a câmara de novo no tejadilho (tenho muita curiosidade de ver estas imagens), contentes de ser tão fácil atravessar fronteiras. Tão livre. Tão diferente – digo eu aos dois rapazes que bem podiam ser meus filhos – de quando eu era pequena. Andamos uns 30 km na estrada para Zamora que não fica já muito longe até que vemos uma placa que nos anuncia o caminho para Miranda do Douro. Atravessamos uma pequena aldeia espanhola – Moveros – que tem placas a indicar Portugal. Podíamos ser só um país. Eu e o Diogo concordamos nisto. O Daniel parece que nem por isso e passado um bocado entramos outra vez em Portugal, agora sem nenhuma placa, como se fosse natural e, na verdade, é.

Passamos por algumas aldeias exatamente à hora em que as vacas recolhem. Gosto em toda a parte de assistir ao regresso das vacas dos campos. Gosto de vacas, embora menos que de burros, e de aldeias e de conduzir pelas estradas e de atravessar fronteiras. As aldeias das terras de Miranda ostentam placas bilingues (português e mirandês) e isso entusiasma os passageiros da torradeira. As vacas seguem indiferentes a caminho de casa. Como se fosse natural. E, na verdade, é.

Chegamos a Miranda do Douro às cinco e meia da tarde. Encontramos a loja da Violeta. Vende azeite e compotas e bolachas e ervas aromáticas e vinho e… mais tarde compramos algumas destas coisas, eu umas bolachas de milho e outras de figo e uma compota de abóbora com noz. A Violeta, depois da entrevista, oferece a cada um de nós um saquinho de erva peixeira. Quando saímos da loja é praticamente noite. Eu não venho a Miranda desde, sei-o bem como se tivesse sido ontem, 1993. Era feliz e a vida estava a começar, não sei nem quero dizer melhor que isto. O Diogo e o Daniel parece que também já não se lembram de quando aqui vieram e portanto andamos um bocado pelo centro histórico, bonito, preservado, orientado para os turistas espanhóis com os restaurantes e cafés anunciando tapas e bocadillos. Está muito frio. A promessa da primavera desapareceu ao ritmo do cair da noite.
Quando saímos de Miranda do Douro já passa das sete. Está escuro por toda a IC5 até Alijó. De novo a A4 até Vila Real. Jantamos em Vila Real, principalmente para o Daniel matar saudades. Voltamos pelo IP4, travando, travando, travando Marão abaixo. Os rapazes fazem-me um ‘update’ (dizem eles) sobre as relações de género na época atual. Há coisas que são difíceis de entender e o pequeno carro por vezes fica demasiado cheio de tanta realidade que desconheço, mas avança, assim mesmo, pela noite. Deixamos o Diogo em Santo Tirso depois de algumas voltas e desencontros de gps.

Quando eu e o Daniel entramos em Aveiro é uma e meia da manhã. Acho que nunca agradeci aqui a todas as pessoas que entrevistámos e gravámos e filmámos nos últimos tempos. A elas e a estes dois rapazes que andam de um lado para o outro comigo ou sem mim, a recolher as imagens, as vozes, as perspetivas das pessoas sobre um mundo onde as vacas ainda regressam ao fim da tarde às suas casas, devagar. Um mundo onde a vida – queiramos ou não – se faz a um ritmo diferente. Um mundo, como dizia o Miguel Torga (e era impossível que não tivéssemos também falado dele), onde ‘a vida é feita de nadas, de grandes serras paradas à espera de movimento’*.

Eu gostava, agora que atravessei Portugal a toda a largura duas vezes em menos de 14 horas, de ser isso. uma grande serra parada. uma seara levemente ondulada pelo vento. a sombra de uma figueira*. um chorão em que se entranhou a primavera.

**frase e palavras livremente adaptadas de Bucólica, de Miguel Torga.
“A vida é feita de nadas
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;

De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;

De poeira;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu Pai erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha”.

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