O meu mais querido professor de Coimbra

Paulo Marques

O João José Cardoso foi o meu mais querido professor de Coimbra.
Morreu sem avisar, e isso não é de mestre.
Foi ele que me ensinou a esquerda.
Foi ele que me espicaçou o jeito para reportar.
Foi ele que me fez céptico militante e admirador incondicional de algumas subversões – como a Diva, ou melhor, como o trailer da Diva, de Beineix, que aqui posto, in memoriam.

Conheci o João José quando o Grupo Ecológico da Associação Académica já não era o GAME mas ainda acentuava todo o anti-militarismo que lhe haveria de conhecer toda a vida. Eu frequentava engenharia e queria fazer jornalismo. Ele vinha da ressaca dos anos quentes e já fazia da aspereza e do tiro ao chefe uma arma de mestre – na altura, o alvo eram as sobras do seu MRPP que desesperavam por se manter à tona a fingir que controlavam.
Conheci-o, creio que no início de 1982. Foi na sala do ex-GAME, numa reunião improvisada de secções culturais da AAC. Ao jeito dele, tinha andado a bater às portas para levar a malta a participar num projecto noticioso para o Centro Experimental de Rádio. Só fui eu. Lá estavam o João, o Karpov e uma rapariga de que não retive o nome.
Depois, em dois pequenos anos, fizemos tantas e tão extraordinárias coisas que me fizeram redesenhar o mundo e quase me desamigaram de uma intensa e paralela paixão.
Foi por essa altura que o João me passou o meu primeiro charro.
Por causa dele conheci o Américo, o João Correia, o João Pedro, o Mário, o To-Zé, a Tona, a Rita…
Com ele vivi tempos de conhecimento infindo.
Emprestou-me o Céline e o Musil, a Pravda –revista de malasartes, o Alberto Pimenta e uns quantos cultores da contracultura, o Herberto e também o O’Neill, enquanto desdenhava da minha imberbe afeição por leituras presunçosas de Tzara, de Trakl, envergonhadas, de tardias, de um tal Saramago, e sobretudo engajadas de nomes que hoje omito por decência intelectual. Levou-me a ver o Wim Wenders, o Kusturica e essa alegoria azul e negra chamada Diva. Com ele passei ao largo dum arremedo de teatro que se experimentava no meio estudantil. Dele fugia a sete pés quando eu abria a boca para cantar nos ensaios e nos concertos do CELUC…
Pelo meio, percebeu que eu não tinha vida para repúblico e desviou-me de um convite para o Spreit-ó-furo. Arrastou-me, certa noite, para uma noite de beberragens na Clep para me desencorajar de ir dar uma aula (!) sobre os Carmina Burana e a Missa dos Beberrões a uma turma de História, leccionada por João Gouveia Monteiro. Debalde. Talvez por isso, levou-me a descobrir a baixinha, de tabernas e putas e, nessa altura, de muito povo, num tempo em que ele preparava uma tese sobre o poeta dos desafortunados, Adelino Veiga, que dava (e dá) nome a rua então de farto putedo…
A certa altura, convocou-me para uma pedrada encharcada na decrépita organização laranjinha que governava a direcção-geral. Acabámos mergulhados na aventura da criação de uma secção de jornalismo, meio aberta a não sei quantos inputs de não sei quantas esquerdas meio enfeudada a uma arejada e informada linha de rapazes e raparigas alinhados com a JS.
Lembro-me de tantos episódios… Uma noite, havia que decidir o nome do jornal a publicar. Faíscaram propostas: Gazeta Académica; Jornal Académico; Via Latina; Porta Férrea… O João, enojado, logo contrapôs: folha de couve. Ficou a coisa num impasse até que me ocorreu o nome da revistinha que eu editava, ali ao lado, na Filatélica. E atirei: A Cábula. Vingou, com o ensaio gráfico que o Victor Saraiva criara para mim e tudo.
Depois, num enorme ano de todas as feituras e frituras, vivi a ilusão e a desilusão de perceber que a tal pedrada encharcada era, afinal, uma espécie de boomerang que bate e dói como o caraças.
Mas o mal estava feito. Em dias e noites, e mais noites, ganhei-lhe o afecto eterno que agora me faz estar aqui a teclar. Uns anos depois, no regresso de um obscuro percurso (pelo) interior, dou com o João José a fazer qualquer coisa parecido com o que eu queria. Jornalismo? Talvez, embora meio perdido no labirinto de loucuras que foi a empresa jornalística de Eduardo Ferreira, deambulando entre a vocação da rádio (90 FM) e a atracção pelo registo escrito de jornal (As Beiras).
Era 1989. Desde então, encontrei o João amiúde. Aqui e ali eu como jornalista e ele actor de muitos palcos – o Viv’Arte, o PSR, mais tarde o Bloco de Esquerda, o Ensino e a Educação, a Rádio Universidade, a Liberatura, a História da Arte e a Faculdade de Letras, o Aventar, os Cidadãos Por Coimbra, a igreja de Santa Justa e o Terreiro da Erva, as incontáveis guerras e guerrinhas em que ele, libertário e agitador, se envolvia como poucos…
Fica em paz, meu amigo.

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