A invasão da Ucrânia e o novo politicamente correcto – O Equilíbrio do Terror #13

Andamos há anos a ouvi-los, aos berros, a anunciar o fim do mundo, porque a maleita do politicamente correcto se abateu sobre nós. Já não se pode gozar com homossexuais, não se pode poluir à vontade, não se pode ser nazi descansado, não se pode ser racista sem aparecer um woke zangado. Uma tragédia de proporções só comparáveis às do Holocausto.

Fora de tangas, é verdade que o policiamento da linguagem, em alguns momentos, tem ido longe de mais. Que a linguagem dita inclusiva, não raras vezes, atropela a integridade da língua portuguesa e a liberdade de expressão, para não falar em episódios absolutamente ridículos como aquele em que os seus proponentes defendem a substituição da palavra “mãe” por pessoa lactante, para não incomodar a ala mais radical da génerosfera.

O politicamente correcto tem sido associado à esquerda, criando, à direita, uma espécie de contra-cultura de inconformados, que não aceitam nenhum dos pressupostos associados ao conceito. No entanto, desde o início desta guerra, emergiu um novo politicamente correcto, com um nível de policiamento da linguagem sem precedentes. Já não se trata de apontar o dedo a quem discrimina ou agride verbalmente. Trata-se de rotular de ditador quem ousa meter o dedo numa ferida, que é real e factual.

Ora, o politicamente correcto da direita, aqui pelo Rectângulo, tem sobretudo nos liberais, mas também nos conservadores, as suas forças armadas do policiamento da linguagem. São ferozes, estes KGBs, e o seu alvo são todos aqueles que se atrevem a discutir os antecedentes da invasão da Ucrânia. Que se atrevem a ligar os pontos de um conflito que tem anos, não dias, e que não começou há semana e meia porque Vladimir Putin acordou mal disposto e decidiu invadir a Ucrânia. Autoritários, os novos polícias da linguagem, que policiam também o debate público e as redes sociais, decretaram que a história deste conflito começou a 24 de Fevereiro de 2022. E quem disser o contrário está a soldo de Putin. Ou é um filho da Putin mal intencionado, que odeia a liberdade e quer viver em ditadura. O pensamento único dos novos censores é implacável.

Porque é que isto acontece?

A meu ver, isto acontece por diferentes motivos, mas há um que se destaca, e que se relaciona com o embaraço de perceber que o modelo económico das democracias liberais, o capitalismo, que está a proporcionar enormes vantagens ao regime de Putin, não só pelos ganhos que a seu regime cleptocrata vem obtendo, há muitos anos, e que lhe permite hoje financiar o esforço de guerra através dos lucros do comércio internacional com as democracias que agora berram e aplicam sanções mais ou menos tímidas, mais ou menos cobardes, e sempre repletas de regimes excepcionais para a elite que comanda o regime, mas também pelos danos que tudo isto causa na reputação de um modelo económico que não quer nem nunca quis saber de democracia ou liberdade, mas de crescimento e lucros. Nem lhe compete, aliás, ser democrata. É um modelo económico, não uma ideologia política. Se fosse democrata, a China não estava prestes a assumir a sua liderança e controle. Mas pôr isto a nu tem custos, elevados, que a elite que nos comanda não está disposta a pagar.

Isto é, de facto, muito embaraçoso para quem anda há anos a defender que o capitalismo é o modelo da democracia e do mérito, para depois perceber que funciona melhor para ditadores e oligarquias, que não estão vinculados às regras democráticas. Que, desregulado como o pretendem boa parte dos liberais, do alto do seu anarquismo libertário, é uma alavanca poderosa para o crescimento de regimes autoritários e totalitários, que, tendo acesso ilimitado ao jogo, corrompem decisores ocidentais, políticos ou empresariais, para, de seguida, colocar países inteiros na sua dependência, enfraquecendo e limitando a sua capacidade de reagir à opressão. E se isso fica muito claro no actual panorama das sanções económicas impostas pelos países ocidentais à Federação, não só pelos tais regimes excepcionais, mas sobretudo pela manutenção dos contratos de fornecimento de gás russo à Europa Central e de Leste.

Por estes motivos, e por outros mais que poderiam ser referidos, nunca existiu a coragem de criar um cordão sanitário, ao longo dos últimos 20 anos, em torno desta e de outras ditaduras, como a chinesa ou a saudita. E isto é revelador de outro facto incómodo para o defensores da santidade do capitalismo: que dinheiro se sobrepõe, sempre, à democracia. Sempre. De outra forma, não fecharíamos fábricas na Europa para poupar uns euros com o trabalho semi-escravo que o empreendedorismo ocidental encontra na China. Voltando à Rússia, foi exactamente esta a máxima que imperou, entre nós, ocidentais capitalistas. Sabíamos quem Putin era, sabíamos que a alegada democracia russa era uma fachada, sabíamos que os seus opositores eram oprimidos, presos ou assassinados, em Moscovo ou Londres, e, mesmo assim, abrimos as portas das nossas empresas, dos nossos sectores estratégicos e do nosso mercado imobiliário ao capital russo, todo ele extorquido ao melhor estilo cleptocrata. Sabíamos de tudo isto e optamos por pactuar com facínoras, porque o mercado deve ser livre, mesmo para os inimigos da liberdade, e porque, repito, a prioridade do capitalismo e daqueles que o dirigem não é a democracia, a liberdade ou os direitos humanos, mas o dinheiro. Venha ele de onde vier, pingue ele o sangue que pingar.

Graças ao capitalismo, as fortunas dos oligarcas, que é o mesmo que dizer o poder de facto de Putin, aumentaram exponencialmente, a ponto de haver quem se refira à capital inglesa como Londongrado. A ponto de serem eles, juntamente com os hitlers do Médio Oriente, os donos dos maiores clubes do futebol europeu. A ponto de estarem entre os principais clientes das marcas de luxo, da moda e da cosmética à indústria automóvel. Durante anos, vimos esta realidade ganhar forma, alternado com imagens de opositores de Putin enjaulados em tribunal, envenenados em Salisbury ou alvejados nas imediações do Kremlin. E o que fizemos, para os afastar das vantagens e dos ganhos que o nosso modelo económico proporciona? Nada. Rigorosamente nada. Antes pelo contrário: mantivemos as portas escancaradas com um letreiro por cima, em letras garrafais, onde se podia ler: oligarcas de todo o mundo, uni-vos e passai por cá.

Este é um dos motivos que levou parte significativa da direita a embarcar neste novo politicamente correcto, mas não é o único. Entre os restantes, destacaria as movimentações da NATO, ao arrepio de acordos internacionais existentes, como o Memorando de Budapeste, ou a forma como se instrumentalizou, ao longo de anos, a hipotética entrada da Ucrânia para a Aliança e para a UE, que nunca esteve verdadeiramente em cima da mesa, ambas fundamentais, a meu ver, para percebermos como chegamos aqui. Não obstante, os policias da linguagem não querem nem ouvir falar nestas e noutras variáveis. Querem, apenas e só, resumir o que se passa ao simplismo de um ditador que invadiu outro país porque é mau. Assumir que esse ditador, e outros como ele, chegaram onde chegaram com a complacência e a colaboração do capitalismo, da NATO e das democracias ocidentais é uma ameaça à sua narrativa e ao pensamento único que pretendem impôr. E isto ajuda, em parte, a explicar o ataque ao PCP, o tema do momento entre as hostes da IL. Não que o PCP não se tenha posto a jeito. Aliás, as posições do PCP foram um balão de oxigénio, que lhes permitiu tapar a realidade com uma peneira. Mas, como com qualquer peneira, há sempre um grão de areia que passa e encrava a engrenagem. Não dá mais para esconder.

Comments

  1. POIS! says:

    Excelente!

    Ontem, como faço por passatempo, ouvi os comentários do Dr. Portas na TVI.

    A prestação do comentarista é caraterizada pelos chamados “três vês”: a vesguice, a vulgarice e a vigarice.

    Ora imaginemos a situação seguinte: Jerónimo de Sousa dirigia-se, por sua iniciativa, a Moscovo para se encontrar com Putin, porque “há gente a morrer dos dois lados”.

    O que diriam as “forças armadas do policiamento”? É fácil de imaginar. Independentemente dos motivos invocados seria sumariamente condenado, crucificado e passado a ferro por um cilindro da Junta Autónoma das Estradas. Isto seria extensivo a qualquer indivíduo que aparente ser de esquerda.

    Ora, o Primeiro-ministro de Israel fez isso mesmo: foi a Moscovo encontrar-se com Putin em plena guerra. Não telefonou, como Macron. Foi lá!

    E o que disse o General Portas? Que foi porque “há judeus dos dois lados do conflito”!

    Mas calma: em seguida, telefonou a vários figurões a dizer coisas. Ficou-lhe bem!

    E visto que não há católicos, nem ortodoxos, nem evangélicos, nem ateus, nem muçulmanos, nem budistas, nem agricultores, nem padeiros, nem futebolistas, nem artistas, nem crianças dos dois lados do conflito, quem se atrever a colocar a possibilidade de pensar em ir a Moscovo deve ser imediatamente fuzilado.

    Nem mais!


  2. Ouvir Paulo Portas, é como tomar um laxante poderosíssimo !

  3. JgMenos says:

    Resumindo:
    Arvora a esquerda a autoria de que na CRP se vise « a dissolução dos blocos político-militares», tirada esta do mais progressista corretês.
    Logo a seguir proclama que a agressão da Rússia é má, mas…
    pelo facto de haverem blocos político-militares, no caso:
    – um que se declara estritamente defensivo
    – um outro, o agressor, que fala em uso táctico de bombas nucleares.

    Não há treteiros como os treteiros.