As crianças crescem

(texto em quatro andamentos, escrito velozmente ao som de Tchaikowski)

 

1º ANDAMENTO

 

É o crescimento das crianças, que tenho observado ao longo do tempo. Também das minhas, mas não só. As minhas são as mais importantes. Feitas por mim, em conjunto com a pessoa da minha paixão. Mas, há mais crianças que pessoas que se dedicam à ciência do analisar e observar e com elas aprendem. Aprendizagem do analista que acaba por não ser incluída nos estudos. Porque para um observador das ideias com as quais as pessoas transformam a materialidade da vida para a sua continuidade histórica, voir, a sua reprodução, a criança acaba por ser um dado inexistente.

A Ciência tende a ver a criança como a pequenada que está aí sem mexer nem dizer nada. Só cala e observa e serve para ser mandada ou para aliviar a trabalheira do adulto.

Atitude diferente tiveram através dos tempos, John Locke (1693), Jean Jacques Rousseau (1762), Bronislaw Malinowski (1922), os etnólogos portugueses como Teófilo Braga (11914-1915), Adolfo Coelho (1882-1916), Maria Rosa Colaço ( s´d ), Maria Emília Traça (1992) e toda a equipa que tem trabalhado comigo nas duas últimas décadas em Portugal, Espanha, França, Holanda, África e América Latina. Philippe Ariés (1960-1972) soube caracterizar muito bem essa atitude diferente, ao longo do tempo.

É com esse respeito de aprender com as crianças que a minha equipa tem trabalhado em diversos Países e Continentes. Equipa de que fazem parte Luiza Cortesão, Stephen Stoer, Helena Costa, Telmo Caria, Ricardo Vieira, Filipe Reis, Amélia Frazão, Darlinda Moreira, Ângela Nunes, Paulo Raposo, Luís Souta, Henrique Gomes de Araújo, Rosa Melo, Eduardo Costa, Alexandre Silva, Elvira Lobo, José Maria Cardesin, José Maria Valcuende, Marie-Elisabeth Handmann, Paula Iturra, Blanca Iturra, entre outros. Não é minha intenção aborrecer o leitor com uma longa lista de estudiosos do comportamento infantil.

 

Queria apenas dizer que todos nós, como equipa, temos tido a preocupação de andar de papel e lápis na mão, a brincar, a recolher histórias da memória social do grupo no qual a criança vive.

O problema é que a Ciência da Educação se fecha na instituição escolar e a Psicologia no problema da relação da criança com o adulto e deste com a criança ou na questão da violência intrafamiliar. Tchaikowski (1877) e Schumann (1838) souberam ver o poema da pequenada nas suas músicas, as quais me acompanham nesta escrita veloz para que o texto chegue atempadamente ao Aventar e à minha editora pessoal.

No Chile, mais precisamente em Pencahue, no dia do aniversário do Libertador Bernardo O’Higgins (20 de Agosto de 1779), parei o trabalho de pesquisa que estava a realizar com um grupo de crianças para redigir, com elas, um texto, incluído, mais tarde, como parte de um livro meu. O debate sobre esse trabalho realizado por mim com as crianças fica para outro dia. Hoje, quero referir-me às crianças que conheci e estudei, faz hoje 35 anos, na minha aldeia galega, essa antiga Paroquia camponesa de Vilatuxe. Aldeia onde morei e trabalhei, com a minha família durante quase dois anos, e estudei novamente, 25 anos depois. Desta última vez, fiquei alojado em casa de um grande amigo, o pastor de ovelhas Hermínio Medela e da sua família. Fui tratado como um rei….

 

2º ANDAMENTO

 

Estamos habituados a ver as crianças. Aí estão. Choram. Têm fome, são queridas enquanto exploram o mundo que mal conhecem. É com esforço e concentrada atenção que ouvem, vêm e calam. Nessa Vilatuxe galega do começo dos anos setenta, Berta e Pedro Tomé brincavam com os porcos, e encavalitam-se neles. Os adultos riam e deixavam. Até porque no seu imaginário tinham baptizado os animais com os nomes dos antigos príncipes, hoje Reis depois da morte do Ditador. Era assim que esses pequenos, como a vizinha Beatriz Ramos, exprimiam o que em casa era sentido mas não falado, o descontentamento das pessoas com o sistema político.

Sistema político que não permitia que as pessoas exprimissem o que pensavam e desejavam dizer. Esses pequenos fisgavam o sentir do adulto e punham palavras aí onde as meias frases segredavam o que os adultos pensavam do poder político. Neruda (um grandão que escrevia com a dor do adulto, para os pequenos) tinha dito nos anos vinte – por que no enseñan a sacar miel del sol a los helicópteros? Como esse outro Prémio Nobel Chileno, Gabriela Mistral, que pelos mesmos anos 20 disse: Piececitos de niños, azulosos de frios, como os vem y no os cubren, Dios mio… Diferente do saltitar de Berta, Pedro e Beatriz, Paula, a nossa filha mais velha, nos seus cinco anos desses tempos, por cima das lombadas dos porcos exprimindo a proibida crítica política ao ditador, morto santamente anos depois. E com o consentimento dos adultos, que não mandavam calar, era uma verdadeira forma de protesto contra a construção do mundo adulto que a criança percebia mas não sabia explicar. Só sabia sentir o que o adulto sentia e não podia dizer. Nenhum deles, nem o pai de Paula, observador silencioso dos factos com que analisava os comportamentos. Mas, foi aí que esses quatro, e muitos outros que refiro num outro livro, aprenderam a dizer, depois de sentir, pensar e elaborar, por pura afectividade, o que os seus adultos calavam. O protesto democrático pela liberdade que Rousseau tanto procurou para o pequeno e para o adulto, de exílio em exílio, só podia ser dito pelo pequeno. E era a criança, como é agora, que condicionava a conduta do adulto. Porque no segredo da casa, tudo se fala, mas tudo dito para não ser repetido lá fora. Excepto, nas brincadeiras que a pequenada imaginava a partir do que ouvia e sentia dos grandes que amava. E que esses grandes sabiam dizer de forma tangencial, para não serem tão abertos que viessem a aparecer palavras comprometedoras para a segurança do grupo doméstico que amavam.

A brincadeira, saiba a pequenada ou não, é política e como política, liberta a opressão dos adultos responsáveis pelas crianças. Foi assim em Portugal, como o foi em 1848 na Comuna de Paris, que abalou o mundo e fez entrar a Prússia em França. Tal como no Chile de hoje, onde as crianças utilizam a fala oficial frente aos seus mestres e nas suas brincadeiras utilizam os palavrões que revelam os
si
lêncios das pessoas grandes. 

 

3º ANDAMENTO

 

Porque a conduta do pequeno condiciona a conduta do adulto. É um facto observado por mim e pelos meus companheiros de pesquisa. Nem digo os pequenos mortos no Ruanda, que Paula Iturra, em Amesterdão, trata analiticamente para os pais fazerem o luto. A conduta dos pequenos condiciona mais a dos adultos que o contrário. É verdade que as palavras vêm do adulto, bem como as ideias. Como é também verdade que a realidade a ser aprendida pela criançada, é a verdade exprimida pelo sentimento do maior. Um maior que nem repara que o gesto da cara, o protesto da palavra, a poupança nos ingressos raros, o comentário com a vizinhança em presença do puto e em voz calada, mostram aos mais novos a contradição entre a lição dita oralmente e com punição, caso seja repetida, e o riso forte Das Auroras e Pepes Tomé Fernández, dos Pepes Ramos, e o riso profundo, forte e honesto dos mesmos perante a ironia dos inventos dos príncipes porcos, hoje Reis respeitados ou distantes.

O adulto vê condicionada a sua conduta, conscientemente ou não, pelo temor de ouvir as suas palavras serem repetidas pela pequenada. Sem reparar que a pequenada é fiel quando há, como nos casos supracitados, amor, cuidado, histórias que se contam, agasalho, comida quente e passeios quando possível.

O adulto quer manter a sua vida como se não houvesse entendimentos diferenciados, horários diferenciados entre as duas gerações, ou às vezes três. Quando o adulto não repara que os horários e hábitos de interacção social limitam a liberdade assim denominada, que o adulto tem. Porque esse grandão já não pode, por um tempo, fazer só o que quer: tem de tomar conta de fraldas, de perguntas, de não substituir iniciativas, de sugerir ideais alternativas quando os pequenos podem ofender os mais velhos com as suas brincadeiras. Ou, pôr em aperto os outros, com as suas opiniões espontâneas, nascidas da diferença do que vê no seu lar e do que observa no lar dos outros. Aí nasce a crítica feita dentro de casa, quando o adulto manda calar o mais novo, sem reparar que o mais novo está a construir uma lógica que virá a reger a sua vida mais tarde.

Eu diria que o adulto não cresce. Porque para crescer, deve separar em debate com o novo, o que sente e pensa, do que o mais novo observa.

Beatriz disse-me há uns meses, 25 anos depois da sua infância: a tua sogra, Raul, bebia e fumava até não poder mais. O que acontecia é que ela era uma dama que não trabalhava e que, de visita à família (na aldeia) durante as suas férias, tomava o seu aperitivo e fumava o seu cigarro depois do jantar. Ora isto, contemplado pelo hábito da mulher que só trabalhava e tinha hábitos diferentes do homem, era uma perversão para uma pequena e para o seu lar. Lar que nunca usou o método comparativo para explicar que o mundo não é etnocêntrico, que é relativo.

  

4º ANDAMENTO

 

Relativismo que, crescida, a pequenada passa a conhecer e não só não crítica, como aprende e pratica de forma parcimoniosa. Vinte e cinco anos depois, quando o matrimónio acontece, e ao par se junta a profissão, o cálculo, a liberdade para utilizar o imaginário no cálculo e já não para brincar aos príncipes com os porcos.

Crianças monárquicas por hábito, para assegurar a democracia hoje vivida em tantos países por onde tenho andado. Criança que nem o adulto anterior, acaba por entender. Porque, sem voltarem à aldeia, os Pedros desenhadores ou arquitectos, as Bertas mestras, as Beatrizes proprietárias e comerciantes e as Paulas psicanalistas, tratam os seus adultos com a distância que lhes dá o saber da Ciência que praticam. Uma Ciência que acham diferente da dos seus adultos tratando-os como se fossem seus clientes. Tudo isto agravado pelo novo ideal da autonomia e do individualismo, não vivido pelo adulto maduro. A geração anterior está muito perto em idade, por assim dizer, mas entende de forma muito diferente o real.

A criança cresce agora numa família restrita, de pares sucessivos, procurando a emotividade da família alargada. Mas, com o objectivo de ser autónoma, individualista, de pares de vida celibatária, heterogénea, com acordares novos para a afectividade. As crianças crescem e fazem ficar o adulto anterior, pequeno. Porque o adulto anterior guarda a afectividade e comemora o sucesso de mudança de vida, em silêncio, sem entender muito o conteúdo das conversas. Num curto espaço de tempo, as duas culturas, a adulta e da infância que tenho observado durante décadas, têm ganho distância no entender, no saber e na prática.

Ali, onde há 35 anos encontrei um conjunto de seres com um modo de vida rural a tratar do campo, encontro agora um passado que desaparece para dar passo a raros empresários rurais, e uma multidão de profissionais que fazem da vida anterior, quotidiana, um eventual fim de semana. Com correcção dos mais adultos. As crianças crescem com a ética desses adultos, transformada pela entrada nos Países das ideias semeadas no séc. XVIII e tendo hoje o lucro como principal objectivo. Objectivo que, há 35 anos, não era percebido pelos mais novos, nem estava nos cálculos dos mais velhos.

Porem, a criança precisa de ser estudada no seu contexto conjuntural, transitório, mutável. Transitório e reiterado como o tempo, todos os quarenta anos… Como vamos voltar a explicar depois. Orgulhosamente à la Rousseau, como defendem Stoer e Magalhães (1998). Como todos nós.

 

BIBLIOGRAFIA

 

Ariès, Philippe, (1964) 1988: A criança e a vida familiar

no Antigo Regime, Lisboa, Relógio D`Agua.

Braga, Teófilo, (1914-1915) 1995: Contos Tradicionais do Povo Português, Lisboa, Publicações Dom Quixote. Volumes I e II

Coelho, Adolfo (1910) 1993: Cultura Popular e Educação, Volume II,

Lisboa, Publicações Dom Quixote.

Colaço. Maria Rosa, s/d, A criança e a vida. Colectânea de textos infantis. Lisboa, Publicações Europa-América.

Iturra, Raul, 1998: Como era quando não era o que sou. O crescimento das crianças. Porto, Profedições,Porto.

Malinowski, Bronislaw, 1922: The Argaunats of Western Pacific, Londres, Routledge and Kegan Paul.

Rousseau, Jean Jacques, (1762) : várias edições actuais, Èmile.

Schumann, Robert, 1832: Kinderzennen.

Tchaikowsky, Piotr Ilyich, 1848: Album for the young.

Teitelboim, Volodia, 1984 a): Gabriela Mistral. Pública y Secreta. Madrid, Alianza Editorial.1984 c) Neruda. Madrid, Alianza Editorial

 

Comments


  1. Maria Rosa Colaço (1935-2004). Uma grande amiga minha. Texto importante, necessário, este. E tudo o mais que habitualmente os seus textos têm – uma grande profundidade. Mas hoje não vou elogiar mais, a intenção foi mesmo proporcionar as datas de nascimento e falecimento da «grande» Maria Rosa.