A máquina do tempo: em demanda de Eça* (4)

_ Já pudemos ver como Coimbra foi importante no despertar da sua vida intelectual. Lisboa pode considerar-se a segunda grande etapa dessa evolução. Que papel desempenhou a capital na sua obra?

– Eu lhe conto. Com a minha carta de bacharel num canudo, trepei enfim um dia para o alto da diligência, dizendo adeus às veigas do Mondego. Justamente nesse mesmo tejadilho ia um francês, um commis-voyageur. Era um colosso, de lunetas, duro e brusco, com um queixo maciço de cavalo, que à maneira que o coche rolava ia lançando através dos vidros defumados um olhar às terras de lavoura, aos vinhedos, aos pomares, como se os sopesasse e lhes calculasse o valor, torrão a torrão. Não sei porquê, deu-me a impressão de um agiota, estudando as terras dum morgado arruinado. Conversei com este animal; ele pareceu-me surpreendido da minha facilidade no francês, do meu conhecimento do francês, da política de França, da literatura de França.

E ainda recordo o tom de alta protecção, com que me disse, batendo-me no ombro: «Vous avez raison, il faut aimer la France… Il n’y a que ça! Et puis, vous savez, il faut que nous vous fassions des choses, des chemins de fer, des docks, des choses… Mais il faut nous donner votre argent…

– A França e a sua cultura influenciavam fortemente os políticos e os intelectuais portugueses. Aliás, é sua a fórmula: Portugal é um país traduzido do francês em vernáculo. Passados tempos, alterou essa formulação: Portugal é um país traduzido do francês em calão.

– É verdade. E se a primeira fórmula, mais subtil e exacta, colando-se à realidade como uma pelica, foi acolhida com secura e impaciência, a segunda foi recebida com rebuliço, e rolou de mão em mão como uma moeda de ouro bem cunhada e rutilante. Já a encontrei brilhando num almanaque, numa comédia do Príncipe Real e num sermão.

– A que atribui essa diferença de acolhimento?
– Quem sabe? Talvez porque a ideia da vernaculidade desagradava, lembrando pedantismo, caturrice, a Academia das Ciências, o pingo de rapé, outras coisas antipáticas. Enquanto a ideia do calão nos sugere, sobretudo a nós lisboetas, chalaça alegre, bacalhau de cebolada, Chiado, Grémio, pescada frita nas hortas, em tarde de sol e poeira, e outras delícias, de que eu, ai de mim, estou aqui privado!

– Mas voltemos a Lisboa. Esse francesismo era já notório quando ali chegou?

– Sim e de que maneira. Quando cheguei à capital, lembro-me que a primeira coisa que me impressionou foi ver a uma esquina um grande cartaz, anunciando a representação de Cançonetas francesas, no Casino, a brilhante Mlle. Blanche. Era outra vez a França, sempre a França. Eu deixara-a dominando em Coimbra, sob a forma filosófica; vinha encontrá-la conquistando Lisboa, de perna no ar, sob a forma do can-can… Começou então a minha carreira social em Lisboa. Mas era realmente como se eu habitasse Marselha. Nos teatros – só comédias francesas; nos homens – só livros franceses; nas lojas – só vestidos franceses; nos hotéis – só comidas francesas… Se na capital do Reino, resumo de toda a vida portuguesa, um patriota quisesse aplaudir uma comédia de Garrett ou comer arroz no forno, ou comprar uma vara de briche – não podia.

– E a vida política?

– A particular coscuvilhice política, que é tão peculiar a Lisboa como o nevoeiro a Londres, forçou-me, a meu pesar, a embrenhar-me também na política.

– …?
– Em que política? Boa pergunta! Na francesa! Lisboa estava dividida entre ferozes adeptos de Rochefort e de Gambetta, e defensores do imperador. O que eu conspirei! O meu desejo era filiar-me na Internacional. Lembro-me que uma noite, a propósito de não sei que novo escândalo do Império, achando-nos uns poucos no Martinho, em torno de um café, exclamámos, pálidos de furor, cerrando os punhos: «Isto não pode ser! Já sofremos bastante. É necessário barricadas, é necessário descer à rua!» Descer à rua, era a ameaça terrível. E descemos o degrau do Martinho! Depois, na rua, sob o quente luar de Julho, ouvindo foguetes para os lados do Passeio Público, voltámos para lá os passos frementes – porque um de nós, o mais exaltado, encontrava lá uma certa senhora em noites de fogo preso…

– Todos os que amamos a sua obra, sabemos que nesses anos iria dar início a uma fulgurante carreira literária. A passagem pelo jornalismo com a fundação de O Disttrito de Évora, a colaboração na Gazeta de Portugal, a criação do Cenáculo, com Batalha Reis e Antero de Quental. Seguimos através dos seus belos artigos do Diário de Notícias a sua viagem pelo Oriente. Lemos os seus livros, artigos e folhetins. Sabemos das suas andanças na carreira consular por Havana, Newcastle e Bristol. Até que, em plena maturidade, resolve casar. A história do casamento é menos conhecida. Importa-se de a revelar?

– Olhe, o meu casamento não tem história. Quando eu e Emília estávamos juntos, durante a longa intimidade de três meses, falávamos de livros, de cozinha, do que dizia o Ilustrado, um pouco de religião, muito das senhoras da Granja, de arte, de cães, da cultura da beterraba e uma ou outra vez do Fontes. E foi quando nos separámos que, de repente, batendo cada um por seu lado na testa, exclamámos a toda esta distância: – «É verdade, esqueceu-nos de dizer que devíamos unir os nossos destinos!». É este o único lado pitoresco. O resto é um pouco terre-à-terre, não vale de modo nenhum o esplendor lírico do Romeo and Juliet e não poderia ser posto em árias pelo lânguido Gounod. É apenas a história de duas pessoas que têm um coração sério e que reciprocamente o colocam no refúgio muito seguro duma estima muito profunda.

– E Os Vencidos da Vida, como foi que surgiu a ideia de formar o grupo?
– Uma vez, a uma mesa do restaurante Tavares, reunimo-nos alguns amigos: o conde de Ficalho, o Ramalho Ortigão, o Oliveira Martins, o António Cândido, o Carlos Lobo de Ávila e eu. Lembrámo-nos de criar uma sociedade, como muitas que havia já noutros países da Europa. Um lugar onde pudessemos conversar, debater problemas intelectuais … enquanto se comia. O Ramalho foi quem lançou a ideia e Oliveira Martins quem sugeriu o título, inspirado num comentário de La vie à Paris, de Jules Claretie sobre os grupos jantantes que aqui existiam. Dizia Claretie que esses jantares eram reuniões em que se encontravam os intelectuais «attristés souvent, bien changés, les uns glorieux, les autres battus de le vie».
E Oliveira Martins disse: «Battus de la vie! Eis o que nós somos também – Vencidos da Vida. Propusemo-nos dar ao país «Vida Nova» e somos afinal de contas uns Vencidos da Vida». E o nome pegou. O grupo inicial cresceu. Uma noite bonita, calma, quase de luar, em vinte e seis de Março de 1889, na sala grande do Hotel Bragança todos nos reunimos. Todos excepto Guerra Junqueiro que não pudera chegar a tempo de Viana do Castelo. A meio do jantar chegou-nos um telegrama do Junqueiro, onde em versos de um grande talento e espírito nos saudava. A partir daí passou a haver um jantar semanal. Quando vou a Lisboa não falto.
– Que importância têm os Vencidos da Vida para a sociedade portuguesa? Há até quem vos aponte ambições políticas, que vai haver um governo vencidista…
– Tretas, meu amigo. Os Vencidos ofereceram o mais alto exemplo moral e social de que se pode orgulhar este país. Onze sujeitos que, desde há seis anos, formaram um grupo, sem nunca terem partido a cara uns aos outros; sem se dividirem em grupos de direita e de esquerda; sem terem nomeado entre si um presidente e um secretário perpétuo; sem arranjarem estatutos aprovados no Governo Civil; sem emitirem acções; sem possuírem hino nem bandeira bordada por um grupo de senhoras ‘tão anónimas quanto dedicadas’; sem serem elogiados no Diário de Notícias, estes homens constituem uma tal maravilha social que certamente, para o futuro, na ordem das coisas morais se falará dos onze do Bragança como na ordem das coisas heróicas se fala nos onze de Inglaterra.

*Nota: Esta narrativa constitui uma adaptação da biografia ficcionada de Eça de Queirós que publiquei em 2000 (C.L.)

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