A noite em que o George Clooney jantou lá em casa

E contra todas as probabilidades, à hora marcada, a campainha soou. Tirei o avental, admito que possa ter dado uma última espreitadela ao espelho, e fui abrir a porta. Lá estava ele, com o sorriso estudado e o fato aprumadíssimo, mas no seu olhar pareceu-me entrever alguma desconfiança. É natural, pensei, não é todos os dias que uma estrela de Hollywood vem jantar à Rua do Bonjardim.

Dei-lhe as boas vindas, agradeci a previsível garrafa de vinho e conduzi-o à sala. Ele mostrou um interesse diplomático pela casa, apreciou à distância alguma das fotos dispersas pela sala, olhou mais de perto uma peça de cerâmica, sem contudo se atrever a tocar-lhe, ensaiou uma espreitadela à varanda, mas desanimou-se e acabou por ir sentar-se no sofá. Movia-se com à vontade, num exercício de informalidade muito trabalhada.

Eu sentei-me no outro extremo da sala e a conversa foi avançando aos tropeções, em grande parte graças à minha fraca habilidade para evocar filmes nos quais ele tivesse contracenado. Depois um arranque titubeante, comigo a falar-lhe de filmes protagonizados por outros actores, perdi a paciência e confessei-lhe que sempre o vira como um Cary Grant dos tempos modernos, com a mesma subtil combinação de charme ingénuo e de atrevimento pouco picante. Ele gostou da ideia e, aproveitando o momentâneo idílio, resolvi servir o jantar.

Comecei com pão saloio, umas azeitonas negras e um queijo de ovelha da Serra da Gardunha. A princípio, o Sr. Clooney não parecia muito entusiasmado com a fraca aparência das entradas. Fez um sorriso tenso, e parecia pensar, sem se atrever a dizê-lo, “tenho mesmo de comer isto?”, mas lá experimentou o queijo.  Que vos posso contar? Era um desses queijos suaves, ideais para quem se inicia nesse mundo, que bem sabemos quão violento pode ser, dos queijos com carácter. Cumpriu a sua função apaziguadora sem desiludir.

Quando pousei a terrina sobre a mesa, ainda o meu convidado dava conta das últimas azeitonas. Levantou os olhos com interesse, e espreitou para o interior da terrina. Fumegante, perfumada, um aconchego naquela noite de Inverno, ali estava uma portuguesíssima sopinha de hortos. Neste ponto, pairou sobre o jantar a ameaça do fracasso retumbante.  O Sr. Clooney olhou com evidente antipatia para a sopa e ocorreu-me que estava perante mais um dos inúmeros adultos que transportam da infância um ressentimento contra as hortaliças.

Mas quem poderia guardar por muito tempo qualquer ressentimento contra as tenras folhas verdes, que ainda há pouco tinham saído da horta, viçosas e luzidias? E que dizer do feijão, gordo e vermelho, a leguminosa mais afável que neste mundo se pode encontrar? Para não ofender a anfitriã, lá se atreveu ele a levar uma colherada à boca. E pouco mais bastou para que se sanasse o velho conflito com a hortaliça, dando início a um armistício que me atrevo a prever duradouro.

A cada colherada eu ia vendo como ganhavam cor as bochechas do sr. Clooney, e como o calorzinho da sopa fumegante ia derretendo o formalismo que até aí tinha amordaçado a conversa. E enquanto me ajudava a levantar os pratos e a terrina vazios, e esperava que eu ultimasse os preparativos do seguinte prato, ia-me contando como se tinha tornado entediante a digressão pela Europa, com as mesmas perguntas repetidas em cada cidade, e a legião de fãs atiradiças. Eu confessei que me custara a acreditar ter ganho o concurso que instituíra como prémio receber a celebridade para jantar, mas que estava radiante com a sua presença. Mas, por essa altura, já ele prestava pouca atenção ao que eu dizia e mantinha os olhos presos na travessa que saía do forno.

Um gratinado de peixe, no caso umas branquíssimas tranches de pescada, coisa prosaica, e ultra-congelada, que a arte de ler guelras nunca foi para mim. Uma vez dispostas, com a máxima cortesia, as delicadas tranches, e coroadas por finos colares de cebola, fatias de tomate e pimento verde, tinham recebido uma generosa cobertura de molho bechamel, com salpicos de noz-moscada. Já no prato, repousavam sobre arroz branco.

A noite corria bem. O sr. Clooney parecia estar a apreciar o jantar, a conversa fluía sem grande interesse mas conseguindo escapar a silêncios incómodos: eu tentava não deixar perceber que não era grande apreciadora da sua arte, o que, bem vistas as coisas, pouca mossa devia fazer-lhe, e falávamos sobre filmes antigos, território no qual parecíamos ter gostos em comum.

Para a sobremesa, e mantendo-me fiel à cozinha nacional, servi-lhe leite-creme. Uma fina película de açúcar derretido, crocante, sob a qual flutuava o caramelo, cobrindo o creme espesso e suave. Comemos em silêncio, menos por ausência de assunto do que por reverência a uma sobremesa que a sorte permitira que me saísse inspirada.

– Bem, George, imagino que esteja farto das pastilhitas de café e confesso-lhe que cá em casa não há máquinas daquelas que você vende. Mas temos um óptimo lote de café português e, embora a cafeteira pareça saída da II Guerra Mundial, acho que não se vai arrepender de prová-lo… – e assim o convenci a trocar as pastilhitas anódinas por um café à moda antiga.

Animado, lá se pôs a contar-me umas inconfidências sobre o casal Brangelina (“uns chatos, só fazem filhos”), e sobre mais uns quantos que nem sei bem quem são. Pouco depois da meia-noite, hora em que este Cinderelo começava a ficar sonolento e de voz pastosa, o motorista tocou à campainha, avisando o Sr. Clooney de que era tempo de regressar ao hotel.

Acompanhei-o à porta, agradeceu, beijou-me a mão com galanteria, e lá se foi, despedindo-se, ao entrar no carro, com o sorriso sedutor e o subtil levantar de sobrancelhas com que vende máquinas de café. A vizinha da casa em frente, que passa os dias à janela, e tinha, por grande felicidade, vindo trazer o Faísca a fazer chichi, ficou de boca aberta, parada ao lado do poste que ilumina a porta da minha casa e contra o qual o Faísca se aliviava.

– Que pedaaaaço de homem, valha-me Deus! – suspirou a vizinha, enquanto a limusina se afastava.

Menos mal. Se não fosse o Faísca ninguém acreditaria que alguma vez o George Clooney tinha ido jantar ao Bonjardim.

Comments

  1. george says:

    Isto é pura ficção. O cão não se chama Faísca.

  2. Óptimo conto, parabéns

  3. maria monteiro says:

    Foste uma verdadeira embaixatriz na arte de bem receber : )

  4. Ricardo Santos Pinto says:

    Excelente.

  5. Luis Moreira says:

    Tiveste sorte em o piano não te ter caído no prato da sopa!

  6. Humm, a minha mulher nem pode imaginar que o George andou assim tão perto, dasss!

Trackbacks

  1. […] com isto por acaso… e ocorreu-me que talvez fosse um bom pretexto para inicial uma nova rúbrica, […]

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