De como a gripe A não quis nada comigo, e do desassossego em que isto me deixa

Tenho passado o inverno na expectativa de que me chegue a gripe A. Não me vacinei, não tomei nenhuma medida preventiva especial, a não ser continuar a lavar as mãos quando chego da rua, se bem que isso é mais um resquício de uma fase vagamente obsessivo-compulsiva. Ora, tendo em conta que eu me constipo ou engripo 5 a 6 vezes por inverno, que, na verdade, é mais fácil assinalar os dias em que não estou constipada ou engripada, então seria certo que o insidioso H1N1 me apanharia a jeito.

E cá estou, desde ontem em casa com uma gripe, sim, mas uma gripe normalíssima (até há quem me diga que é só constipação, mas eu recuso essa hipótese), sem febre, sem dores de cabeça insuportáveis, sem prostração, sem nada que dignifique uma gripe. Bem espreito o termómetro a ver se o mostrador digital se altera, e nada. O mercúrio tinha, diga-se de passagem, um efeito muito mais dramático, vê-lo a subir era uma exaltação, uma vertigem na qual um hipocondríaco podia perder-se. Este de plástico, tão inócuo, tão infantil, retira gravidade até a uma febre de 40 graus.

E já bem avançado Fevereiro, nem vestígios de gripe A.  Se eu tivesse gripe A, passaria, num ápice, de lingrinhas a doente, o que faz uma substancial diferença no tratamento que se recebe. Em vez de me perguntarem, com indisfarçada impaciência, “já tomaste o paracetamol?”, andariam à minha volta, a aconchegar-me a mantinha e a trazer-me pratinhos de leite-creme com canela.

Existem, grosso modo, dois tipos de doentes: os que se retiram para o quarto, e aí fazem uma vida ascética, evitando chamar os seus cuidadores para não importuná-los, aguardando abnegadamente que estes possam aparecer, suportando os tormentos da doença sem um queixume; e aqueles que se instalam na sala de estar, e lançam a casa num alvoroço de pedidos e de queixas, tornando-se o epicentro de um terramoto que não deixará pedra sobre pedra. Eu não me conto entre os primeiros.

Acontece que já esgotei os policiais, e o livro que andava a ler com mais fervor, “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann, cujo enredo, como sabem, decorre numa estância de tratamento para tuberculosos, põe em relevo a insignificância da minha maleita, e por isso não me parece apropriado ao meu estado actual.

Também não posso falar ao telefone porque me custa ouvir os meus próprios grasnidos fanhosos e calculo que para as outras pessoas estes não sejam mais agradáveis. E quem quer saber detalhes sobre uma banal gripe anónima, se eu nem sei a designação do meu vírus? Ah, mas se eu lhes ligasse para contar-lhes que estava com a gripe A, teríamos matéria de conversa para uma tarde, garanto-vos.

E, assim, aqui me têm, simplesmente abafada, porque recusei abifar-me ou avinhar-me, e contentei-me com a vitamina C do suminho de laranja, a perguntar-me que haverá no H1N1 para, ao contrários dos seus primos, se manter longe de mim?

Porque isto das doenças menos sérias, é um pouco como a mulher de César, não basta estar doente, é preciso parecer verdadeiramente doente para que nos façam caso. Confessem, se eu não tivesse falado na gripe A, teriam lido este texto até ao fim?

Comments

  1. Luis Moreira says:

    Carla, põe uma cebola descascada em cada uma das divisões da casa que os invasores morrem todos antes de chegarem a ti. Mas não digas nada ao Adão. E tem pena de ti, chama todos os que se dizem teus amigos, mesmo que não tenhas febre treme ( eu quando tenho febre tremo como um choupo do choupal, do Mondego), nunca perder esse ar frágil que em ti é irresistivel ( em mim ninguem acredita, chamam-me maricas e assim…) e não desistas de todos os mimos a que tens direito!

  2. maria monteiro says:

    bem Carla se tivesses falado em gripe A já aqui me tinhas de borrifador em punho a desinfectar o monitor não fosse o vírus ser dos blogotransportados … melhoras e bebe chazinho de limão com mel

  3. carla romualdo says:

    Obrigada, vou exigir mimo e chá. Palpita-me que as cebolas não me trarão muitos amigos…

  4. carla romualdo says:

    melhor dito, vou levantar-me da cadeira e começar a ferver água

  5. Carlos Fonseca says:

    A história da pandemia da gripe A não está encerrada, provalmente ao contrário da própria pandemia. Só alguém da OMS pode explicar se houve boa ou má-fé na propagação do alarme. Lembro as manifestações adversas de combate a esse alarme – um conjunto de comissários europeus, encimado por um alemão (Wolfang qualquer coisa), por exemplo.
    Como há tempos me dizia um médico amigo e muito conhecido, a doença, e não a saúde, é um grande negócio. E do combate à gripe A, houve largos benefícios para as farmacêuticas, em especial para a Roche (Tamiflu) e para a GSK-Glaxo, Smith and Klein (Vacina). França adquiriu 90 M de vacinas, tendo utilizado apenas 6 M. O gasto foi de 700 M de euros. E nós? Não sei os números exactos.
    Não te alarmes, mantém a tranquilidade e vai lendo ‘A Montanha Mágica’. Abafa-te, bebe uns chás de limão… ah e uns bagacitos; olha apenas para a tua perna direita e quando começares a ver duas, estás curada!
    Os meus sinceros desejos de melhoras. E escreve, escreve sempre, porque tens imenso talento e não há gripe A que o destrua. Que o vírus emigre rapidamente!

  6. carla romualdo says:

    Obrigada, Carlos, mas vou tentar curar-me sem o bagaço!

  7. Nuno Castelo-Branco says:

    Estou-me a borrifar para a gripe da ministra. Não tomo vacina nenhuma, nem que a vaca tussa. Eles que encham os bolsos à conta dos papalvos.

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