Sud-Express, ir de Portugal para a "Europa"

A RDP anuncia que o Sud-Express faz hoje 100 anos. No entanto, outras fontes afirmam que o comboio começou a operar em 1884, ou seja há 126 anos.

Entre os dezoito e os vinte e tal anos conheci bem o Sud-Express: várias viagens para Paris, duas para Bordéus, uma ou duas para San Sebastian, bastantes para Salamanca, muitíssimas para Vilar Formoso. Estávamos no final dos anos setenta e no início dos oitenta. Para jovens como eu era, o Sud-Express tinha uma aura de aventura e liberdade, significava abandonar um Portugalzinho cinzento e em fim de festa, atravessar uma Espanha que fervilhava e se iniciava nas lides democráticas,  entrar na Europa, à qual os países Ibéricos “não pertenciam”.

Viajei nos dois sentidos, umas vezes de cá para lá, outras de lá para cá, raramente fiz viagens de ida-e-volta. Para mim, nesse tempo, o “verdadeiro” Sud-Express era o que ia de Lisboa até Hendaia, não apenas porque nos levava para fora mas, particularmente, porque nele viajavam muitos emigrantes portugueses que, ou partiam pela primeira vez, ou regressavam depois de umas vacances e um séjour em Portugal. As bagagens incluíam obrigatoriamente bacalhaus e presuntos, garrafões de vinho, chouriços, sardinhas de escabeche, broas de milho, gaitas de beiços, baralhos de cartas, uma ou outra concertina minhota, um cavaquinho gasto e mal afinado. As carruagens dividiam-se em compartimentos, oito pessoas por cubículo, mais tralhas, malas e trouxas, cada um, de relance, tentava escolher a companhia que lhe agradasse para dois dias de viagem e ala, au revoir, que me vou embora.

Por alturas de Vila Franca de Xira começavam a abrir-se merendas e farnéis, a desenrolhar garrafões, a surgir canivetes e copos de vidro grosso. A viagem a sério, no entanto, só tinha início na Pampilhosa, quando emigrantes do norte e do sul se encontravam e o comboio se contorcia pela linha da Beira Alta. Por essa altura já não havia papel higiénico, já as sanitas estavam entupidas, o chão cheio de água e lixo, alguns garrafões pouco mais que vazios. Uns jogavam às cartas, outros cantavam, muitos resfolegavam e queixavam-se das costas, havia quem circulasse de compartimento em compartimento, copo de vinho aqui – ah, esta pinga do norte…mas prove lá esta pomada da minha terra, ao pé de Évora…vai uma malguinha de Verde, das minhas uvas? – um naco de broa ali, e noite dentro, entre ressonanços, bebedeiras, cantares e histórias da terra de cada um, o Sud-Express tresandava de tabaco, de mijo, de vomitado e de chulé misturados com os odores das lareiras, fumeiros e florestas da Beira Alta.

Tudo isto continuava, as rodas metálicas ressoavam nos carris, o cansaço da viagem e das ressacas começava a acumular-se, mostravam-se os passaportes e as licenças militares na fronteira, a guarda fiscal portuguesa, depois a espanhola, faziam perguntas e algumas revistas, formalidades, aquilo durava imenso tempo até se prosseguir caminho. Entretanto mudava-se de país e de paisagem, os termos e merendas iam esgotando, a água das casas de banho secava, o piso dos corredores tornava-se pastoso e escorregadio, as olheiras aumentavam, a roupa colava-se à pele, até que, depois de uma monótona travessia de Espanha, tudo mudava em Hendaia. Era preciso reunir bagagens e entrar em França a pé, penetrar num novo comboio, abandonar as velhas carruagens portuguesas e os seus nostálgicos compartimentos em madeira.

Esperava-nos um train limpo, moderno e confortável, vagões amplos e sem compartimentos. Num repente todos pareciam ficar civilizados, desapareciam os petiscos, os copos toscos, lavava-se a cara e os dedos gordurosos, dava-se um jeito ao cabelo, calavam-se as concertinas, as harmónicas, as desgarradas. Dali para a frente, em cada estação, iam entrando franceses sisudos e apressados, com ar de quem vai trabalhar. De certa forma, a viagem do Sud-Express tinha acabado, faltava apenas cumprir os quilómetros que restavam.

Comments

  1. Carlos Loures says:

    A informação da RDP não pode estar certa. Em «A Ilustre Casa de Ramires», Eça de Queirós refere-se ao Sud-Express. O livro foi publicado no ano da morte do escritor (1900). A data de 1884 parece-me correcta. Texto muito interessante.

  2. Obrigado, Carlos.
    Hoje, pela manhã, ouvi a notícia na RDP 1 com alguma pompa e por isso me lembrei de fazer o post. Ao pesquisar confrontei-me com as duas datas.
    Também tenho ideia da referência do Eça e, até por ver referida a data de 1884 noutras fontes, inclino-me para esta última.

  3. Frederico Mendes Paula says:

    Fiz o meu primeiro Sud-Express sozinho em 1979 (versão inter-rail). O comboio ainda estava parado em Santa Apolónia e já tinha conhecido uma rapaziada extraordinária de vários quadrantes e origens étnicas, com quem passei uns bons momentos nesse mês Europa fora.

    • Ricardo Santos Pinto says:

      De Sud-Express nunca fui, mas cheguei a fazer um inter-rail até à Grécia. Muito cansativo, mas uma experiência única.

  4. rafael says:

    Que comboio, o meu avó foi emigrante em frança e contou-me histórias parecidas ao comentário da RDP.

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