o tsunami das perversões

o comércio de certos países asiáticos

Lembranças do farmacêutico da Parede

O nosso costume era parar na rua e falar vários minutos sobre os factos do dia. Curto, breve, ético, directo. Sem vergonha na opinião. Fugindo do julgamento da praça pública. Minutos curtos por não poder, o Senhor Farmacêutico, manter-se em pé muito tempo devido às suas pernas: passava dos 90, mas desde os 80, com memória em excelente estado, tinha opinião para tudo. Durante os últimos três anos, a ética do nosso País andou abalada, e as suas palavras não permitiam opiniões divergentes, atitude que me fazia, que me ensinava. Especialmente, acerca das perversões que iam acontecendo. Até ao dia de não podermos falar mais, nem eu me inspirar nas suas opiniões, essas ideias educativas. Retiradas da sua experiência de vida, de criar filhos, opinar com netos e ouvir bisnetos. Um processo educativo, como gosto de denominar. Um dia, o Farmacêutico não estava mais. E não foi possível comentar a tragédia que nesses dias de Dezembro de 2004, passei a viver: eu estava fora do País, ele tinha entrado na eternidade.

Porque falar do Tsunami do Sudeste Asiático, era uma segunda tragédia para ouvir, aprender e saber o que comentar depois. Uma tragédia passível de acontecer nos países como Shri-Lanka, Tailândia, Indonésia e partes da Índia. Tragédia acontecida nas festas de Natal. Festas que rendem imenso lucro a países sem meios industriais para amparar as vidas das populações. Vida de disputas, de guerra, de labuta, de pedintes e de fome para grande parte da população. O turismo é a salvação: praias quentes, mar aberto, sol brilhante, preços baixos, o que todo o turista procura para se divertir e descansar. E, no meio do paraíso, acontece a grande tragédia que rouba milhares de seres humanos, naturais e visitantes que se divertiam em lugares com fama de erotismo. Nem todos, claro, mas muitos, como comentam os que costumam ir e como dizem hoje em dia os noticiários. As perversões, como denominava Freud desde 1885, estavam espalhadas pelos países sumidos pelo Tsunami ou grande vaga, de apenas curtos minutos, que destruiu seres, artefactos, artesanato, meios de vida e a alegria de andar pelos sítios de sol, areia e excelente comida.

Perversões, conceito do qual se fala mas não se condena. Ou, se condena como o meu farmacêutico, eu e outros fazíamos e fazemos, com uma certa ignorância do que eram as actividades a fugir da ética média de toda a cultura ou comportamento.

No seu Drei abhandlungen zur zexualtheorie, Viena 1905, traduzido em 1910 nos EUA como Three contributions to the sexual theory e muito mais tarde às línguas latinas, pelos anos 80 do Século XX, como uma teoria da cultura e não do indivíduo. Este conceito de perversões, passa a ser uma terceira tragédia ao revelar a existência de erotismo na libido da criança, o seu desejo sexual, o que escandaliza seres humanos por pensarem que apenas existe desejo sexual entre os adultos. O próprio Freud abre o seu livro em 1905 ao comparar a satisfação da nutrição com a fome, como se define em biologia, e acrescenta uma metáfora ao comparar sexualidade ao instinto de fome. Necessidade a ser satisfeita como um objectivo definido pela cultura? Um outro corpo que se ama e se deseja, por si próprio, como forma de desviar o denominado acto sexual normal. Acto que varia de Século para Século, de Cultura para Cultura, de sentimentos e emoções conforme o entendimento do outro ser humano em frente de nós. Ou varia ainda, conforme a experiência de cada ser humano em relação ao seu erotismo, emotividade e desejo. Como foi definido por Havellock Ellis, Jean Charcot, Freud, Melanie Klein, Winifred Bion, Henry Lacan e, se me permitem, por mim próprio, no meu livro da Afrontamento, Porto, no ano 2000, bem como o próximo a ser editado na Climepsi, Lisboa, que refere a sexualidade infantil. A criança tem desejo sexual e sabe como o satisfazer ou com o corpo da mãe ao ser amamentado ou acarinhado pela mesma; e também com a masturbação sem orgasmo, ou com os ciúmes do parceiro do sexo oposto. Esse instinto de necessidades sexuais que a fisiologia inscreveu no nosso corpo desde a concepção até à morte, pode ser, como foi referido no texto anterior deste jornal, uma mercadoria. Especialmente em situações como as denominadas para os países referidos. Ou para os indivíduos que viajam para esses sítios e procuram o seu orgasmo da forma referida por Freud, como perversão: homossexualidade, pedofilia, masturbação, bestialidade; ou condições extrínsecas às quais se subordina a obtenção do orgasmo: feiticismo, transversão, voyerismo, exibicionismo, formas sadomasoquistas… Mais tarde, em 1930, no seu texto Malaise dans la civilisation (versão portuguesa, 2005, A civilização e os seus descontentamentos), o autor dos conceitos, redefine vários, para focar apenas dois na patologia sexual: a pedofilia ou subordinação não ritual, mas por dinheiro, do orgasmo de um adulto que retira o seu prazer do prazer não desenvolvido de um pré púbere. Como acrescenta Karol Wojtila em 1992, ao apagar actividades sexuais da lista dos pecados, deixando em aberto, como comportamento condenável, o adultério e a pedofilia.

Foi esta a temática que não pude falar com o boticário que tinha desaparecido: o Tsunami foi a 26 de Dezembro de 2004 e o meu regresso a Portugal, no dia da sua morte. Agonia que produz órfãos, os sem família, os sem bens. O Tsunami que se teme que venha a acontecer como paliativo à miséria da tragédia. Os mortos, choram-se e enterram-se. Os vivos cuidam-se e são apoiados por todos. A fome é o pior que acontece doravante. A pedofilia, uma defesa. Falta-me o farmacêutico para comentar…