O presente, essa grande mentira social. II – Reciprocidade Comercial

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Capítulo Segundo

Reciprocidade Comercial

 1. Nascimento da ideia de Reciprocidade.

O título até parece mercantilista. Mas não é por causa da teoria mercantilista que está colocado. A teoria mercantilista faz de tudo o que existe um comércio, de todo o bem que é fabricado, uma mercadoria a ser convertida em dinheiro, em investimento, em lucro para o proprietário dos meios

em lucro para o proprietário dos meios de produção.[1] Mercadoria é todo o bem que é trocado por moeda ou transferido a outro, por contrato ou pagamento. Ou, mercadoria é a capacidade que tem um indivíduo para fabricar bens dos quais vive, pelo que Marx denominou a força de trabalho das pessoas não possuidoras de meios técnicos ou propriedades, como mercadoria[2]. O conceito de mercadoria é revelador da impossível igualdade, como foi referido no Capítulo I. Mercadoria é entendida como o valor retirado do trabalho operário, quando Marx fala de valor de uso e valor de câmbio. Valor de uso tem todo o bem fabricado com o objectivo de ficar dentro de casa e ser partilhado pela família e consumido pelos fabricantes. É característico da alienação, ou valor de câmbio ou de troca, retirar não apenas o bem, que passa a pertencer ao proprietário dos meios de produção, da indústria, voir, da actividade do operário e do seu horário de trabalho e da sua propriedade, um bem transformado que, ainda que produzido pela pessoa, é propriedade não do artesão, mas do proprietário do capital investido para possibilitar o fabrico.

Foi o problema colocado perante o entendimento de Émile Durkheim e da sua equipa, especialmente de Marcel Mauss. A ideia é simples. A tese que eles encontram na sociedade em que moram e da qual fazem parte, é a de uma sociedade de trabalho alienado, baseada numa relação social presidida pelo capital, pelos investidores[3]. Durkheim acrescenta ao que Marx tinha definido, a ideia de que a troca ou câmbio desiguais de bens, são socialmente disjuntivas, ou, por outras palavras, desmembram a vida social e do grupo social, ao introduzir valores disjuntivos da interacção social, usados pelos grupos para a sua coesão e para a sua acção pragmática.[4] Por esta realidade, Durkheim escreve De la division du travail social[5] e defende a antítese de que há solidariedade orgânica ou de direito nas sociedades ocidentais que devem dar protecção ao operariado. Era o dilema de Durkheim: socialismo ou sociologia? Dilema retomado por Marcel Mauss, que procura uma síntese para as duas teses: capital versus produção não remunerada. Começa por procurar antecedentes numa ideia que nasce ao rever as etnografias de Franz Boas e Bronislaw Malinowski, por ele citadas em L’essai sur le don, já livro em 1956[6].

O objectivo de Mauss é simples: retirar da etnografia as actividades que existem nas sociedades denominadas arcaicas ou primitivas, nas que parece não haver troca de bens em dinheiro, quando se pergunta qual é a norma de direito que orienta as trocas e o intercâmbio em sociedades que aparentemente, não têm lei nem códigos. Que, como bem sabemos, são sociedades sem escrita, de costume ou costumeiras. Para entender esta noção de valor social disjuntivo, começa por comparar o Direito mais antigo da Europa, o Escandinavo, e acaba por explicar que entre grupos sociais como os Kwakiutl do Canadá e os Kiriwina da Melanésia, existe uma relação ritual de troca de bens e pessoas, que Mauss denomina facto social total, no qual existem três actividades que analisa: doar, aceitar e retribuir. Estes três actos rituais seriam entendidos, mais tarde, como o único conceito de reciprocidade, do qual Mauss teria falado.

Conceito usado por Malinowski com a palavra Massim de mana ou o espírito ou magia das coisas que explicam a troca, câmbio, intercâmbio e permuta, que, mais tarde, é reconvertida ao conceito de reciprocidade pelo comércio que Malinowski descobre na acção ritual da troca económica, o que provoca cem furiosas páginas no seu texto, em que sustenta que não há outra troca, câmbio, intercâmbio ou permuta, que não seja comercial. É a partir destas dúvidas que Mauss faz uma análise sobre o conceito de dádiva ou dom, ideia, norma ou conceito, usado na Antropologia para explicar toda a movimentação de pessoas e de bens, como se fora uma ideia romântica.

O meu desejo era ir directamente à etnografia. Mas, no início deste capítulo, falei de tese, antítese e síntese, conceitos que estimo devam ser explicados, para falarmos da reciprocidade comercial ou interacção dita recíproca nas relações sociais, presididas pelo comportamento denominado capital. Comportamento que produz escassez dentro das sociedades, pela alienação dos bens, que são retirados para alimentar a abundância de outros membros do grupo social. Essas relações que Émile Durkheim denominou de, como eu percebo, valores sociais disjuntivos da interacção social dos indivíduos em grupos. Porque, há os muito ricos, por reterem lucro da mais valia retirada da força de trabalho dos que nada têm e os muito pobres, que apenas têm a sua força de trabalho para vender ou alienar, denominados proletários: possuem só a prole, ou família consanguínea, para ganhar a vida económica.

Definido por Marx, este conceito é defendido por Durkheim e Mauss, na base da ideia dos operários não serem iguais às pessoas de posse, ainda que por cultura e lei devessem ser, o que faz destes contratos actos ilícitos e juridicamente inválidos. Faço especial referência ao debate de Durkheim, de 1908, “Débat sur l´ économie politique et les sciences sociales”[7], no qual defende os factos económicos como base da análise da sociedade: “l’économie politique occupe, dans l’ensemble des sciences sociologiques, une situation particulière. Elle est la seule des ces sciences qui soit actuellment constituée comme un ensemble systématisé, la seule que dispose d’un stock sufficient d’observations pour permettre la constructions de lois…C’est elle qui doit servir de foyer et en quelque sort de mère pour les autres sciences sociologiques… [por causa de]. D’autres lois économiques qui interviennent sont la loi d l’offre et la demande, la loi du capital[8]. Bem sabemos que Émile Durkheim criticou duramente a individualidade da oferta e da procura, e debateu contra Adam Smith, na base dos textos de Karl Marx, da sua própria pesquisa, e das ideias de Tönnies, no seu texto de 1893, De la division du travail social. Durkheim e Mauss experimentaram dinamizar a Sociologia, para procurar a igualdade das pessoas em grupo. O seu objectivo era organizar uma sociedade dentro do novo conceito de socialismo, que, como já sabemos, aparece no Século XIX, para poder lutar em prol dos direitos dos trabalhadores. No texto de Durkheim, de 1906, “Internationalisme et lutte de classes”[9] , “l’antipatriotisme est nécessaire a la lutte des classes…n’est que la conséquence particulière d’une idée plus générale, de l’idée que la société ne pourrait se reconstituer que par la destruction des nations actuelles : la société actuelle forme deus blocs, il faut que l’un détruise l’autre. C’est là une forme relativement récente du socialisme…D’abord, on a dit que c’était l’avènement de la grande industrie qui condamnait à une destruction nécessaire des sociétés actuelles. Mais pour cela il faudrait admettre que les sociétés modernes ne contenaient pas normalement dans leurs flancs cette forme économique, qui serait le produit d’une véritable maladie dus corps social. Dans ces cas, il serait légitime de soutenir que nos sociétés réalisent une contradiction, qu’elles ne sauraient par elles-mêmes se mettre en harmonie avec se système industriel qui est étranger a sa nature…l’ouvrier est exclusivement un producteur”[10]  Durkheim defende a ideia de igualdade, ideia na qual introduz o conceito de contradição que tinha aprendido de Marcel Mauss e em Leipzig, em 1888, ao ler o livro O Capital de Marx. É necessário dizer, no entanto, que no texto citado, Durkheim lembra que o operário não é apenas um trabalhador, mas também um intelectual que, contudo, é incapaz de sonhar com o futuro, porque o não tem. A ideia de igualdade procurada no conceito de solidariedade, especialmente orgânica, que defende no texto que acabo de comentar, – Lei, Direito, Contrato –, é uma ilusão de Durkheim, causada pelas incidências da guerra que tinha morto o seu filho e os seus discípulos, bem como pelos feitos da Commune de Paris e da guerra Franco-Prusiana, com a rendição de França e a matança dos Comunnards. Durkheim viveu todos estes factos e com muita tristeza, como refere Mauss no Année Sociologique de 1925: In Memoriam, reproduzido nas Oevreus Compléts de Mauss (Vol. III, página 434 e seguintes).

Em 1928, Mauss comenta que estes factos tinham feito de Durkheim um socialista que duvidava imenso das lutas, donde, a sua diferença com Marx, tal e qual Durkheim a exprime, é a análise da luta de classes. “Souffrant intensément des maux qui affligent la société actuelle, il la croit pour cette raison, mauvaise et, pour dire, manquée et il étend naturellement ce jugement à toutes les sociétés qui l’ont immédiatement précédée dans l´histoire, et qui peuvent en être considérées comme l’ébauche. Il souhaiterait les voir toutes radiées de l’histoire…Cette conception trouve précisément…un accueil favorable dans certes milieux révolutionnaires…”[11]. O comentador acrescenta que a ideia é contrária a Marx, por este pensar que o desenvolvimento é a forma superior da História das Sociedades. No entanto, Durkheim diz: “Voyez même l’œuvre la plus forte, la plus systématique, la plus riche en idées qu’ait produit l’Ecole [Socialiste] Le Capital de Marx…”[12] . Estas citações parecem-me necessárias para entendermos dois conceitos: o das ideias do método contraditório usado em Sociologia, e a procura da igualdade em sociedades primitivas e não em sociedades históricas, como Marx fez. A procura da dádiva é a procura de sociedades sem comércio, das quais se encontra… rien! Como vamos tentar apreciar. Até porque, se Marx não soube de Durkheim, o contrário não é o caso.

 

 

2.Dádiva,empréstimo,escassez,abundância. Bases da reciprocidade.

Cada palavra do título deste momento do texto é um conceito. Mas conceitos que estão “acasalados”, são um ou dois pares em oposição dialéctica, como vamos analisar. O pensamento dialéctico tem origem nos textos de Friedrich Hegel[13]. E o par que tenho escolhido tem a sua origem na seguinte citação de Hegel: “Todo pensamento lógico verdadeiro ou real tem três aspectos. Em primeiro lugar, o aspecto abstracto ou compreensível. Em segundo lugar, a sua negação dialéctica, que diz o que ele não é. Em, terceiro lugar, o aspecto especulativo que é a compreensão concreta: A é ao mesmo tempo aquilo que não é. Estes três aspectos não constituem os três aspectos da lógica; são, sim, momentos de tudo o que é realidade e verdadeiras lógicas. Fazem parte de qualquer aspecto filosófico. Qualquer conceito é racional, é uma abstracção que se opõe a outra, e é compreendida pela unidade pelo seu oposto. Esta é a definição da dialéctica” [14].

Marx retoma este conceito e aplica-o à sua análise da história, de forma materialista: vai de imediato à propriedade, às relações entre pessoas, propriedade e salários. “The political State cannot exist without the natural basis of the family and the artificial basis of civil society…human beings is a mass.”[15]  Esta crítica de Marx é retirada das obras citadas de Hegel e utilizadas para escrever o seu The Communist Manifesto. É a partir deste texto que Marx expande a sua metodologia materialista dialéctica, ao analisar a correlação propriedade privada/salário/colectivismo de bens e da produção, temida pela classe burguesa do seu tempo. Refere Henry de Saint-Simon, como economista e filósofo socialista francês e as suas teorias colectivas, e como as trocas, ou são privadas, com mais-valia para o proprietário, ou colectivas, com uma repartição igual de recursos entre produtores, todos eles proprietários dos meios de recursos e de bens, resultante desses recursos. Acrescenta que a aristocracia europeia está a tremer e vê com pavor a passagem de bens das mãos privadas, para mãos colectivas, que o Marques de Saint-Simon defende, desde o seu lugar social privilegiado. Saint-Simon fustiga a aristocracia por não se aperceber que a classe burguesa cobiça os seus bens, permitindo o seu levantamento, bem como o empobrecimento das classes operárias. Com base nesta análise, propõe formas económicas de acção em prol dos despojados, referindo, nos seus textos, os factos que permitem entender a necessidade de solidariedade, do colectivismo, bem como os seus contrários: a escassez e o aparecimento da necessidade do empréstimo. Somas crescentes de dinheiro são retiradas dos bancos pelas indústrias, pagas com juros que revertem a favor da burguesia. Estes factos dinamizam e originam um novo comportamento entre os despojados de propriedade: a reciprocidade ou ajuda mútua entre os pobres do operariado francês. Saint-Simon advoga o colectivismo e a solidariedade entre as denominadas massas de produtores empobrecidos, desnecessariamente, pela indústria e pela falta de cuidado do Estado, apesar de Louis XIV ter dito, anos antes,“L’Êtat c’est moi”. E a cabeça do seu neto rolou na guilhotina…

Saint-Simon defende as suas teorias em dois textos, memórias do período e contexto do que viria a ser a análise da dupla por mim referida: dádiva-empréstimo; escassez-abundância[16] É o que Émile Durkheim analisa no seu livro de 1928, publicado e prefaciado por Marcel Mauss[17]. É nesse texto que, quer Mauss, quer Durkheim, estabelecem uma luta para o entendimento do socialismo e da propriedade colectiva, que leva ao estudo da solidariedade em Durkheim e das formas arcaicas de produção em Mauss, por meio do método comparativo de culturas e conceitos: o quê e como, nas etnias, o quê e como, na Europa. Texto no qual Durkheim diz, como já fiz referencia, no número 1 deste Capítulo Segundo, logo de entrada: “Voyez même l’oeuvre la plus forte, la plus systématique, la plus riche en idées qu’ait produit L’Ecole ( [socialiste]): Le Capital de Marx.[18] Donde, dádiva – empréstimo, é a primeira dupla; o par contraditório é escassez -abundância. [19] Contraditório apenas pelo método que uso para os explicar, a lógica de tese, antítese e síntese, que Hegel e Marx e Feurebach definiram. Estes conceitos parecem não estar relacionados e, no entanto, há uma derivação que permite a introdução a um conceito a partir do outro. Isto, por um comentário que Marcel Mauss produz no seu texto de 1923-24[20], que trata de um conceito que passou a ser fundamental para a análise antropológica, o da dádiva a par e passo com o comércio. Análise produzida por Durkheim, Mauss e Malinowski, que passo a expor para entender os conceitos-pares, necessários para entender as relações sociais capitalistas desse tempo e de hoje, por meio do método comparativo, e que acaba nos textos de Pierre Bourdieu, referidos no fim destas páginas. Mauss começa por definir a circulação de bens entre grupos sociais, que parecem não ter mercado nem moeda. É o que o autor denomina dádiva e é referido nas formas de Contrato e de Direito, que analisa logo no começo do seu texto: “Na civilização escandinava e em bom número de outras, as trocas fazem-se sob a forma de presentes, em teoria voluntários, na realidade [21]obrigatoriamente dados e retribuídos”. E o debate a que o conceito dá lugar no seu tempo, é logo citado em notas de rodapé. Mas, no texto central, adverte o leitor de que esta pesquisa está dentro de um estudo mais amplo, que tem a ver com o direito contratual e com o sistema de trocas económicas. O estudo de Mauss é uma continuação do que o seu mestre Émile Durkheim tinha feito em 1893 e em 1912, sobre a solidariedade. Mauss refere que a temática da troca-dádiva “é muito complexa por envolver instituições religiosas, jurídicas e morais – e estas políticas e familiares ao mesmo tempo; económicas – e estas supõem formas particulares da produção e do consumo, ou antes, da prestação e da distribuição…”[22]. Por outras palavras, está, não apenas a definir conteúdos, bem como a delimitar a área de estudo que, por ser extremamente “larga” e entrosar muitas matérias, acaba por reduzi-la apenas ao que denomina o carácter “voluntário…, aparentemente livre e gratuito, e todavia forçado e interessado por essa prestações”[23]. É assim que vai, lentamente, entrando na definição do que é a dádiva ou o dom, como denomina este comportamento: “Elas revestiram quase sempre a forma do presente, da prenda oferecida generosamente mesmo quando, nesse gesto que acompanha a transacção, não há senão ficção, formalismo e mentira social, e quando há no fundo, obrigação e interesse económico”[24]. O objectivo do autor é o aprofundamento do conceito da divisão social do trabalho, como diz a seguir, porque procura a regra de direito na qual se pode basear a troca, a dádiva e a obrigação quer de dar, quer de receber, quer ainda, de restituir. E a sua pesquisa vai endereçada para as denominadas sociedades arcaicas ou primitivas. Por outras palavras, experimenta retirar das formas antigas da vida social, uma explicação do que é a preocupação da época: a existência ou não, de solidariedade social: “qual é a regra de direito e de interesse que, nas sociedades de tipo atrasado ou arcaico, faz com que o presente recebido seja obrigatoriamente retribuído? Que força existe na coisa que se dá que faz que o donatário a retribua? E vai analisando o comportamento de várias etnias, especialmente as analisadas por Boas e Malinowski, até concluir que estes tinham definido uma economia natural, sem moeda e sem mercado. Mas o que identifica como economia de troca – dádiva está longe de entrar nos quadros da economia denominada utilitária, que era a teoria económica da sua época, ou da época dentro da qual Durkheim, Mauss, e Malinowski antes de Mauss e Boas desenvolveram os seus trabalhos. Especificamente, Mauss chama a nossa atenção para o facto de Malinowski analisar de forma detalhada no texto de 1922, sobre os Argonautas, a existência de trocas que são ofertas, e ofertas ou dádivas que são comércio. De facto, Malinowski categoriza as trocas até atribuir a classificação de intercâmbio ou comércio a várias delas[25]. A ideia para a qual Mauss chama a nossa atenção é a da página 195, da versão castelhana: “Es fácil ver que casi todas las categorías de regalos que yo he clasificado según principios económicos, se basan también en relaciones sociológicas.”[26]. E é Maurice Godelier que chama a nossa atenção para o facto de Mauss ter entrado numa espécie de enigma, ao falar que existe a obrigação de doar, aceitar, e retribuir a mesma coisa doada, quando diz “…Avec les sociétés capitalistes modernes nous sommes ao pôle opposé des sociétés que Mauss analyse dans son Essai sur le don. On peut dire sens forcer que nos sociétés  sont marquées en profondeur par « une économie et une morale de marché et de profit » et qu’à l’opposé les sociétés qui figurent dans L’Essai sur le don  apparaissaient à Mauss comme profondément marquées par une « économie et une morale du don » . Cela ne veut pas dire que les sociétés caractérisées par le don ignoraient les échanges marchands, ni que les sociétés marchandes d’aujourd’hui ont cessé de pratiquer le don. Le problème est de voir dans chaque cas quel le principe domine l’autre dans la société et pourquoi”[27]. Como é habitual, Godelier está a analisar o pensamento de Mauss a partir da lógica contraditória do materialismo histórico. O mesmo que usa Mauss para analisar as sociedades denominadas primitivas ou arcaicas, que o próprio diz ser uma Arqueologia de ideias, esta procura de uma explicação das formas de mercado, antes de existir uma teoria ocidental da economia. E acaba por sintetizar toda a sua análise sob o título convincente de Sociologia Económica, na qual diz directamente: “a noção de valor funciona nestas sociedades; excedentes muito elevados, de uma maneira geral, são acumulados; frequentemente são gastos inutilmente, com um luxo enorme e que nada tem de mercantil; há marcas de riqueza, espécies de moedas, que são trocadas. Mas, toda esta economia, riquíssima, está ainda impregnada de elementos religiosos: a moeda ainda tem o seu poder mágico e ainda está ligada ao clã ou ao indivíduo….” [28].

Este argumento é o que tenho usado no meu texto referido de 2002 A economia deriva da religião. Aliás, não sou apenas eu a ter este tipo de hipótese. Se repararmos na análise de Marx, vamos encontrar na sua epistemologia ideias que derivam da reciprocidade. A primeira ideia a reter em Marx, é a de racionalidade. Tudo começa, quando Marx critica David Ricardo, na sua formulação da sua teoria do valor, na base do tempo necessário de um indivíduo para produzir um bem, por não especificar o que fazer, depois de esse bem ter sido fabricado[29]. O tempo é para o operário, ou para o empresário? Ricardo critica Adam Smith na sua ideia do valor – trabalho, e Marx critica Ricardo porque, ao experimentar defender os operários, Ricardo cria com o seu conceito de valor, uma desigualdade: o tempo que resta na fábrica é mais-valia ou lucro puro, apropriado pelo proprietário[30]. É a noção de valor de uso e valor de câmbio: todo o ser humano precisa de apenas poucas horas diárias de trabalho para satisfazer as suas necessidades básicas, como comer, agasalhar-se, etc. E que as horas a mais que um ser humano trabalha, constituem a mais-valia que lhe é retirada pelo proprietário da fábrica ou indústria ou artesanato onde trabalha. Aliás, o capital acumulado pelos proprietários acaba por ser uma relação social, que hierarquiza seres humanos entre os que podem mandar por terem posses e bens, e outros que têm apenas a sua capacidade de trabalhar que é vendida aos proprietários de bens produtivos, passando assim, a serem uma mercadoria. Conceito de mercadoria que define para pessoas e coisas que são trocadas no mercado.

O que procurava Marcel Mauss, bem como Malinowski, era o que não é utilitário nas transacções entre os seres humanos. E a descoberta de Malinowski, que muito fez para distinguir entre comércio e dádiva, era que toda a reciprocidade envolvia uma dádiva de troca, por outras palavras, de mercadoria. E mercadoria é definida como conceito por Marx, da seguinte forma: “The wealth of those societies in which the capitalist mode of production prevails itself as “an immense accumulation of commodities” its unit being a single commodity[31]. É preciso deixar ou definir de imediato o conceito de capital usado por Marx, que, no seu Foundations of the critique of Political Economy, ou Grundisse, texto escrito ao longo de 1864, achado em 1941 e publicado apenas em 1951, diz apenas, que “capitalism, economic system characterized by the private ownership of property and its means of production. Generally the capitalist, or private enterprise, system embodies the concept of individual initiative, competition, supply and demand, and the profit motive”[32]. Nenhuma destas características são encontradas na análise feita por Mauss ou por Malinowski, entre povos que experimentam remediar a escassez com a dádiva ou reciprocidade. A “abundância” dos grupos de trabalho acaba por ser a união que existe entre todos eles, que trabalham ao longo de laços de parentesco e de hierarquia. O próprio Godelier, no texto citado, diz: “Pour expliquer pourquoi on donne, Mauss avançait une hypothèse un peu moins “spirituelle”, et ce qui est explicite dans ses analyses du potlatch. C’est l’hypothèse que ce qui oblige à donner est précisément que donner oblige. Donner, c’est transférer volontairement quelque chose qui vous appartient á quelqu’un dont on pense qu’il ne peut pas l’accepter. Le donateur peut être un groupe, ou un individu, qui agit seul ou au nom d’un groupe. De même, le donataire peut être un individu, ou un groupe, ou une personne qui reçoit le don au nom du groupe qu’il représente…Donner semble instituer un double rapport entre celui qui donne et celui qui reçoit. Un rapport de solidarité, puisque celui qui donne partage ce qu’il a, voir c’est qu’il est, avec celui á qu’il donne, et un rapport de supériorité, puisque celui qui reçoit le don et l’accepte se met en dette vis-á-vis de celui qui lui a donné[33]. Em conjunto com a citação anterior, o tipo de sistema definidor da relação depende de se saber se a troca é de mercadoria ou de dádiva. Dentro da mesma sociedade, pode haver os dois tipos de troca. Já assim estava classificado por Malinowski e por Mauss, nos parágrafos citados.

Se a relação é entre uma pessoa que é proprietária dos meios de produção e outra que não tem mais do que a sua habilidade e capacidade de trabalho, a relação para quem entrega força de trabalho e recebe um salário é de inferioridade, não é de abundância, é de escassez. Se da outra parte há um indivíduo que é proprietário dos bens reprodutivos, a relação é de superioridade e de obtenção de lucro. O lucro é a mercadoria que se adquire pela capacidade de possuir propriedade dos meios de produção e fixar as normas e leis por meios das quais estes meios serão usados. O proprietário não oferece, não doa, arrenda ou possui a força de trabalho e a capacidade de produção dos que não têm outro bem que a sua força de trabalho e a da sua família. Entre os grupos denominados arcaicos, primitivos ou anteriores a nós, esses que Guideri denomina de forma enganada, “fora da História”[34] , a relação é de solidariedade ou dádiva enquanto não houver uma relação de interesse ou subordinação entre o doador e quem recebe. A relação pode ser de cima para baixo, hierárquica, mas se é a maneira de subsistir dessa hierarquia, como acontece com a circulação de bens entre os Quechua – os antigos Inca –, ou entre os Picunche, ou entre os Baruya como Godelier analisa em duas das suas obras, então a relação poderia ser de dádiva, como se pretende que Mauss tenha definido. A abundância e a escassez são auxiliadas entre grupos sociais que têm apenas a solidariedade orgânica para se defenderem, da forma que Émile Durkheim definia no seu texto invocado de 1893, dedicado às formas de divisão social do trabalho, em que Smith se baseara para entender a produção.

A relação de oferta e procura é uma relação mercantil ou de comércio que, às tantas, pode estar dentro das relações de dádiva, como o próprio Malinowski explica. Há relações empreendidas ou tratadas no Kula que passam a ser de comércio, quando se cria uma relação de subordinação, pela qual quem recebe deve trabalhar para quem oferece. O que resulta mais evidente quando as sociedades usam a moeda, o papel-moeda e o crédito, para as suas relações de interacção. A moeda acaba por ser uma mercadoria, da forma que Marx define nas obras citadas. Mercadoria que começa quando as relações sociais mudam da pessoa para as entidades que emitem mercadoria moeda. O trabalho é aí uma relação de uso para o operário, enquanto é de troca dentro do mercado que procura trabalho.

Era possível pensar que os grupos arcaicos ou primitivos estão a dar mais-valia aos grupos que colonizaram as suas terras. Mas, aí, é preciso distinguir entre a relação do grupo dominado com o dominador, e a relação dentro de cada um de esses grupos. Dádiva e exploração podem acontecer ao mesmo tempo, entre indivíduos não autónomos e proprietários autónomos. O que faz a autonomia de um ser humano é a posse ou desaparição do seu produto. O que caracteriza uma relação de escassez é a alienação do produto, esse conceito cunhado por Feurebach[35] em 1841 e que Marx e outros autores viriam a usar mais tarde, ao definirem a relação entre o produtor e a sua obra. A História mostra que o ser humano, em grupo ou individualmente, é capaz de produzir um bem, seja para consumo próprio ou para a troca, decidida conforme as formas do costume dentro do seu povo ou a sua cultura. A alienação do produto acontece de duas maneiras: o produtor não apenas fica sem a obra feita ou sem saber o seu destino, bem como a remuneração do trabalho é mais baixa do que o preço que a sua obra adquire, como bem, no mercado. Aliás, o produtor perde a habilidade de entender as relações de mercado, de oferta e procura, bem como a de organizar um sistema produtivo, do qual ele é apenas uma parte.

Diferente é o que acontece entre as relações de dádiva. A divisão do trabalho é organizada na base da hierarquia, da estrutura de clã, do parentesco e das trocas efectivadas entre grupos que recebem pessoas e bens e grupos que doam pessoas e bens. Para entender as formas de troca – dádiva ou mercadorias –, é preciso conhecer as linhas orientadoras do grupo. Não é em vão que Durkheim distingue entre solidariedade orgânica e mecânica. A primeira, ajusta-se ao direito normalmente definido nos grupos do capital, pela parte que domina, enquanto que a segunda, consiste apenas nas relações de parentesco e chefia, incrustadas nos mitos e ritos, que definem a dádiva, a escassez, a abundância e a reciprocidade para ultrapassar os momentos históricos de déficit alimentar, de produção e de reprodução. É o que Bourdieu[36] denomina o habitus, essas relações de dádiva, ou de salários, capital social, que começa na literacia.

 

 

3. Reciprocidade Comercial.

 

A análise da troca-dádiva, quando tentamos entender o conceito de reciprocidade na base das etnografias usadas pelo autor, não passa de uma desculpa para entender e dar a entender que não há reciprocidade gratuita na sua sociedade. Não é em vão que Mauss afirma que o Estado Francês não premeia nem recompensa, de forma igualitária, os trabalhadores. Nem é em vão que define toda uma Sociologia Económica, uma análise do real na base das relações de mercadoria. Essas que, conforme o próprio Durkheim diz[37], classificam e hierarquizam os seres humanos entre operários, iguais entre eles, e proprietários, hierarquicamente por cima do operariado. Um facto que é base da teoria de Merton[38] e Parsons[39], autores que continuam a Sociologia Económica de Marcel Mauss, Maurice Halbawchs, Paul Lapie e outros membros da equipa de Durkheim de L’Année Sociologique.

O problema de a reciprocidade ser um conceito que refere formas contratuais de circulação de bens equivalentes, fica para mim, esclarecido. Mas o assunto que queria tratar, é o de termos usado a reciprocidade como conceito que tudo encobre e nada explica. Temos utilizado o conceito como norma, como acção e como definidor de acções. Usamos reciprocidade cada vez que falamos de ajuda mútua ou troca de trabalho. Foi na minha própria pesquisa da Galiza nos anos 60,70 e 90 do Século XX, que referi o conceito como forma gratuita. Não tinha reparado que esta troca de ajuda familiar é uma forma de economia que substitui os investimentos de capital. Ou, por outro lado, que a força de trabalho investida, é o capital que usa o ser humano que não tem ou não possui a parte essencial do capital: moeda para investir e criar mais moeda, a fórmula usada por Marx nos seus textos de Surplus Value ou Mais-Valia, já referidos e que serão objecto de análise no capítulo seguinte. A mais-valia do pobre, como referi no meu texto de 1988[40], é a maximização dos seus recursos. A ideia não é minha, deriva da análise de Marx e os seus conceitos de valor de uso e valor do câmbio[41], donde a produção de valores de uso, é subordinada à produção de valores de câmbio. Esta ideia é fundamental para entender a movimentação da produção e para entender que a reciprocidade é um conceito económico da Sociologia, transferido para a Antropologia e usado para entender grupos sociais de outras culturas. Outras culturas, ou Outros como nós denominamos, que trabalham, produzem e reproduzem de forma diferente da nossa forma de fazer economia. Ou, pelo menos, isso é o que parece. Mas, esse tipo de análise leva a esquecer o que eu tinha já advertido na Galiza: a única forma de responder ao mercado do capital, é o uso de formas, ditas antigas, primitivas ou arcaicas, pelos autores usados neste e em outros textos. O capital é uma relação social que arrebita e mantém vivas, as maneiras mais “saloias” ou, como diriam os Galegos, mais “enxebres”, mais castizas, mais costumeiras, de trabalhar. É verdade o que diz Karl Polanyi[42]: “los dos últimos siglos han producido en Europa Occidental y Norte América, una organización del modo de vida humano a la que resultaron especialmente aplicables las reglas de optar. Esta forma de economía consistió en un sistema de mercados creadores de precios. Como los actos de intercambio, tal como se practican bajo un sistema de estas características, implican a los participantes en opciones inducidas por una insuficiencia de medios, el sistema productivo pudo ser reducido a un modelo que se prestó a la aplicación de métodos basados en el significado formal de lo económico[43]. Por outras palavras, a aplicação das formas teóricas da Economia Política, tal e qual Durkheim tinha já alertado, eram uma necessidade para entender a produção entre grupos sociais que, aparentemente, estavam a realizar actividades muito distantes da denominada teoria económica. Se é bem verdade que Durkheim constrói um argumento contra o Homo Economicus, montado por Adam Smith e John Stuart Mill, na verdade, é esse o saber que funciona, ainda que não se conheça nem o ponto do i. O Homo Economicus criou, na Antropologia, toda uma teoria alternativa que procurou a economia dentro das instituições ou teoria substantiva da economia, à qual aderiram muitos autores, entre os quais o próprio Malinowski que, sem dar por isso, criou a teoria formal, dentro da qual não tinha cabimento a análise do parentesco e da vizinhança. Este é o motivo que o levou a mudar para a Psicologia. Marcel Mauss soube reconhecer, embora não tenha sido explícito na sua formulação da Sociologia Económica, que a troca-dádiva era apenas defesa face à falta de meios para optar. Porque a teoria económica ocidental, tem por fundamento a ideia de todos saberem preços, valores das mercadorias, montante dos investimentos, quantidade de lucro a obter pela aplicação de uma importância que, normalmente, um assalariado não imagina. Do que se trata, normalmente, é de assegurar que ninguém saiba teoria económica, para evitar a concorrência que possa prejudicar um investidor que organiza a sua empresa para lucrar.

A teoria à qual Durkheim aderiu e que tinha sido elaborada por Karl Marx, era: “A chacun selon ses oeuvres” ou “A chacun selon son mérite[44]. A procura de igualdade estava na base do conceito de troca-dádiva, bem como no de solidariedade, especificamente na mecânica. Mas a História tem provado a falácia filosófica do conceito ou das frases. Porque a obra procurada, é a capacidade de optar entre bens mais baratos para investir e vender mais caro os produtos requeridos. Esta ideia de Adam Smith, Bentham, Mill e outros liberais, tem levado ao engano todos os teóricos da ideia substantiva da Economia. Não é em vão que Edmund Leach escreve em desafio aos estudantes do primeiro ano do curso de Antropologia de Cambridge, para descobrirem, se puderem, quem não é racionalista e é orientado pelas suas emoções no seu comportamento económico[45]. A ideia de optar, uma realidade no mundo dentro do qual vivemos, acaba por ser um factor real na vida social. E, ainda que Durkheim, no seu Le suicide. Etude sociologique[46] não consiga ver que o suicídio anômico tem por causa a falta de meios e ideias para optar, a opção ou falta dela, faz do indivíduo um pária do seu grupo social, ou um incompetente, ou “excluído”, o conceito de hoje.

Eu próprio, no meu regresso à Galiza em 1997, tive a infelicidade de constatar, não apenas a falta de colaboração ou entre – ajuda familiar, bem como a morte de seis adultos e dois jovens, os filhos de dois suicidas, que morreram por não saber o que fazer perante as mudanças que o Governo da União Europeia tinha introduzido no seu país: de valores de uso, passou-se rapidamente a organizar valores de troca[47].

Aliás, a maior parte dos economistas, dos sociólogos ou dos antropólogos, têm-se virado para a teoria formal da economia, especialmente por causa da teoria da globalização, na qual todos os Outros parecem andar envolvidos. O próprio Raymond Firth, que em 1929 fez uma tese de Antropologia Económica[48], baseada nas ideias de Karl Marx, muda de análise para os símbolos e para a teoria formal, nas obras a seguir. Marcel Mauss descobriu que a dádiva era comercial e organizou a Sociologia Económica. Durkheim, esse, ficou apenas lembrado pelas suas ideias de solidariedade.

 


[1] Marx, Karl, 1862 e 1863, Theories of surplus value, já citadas nota 101; Hales, John (1549) 1987: A discourse of the common weal of this realm of England, Universidade de Dijon. Website nota 33; More, Sir Thomas, (1516) 1985: De optimo reipublicae statu deque nova isula Utopia, Bâle, Antwerp, edição portuguesa de Guimarães Editora, Lisboa, e outros. Website com texto: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=+Thomas+More++Utopia&btnG=Pesquisar&meta=

[2] Marx tinha elaborado o conceito nos seus escritos filosóficos de 1848, especialmente em Alienated labour, conceito retirado da obra de Ludwig Feuerbach, A essência do cristianismo, (1841) 1994, Gulbenkian, Lisboa; e no Capital, Vol. I, 1862. Ver versão Inglesa de ambos os textos, Oxford University Press. Website para Feuerbach, nota 51; para Marx, com texto: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Karl+Marx+Alienated+Labour&btnG=Pesquisar&meta=

[3] Durkheim, Émile, 1925: Le socialisme, PUF, Paris, bem como no seu texto de 1893 – ver nota106 – e nos seus comentários à obra de Marx na Revue Philosophique de Dezembro de 1897, Paris, já citados no capítulo I deste texto, nota 26. Bem como Durkheim Émile, 1885 : “Propriété Sociale et démocratie” in Revue Philosophique, XIX, Paris : Website com texto: http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/ classiques/Durkheim_emile/durkheim.html –  1893 : “Sur la définition  du socialisme” in Revue Philosophique, XXXVI, Paris.Website com texto : www.uqac.uquebec.ca/…/classiques/Durkheim_emile/ sc_soc_et_action/texte_2_07/definition_socialisme.html ;  (1888) 1928: Le Socialisme, PUF, Paris. Website com texto nota 26 ; Mauss, Marcel, 1923-24: “L’essai sur le don. Formes et raison de l’echange dans les societées archaïques”, Année Sociologique, Nouvelle Série, Vol. I. Website com texto: http://www.uqac.uquebec.ca/…/classiques/mauss_marcel/ socio_et_anthropo/2_essai_sur_le_don/essai_sur_le_don.html

[4]Durkheim, Émile, textos citados na nota anterior.

[5] Durkheim, Émile, 1893 : De la division du travail social, Félix Alcan, Paris. Há versão portuguesa da Editora Presença, 1977. Website com texto: http://www.uqac.uquebec.ca/…/classiques/ Durkheim_emile/division_du_travail/division_travail.html

[6] Mauss, Marcel, 1956, L’essai sur le don, Payot, Paris. Há versão portuguesa de 1988 e 2002, Edições 70, Lisboa. Website, título completo e texto: nota 27, Capítulo 1 de este texto.

[7] Durkheim Émile, 1908: Bulletin de la société d’économie politique, Paris. Website com texto: http://www.uqac.uquebec.ca/…/classiques/ Durkheim_emile/textes_1/textes_1_10/ec_pol_socio.html

[8] Durkheim, Émile, texto citado, reproduzido em 1975: Textes, apresentados por Victor Karadi, Vol. I, páginas 218 e seguintes, Editions de Minuit, Paris. A ideia entre[   ], é minha, para enlaçar a frase e a ideia.

[9] Durkheim, Émile, 1906 a: Livre entretiennes, 2é séries, Ier Entretienne, Paris, Bureaux, Des livres entretiens. Website com textos : http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=%C3%89mile+Durkheim++Des+livres+entretiens+&spell=1

[10] Durkheim, Émile, texto citado, reproduzido em 1970: La science sociale et l’action, PUF, Paris, páginas 282 a 292. Website com texto: http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/ classiques/Durkheim_emile/durkheim.html

[11] Durkheim, Émile, (1895) 1975: Textes, Vol. I, páginas 73 e seguintes, reprodução do comentário da Revista Italiana La riforma sociale, 2, vol. 3. Website com textos, para pesquisa e debate: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=%C3%89mile+Durkheim+Textes+La+riforma+social&btnG=Pesquisar&meta=

[12] Durkheim, Émile, (1888) 1928: Le Socialisme, PUF, Paris, páginas 87 e seguintes. A obra começou a ser escrita esse ano, acabou por ser um curso sobre Socialismo de 1886-87 na Faculdade de Letra da Universidade de Bordeaux, e editada por Mauss na data indicada.Website nota 26, Capítulo 1.

[13] Hegel, Friedrich, (1821) 1964 : Princípios da Filosofia do Direito, Guimarães, Lisboa, e a obra póstuma de 1837, publicada em Portugal 1989: Enciclopédia das ciências filosóficas em epítome, Edições 70, Lisboa. Website para debate: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Friedrich+Hegel++Princ%C3%ADpios+da+Filosofia+do+Direito&btnG=Pesquisar&meta=

[14] Hegel, Enciclopédia das ciências filosóficas, já referida, páginas 82 e seguintes do primeiro volume da edição portuguesa. Website para debate: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Friedrich+Hegel++Enciclop%C3%A9dia+das+ci%C3%AAncias+filos%C3%B3ficas&btnG=Pesquisar&meta=

[15] Marx, Karl, (1843) 1977: Critique o Hegel’s Philosophy of Right”, Clarendon, Oxford, páginas 26 e seguintes. Website com texto: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=+Karl+Marx+Critique+o+Hegel%27s+Philosophy+of+Right&spell=1

[16] Saint-Simon, Henry de, (1808) 1981 : Sobre a ciência do homem ; e (1823) 1981: O catecismo dos industriais, Edições 70, 1981, Rio de Janeiro. Websites com texto: para o primeiro, http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Henry+de+Saint-Simon+Sobre+a+ci%C3%AAncia+do+homem+&btnG=Pesquisar&meta=; o segundo http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Henry+de+Saint-Simon++O+catecismo+dos+industriais&btnG=Pesquisar&meta=

[17] Durkheim, Émile, 1928: Le socialisme, PUF, Paris. Website nota 26 do Capítulo 1.

[18] Durkheim, obra citada, página 36 e 37 do original. A seguir, é tudo análise da Saint-Simon e defessa do socialismo, embora Mauss comente que Durkheim não estava tão calmo quanto a luta de classes (Página 28 do texto citado). Website nota 26, Capítulo 1.

[19] Marx, Karl, (1848) 1977: Communist Manifesto, Clarendon, páginas 22 e seguintes. Website nota 25, Capítulo 1.

[20] Mauss, Marcel, 1924.25: “Essai sur le don. Forme et raison de l’échange dans les sociétés archaïques” in L’Année Sociologique, Nouvelle Série, Félix Alcan, Vol. I, Paris. Há versão portuguesa de 1988 e 2002, Edições 70, Lisboa. Website com texto, nota 27, Capítulo 1

[21] Mauss, página 53 da obra referida, versão portuguesa de 1988. Website nota 27.

[22] Mauss, obra citada, página 53. Website nota anterior.

[23] Mauss, mesma obra, mesma página. Website referido nota anterior e seguinte.

[24] Mauss, mesma obra, mesma página.

[25] Malinowski, Bronislaw, 1922: The Argonauts of Western Pacific, Routledge and Kegan, Londres, versão castelhana de Península, 1973, Barcelona. Website nota 61, Capítulo 1.

[26] Malinowski, obra citada, página 195 e seguintes. Website nota anterior.

[27] Godelier, Maurice, 1996: L’énigme du don, Fayard, Paris, página 24 e seguintes. Website nota134, Capítulo 1.

[28] Mauss, obra citada, páginas 192 e seguintes da versão portuguesa de 1988. Ver nota 217 mais em frente.

[29] Ricardo, David, (1817) 1983:Princípios de economia política e de tributação, Gulbenkian, Lisboa. Website 227.

[30] Marx, Karl, (1862 e 1863) 1977: Theories of surplus value, Oxford University Press. Website nota 51.

[31] Marx, Karl, (1867) 1977: Capital, página 421 da versão inglesa de MacLellan, Oxford University Press, suporte de papel. Website para todos os volumes, com texto, nota 49, Capítulo 1.

[32] Retirado in passim dos textos de Marx Grundrisse e Capital. Websites nota 35 para o primeiro, como a nota anterior para o segundo.

[33] Godelier, obra citada, páginas 20 e seguintes. O argumento é em debate com Lèvi-Strauss. Website nota 134.

[34] Guideri, Remo, 1984: L’abondance de pauvres, Seuil, Paris, páginas 129 e seguintes. Website nota 64, Capítulo 1.

[35] Feuerbach, Ludwig, (1841) 1994: A essência do cristianismo, Gulbenkian. Website nota 51.

[36] Bourdieu, Pierre, 1970: La reproduction, Minuit, Paris. Website para debate e notas: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Pierre+Bourdieu+La+Reproduction&btnG=Pesquisar&meta=; e 1989 : La noblesse d´Etat, Minuit, Paris. Website:  http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Pierre+Bourdieu+La+Noblesse+d%27Etat&btnG=Pesquisar&meta=

[37] Durkheim, Émile, 1900: “La sociologia e il suo dominio scientifico”, in Rivista italiana di sociologia, 4, pgs. 127-148, reimpresso em Textes, “Genèse d’une théorie sociale”, Minuit, 1975, pgs. 11 à 37. Websites com vários textos: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=%C3%89mile+Durkheim+Gen%C3%A8se+d%E2%80%99une+th%C3%A9orie+sociale&btnG=Pesquisar&meta= Também no texto póstumo: L’éducation morale, 1925, Alcan, Paris. Website nota 43.

[38] Merton, Robert, 1957: Social theory and social structure, Free Press, Glencoe. Website com textos: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Robert+Merton+Social+theory+and+social+structure&btnG=Pesquisar&meta=

[39] Parsons, Talcott: 1952: The social system, Tavistock, Londres. Website com textos: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Talcott+Parsons+The+social+system&btnG=Pesquisar&meta=

[40] Iturra, Raúl, 1988: Antropologia Económica de la Galicia Rural, Xunta de Galiza, Compostela. Website nota 45.

[41] Iturra, Raúl, obra citada, páginas 62 e seguintes. Website nota 45.

[42] Polanyi, Karl, 1957: “The economy as an instituted process”, in Polanyi, Arensberg e Pearson (orgs) Trade and market in the early empires, the Free Pres, Nova Iorque:  http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Karl+Polanyi+The+economy+as+an+instituted+process&btnG=Pesquisar&meta= .; ou Ponlanyi, Karl, nota 60.1944: The Great transformation, the political and economic origins of our times, Beacon Press, EUA. Website

[43] Polanyi, Karl, 1957, a minha tradução.

[44] Marx, Karl, 1848: Communist Manifesto, já citado, -website com texto: nota 25-, e referido no Vol. I do Capital, -website com textos: nota 49-,também citado. Durkheim escolheu este texto para debater«Contribution à la discussion de «La notion d’égalité sociale» no Bulletin de la société française de philosophie, 1910, reimpresso em 1975, Textes, Vol. II, Minuit, Paris. Website com textos: http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/ classiques/Durkheim_emile/durkheim.html

[45] Leach, Sir Edmund, 1976: Culture and communication, C.U.P, Grã-bretanha. Há versão portuguesa, Edições 70, Lisboa. Website da versão inglesa: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Edmund+Leach+Culture+and+Communication&btnG=Pesquisar&meta=

[46] Durkheim, Émile, 1897: Le suicide, Félix Alcan, Paris. Há versão portuguesa, Editorial Presença, 1982. Website com texto: http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/ classiques/Durkheim_emile/suicide/suicide.html

[47] Iturra, Raúl, 1998: Como era quando não era o que sou. O crescimento das crianças, Profedições, Porto. Website com vários textos: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Ra%C3%BAl+Iturra.+Como+era+quando+n%C3%A3o+era+o+que+sou.+O+crescimento+das+crian%C3%A7as&btnG=Pesquisar&meta=

[48] Firth, Sir Raymond, 1928: The New Zealand Maori, George Routledge & Son, Londres. Website:   http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Raymond+Firth+The+New+Zealand+Maori&btnG=Pesquisar&meta=

em lucro para o proprietário dos meios de produção. Mercadoria é todo o bem que é trocado por moeda ou transferido a outro, por contrato ou pagamento. Ou, mercadoria é a capacidade que tem um indivíduo para fabricar bens dos quais vive, pelo que Marx denominou a força de trabalho das pessoas não possuidoras de meios técnicos ou propriedades, como mercadoria . O conceito de mercadoria é revelador da impossível igualdade, como foi referido no Capítulo I. Mercadoria é entendida como o valor retirado do trabalho operário, quando Marx fala de valor de uso e valor de câmbio. Valor de uso tem todo o bem fabricado com o objectivo de ficar dentro de casa e ser partilhado pela família e consumido pelos fabricantes. É característico da alienação, ou valor de câmbio ou de troca, retirar não apenas o bem, que passa a pertencer ao proprietário dos meios de produção, da indústria, voir, da actividade do operário e do seu horário de trabalho e da sua propriedade, um bem transformado que, ainda que produzido pela pessoa, é propriedade não do artesão, mas do proprietário do capital investido para possibilitar o fabrico.
Foi o problema colocado perante o entendimento de Émile Durkheim e da sua equipa, especialmente de Marcel Mauss. A ideia é simples. A tese que eles encontram na sociedade em que moram e da qual fazem parte, é a de uma sociedade de trabalho alienado, baseada numa relação social presidida pelo capital, pelos investidores . Durkheim acrescenta ao que Marx tinha definido, a ideia de que a troca ou câmbio desiguais de bens, são socialmente disjuntivas, ou, por outras palavras, desmembram a vida social e do grupo social, ao introduzir valores disjuntivos da interacção social, usados pelos grupos para a sua coesão e para a sua acção pragmática. Por esta realidade, Durkheim escreve De la division du travail social e defende a antítese de que há solidariedade orgânica ou de direito nas sociedades ocidentais que devem dar protecção ao operariado. Era o dilema de Durkheim: socialismo ou sociologia? Dilema retomado por Marcel Mauss, que procura uma síntese para as duas teses: capital versus produção não remunerada. Começa por procurar antecedentes numa ideia que nasce ao rever as etnografias de Franz Boas e Bronislaw Malinowski, por ele citadas em L’essai sur le don, já livro em 1956 .
O objectivo de Mauss é simples: retirar da etnografia as actividades que existem nas sociedades denominadas arcaicas ou primitivas, nas que parece não haver troca de bens em dinheiro, quando se pergunta qual é a norma de direito que orienta as trocas e o intercâmbio em sociedades que aparentemente, não têm lei nem códigos. Que, como bem sabemos, são sociedades sem escrita, de costume ou costumeiras. Para entender esta noção de valor social disjuntivo, começa por comparar o Direito mais antigo da Europa, o Escandinavo, e acaba por explicar que entre grupos sociais como os Kwakiutl do Canadá e os Kiriwina da Melanésia, existe uma relação ritual de troca de bens e pessoas, que Mauss denomina facto social total, no qual existem três actividades que analisa: doar, aceitar e retribuir. Estes três actos rituais seriam entendidos, mais tarde, como o único conceito de reciprocidade, do qual Mauss teria falado.
Conceito usado por Malinowski com a palavra Massim de mana ou o espírito ou magia das coisas que explicam a troca, câmbio, intercâmbio e permuta, que, mais tarde, é reconvertida ao conceito de reciprocidade pelo comércio que Malinowski descobre na acção ritual da troca económica, o que provoca cem furiosas páginas no seu texto, em que sustenta que não há outra troca, câmbio, intercâmbio ou permuta, que não seja comercial. É a partir destas dúvidas que Mauss faz uma análise sobre o conceito de dádiva ou dom, ideia, norma ou conceito, usado na Antropologia para explicar toda a movimentação de pessoas e de bens, como se fora uma ideia romântica.

O meu desejo era ir directamente à etnografia. Mas, no início deste capítulo, falei de tese, antítese e síntese, conceitos que estimo devam ser explicados, para falarmos da reciprocidade comercial ou interacção dita recíproca nas relações sociais, presididas pelo comportamento denominado capital. Comportamento que produz escassez dentro das sociedades, pela alienação dos bens, que são retirados para alimentar a abundância de outros membros do grupo social. Essas relações que Émile Durkheim denominou de, como eu percebo, valores sociais disjuntivos da interacção social dos indivíduos em grupos. Porque, há os muito ricos, por reterem lucro da mais valia retirada da força de trabalho dos que nada têm e os muito pobres, que apenas têm a sua força de trabalho para vender ou alienar, denominados proletários: possuem só a prole, ou família consanguínea, para ganhar a vida económica.
Definido por Marx, este conceito é defendido por Durkheim e Mauss, na base da ideia dos operários não serem iguais às pessoas de posse, ainda que por cultura e lei devessem ser, o que faz destes contratos actos ilícitos e juridicamente inválidos. Faço especial referência ao debate de Durkheim, de 1908, “Débat sur l´ économie politique et les sciences sociales” , no qual defende os factos económicos como base da análise da sociedade: “l’économie politique occupe, dans l’ensemble des sciences sociologiques, une situation particulière. Elle est la seule des ces sciences qui soit actuellment constituée comme un ensemble systématisé, la seule que dispose d’un stock sufficient d’observations pour permettre la constructions de lois…C’est elle qui doit servir de foyer et en quelque sort de mère pour les autres sciences sociologiques… [por causa de]. D’autres lois économiques qui interviennent sont la loi d l’offre et la demande, la loi du capital” . Bem sabemos que Émile Durkheim criticou duramente a individualidade da oferta e da procura, e debateu contra Adam Smith, na base dos textos de Karl Marx, da sua própria pesquisa, e das ideias de Tönnies, no seu texto de 1893, De la division du travail social. Durkheim e Mauss experimentaram dinamizar a Sociologia, para procurar a igualdade das pessoas em grupo. O seu objectivo era organizar uma sociedade dentro do novo conceito de socialismo, que, como já sabemos, aparece no Século XIX, para poder lutar em prol dos direitos dos trabalhadores. No texto de Durkheim, de 1906, “Internationalisme et lutte de classes” , “l’antipatriotisme est nécessaire a la lutte des classes…n’est que la conséquence particulière d’une idée plus générale, de l’idée que la société ne pourrait se reconstituer que par la destruction des nations actuelles : la société actuelle forme deus blocs, il faut que l’un détruise l’autre. C’est là une forme relativement récente du socialisme…D’abord, on a dit que c’était l’avènement de la grande industrie qui condamnait à une destruction nécessaire des sociétés actuelles. Mais pour cela il faudrait admettre que les sociétés modernes ne contenaient pas normalement dans leurs flancs cette forme économique, qui serait le produit d’une véritable maladie dus corps social. Dans ces cas, il serait légitime de soutenir que nos sociétés réalisent une contradiction, qu’elles ne sauraient par elles-mêmes se mettre en harmonie avec se système industriel qui est étranger a sa nature…l’ouvrier est exclusivement un producteur” Durkheim defende a ideia de igualdade, ideia na qual introduz o conceito de contradição que tinha aprendido de Marcel Mauss e em Leipzig, em 1888, ao ler o livro O Capital de Marx. É necessário dizer, no entanto, que no texto citado, Durkheim lembra que o operário não é apenas um trabalhador, mas também um intelectual que, contudo, é incapaz de sonhar com o futuro, porque o não tem. A ideia de igualdade procurada no conceito de solidariedade, especialmente orgânica, que defende no texto que acabo de comentar, – Lei, Direito, Contrato –, é uma ilusão de Durkheim, causada pelas incidências da guerra que tinha morto o seu filho e os seus discípulos, bem como pelos feitos da Commune de Paris e da guerra Franco-Prusiana, com a rendição de França e a matança dos Comunnards. Durkheim viveu todos estes factos e com muita tristeza, como refere Mauss no Année Sociologique de 1925: In Memoriam, reproduzido nas Oevreus Compléts de Mauss (Vol. III, página 434 e seguintes).
Em 1928, Mauss comenta que estes factos tinham feito de Durkheim um socialista que duvidava imenso das lutas, donde, a sua diferença com Marx, tal e qual Durkheim a exprime, é a análise da luta de classes. “Souffrant intensément des maux qui affligent la société actuelle, il la croit pour cette raison, mauvaise et, pour dire, manquée et il étend naturellement ce jugement à toutes les sociétés qui l’ont immédiatement précédée dans l´histoire, et qui peuvent en être considérées comme l’ébauche. Il souhaiterait les voir toutes radiées de l’histoire…Cette conception trouve précisément…un accueil favorable dans certes milieux révolutionnaires…” . O comentador acrescenta que a ideia é contrária a Marx, por este pensar que o desenvolvimento é a forma superior da História das Sociedades. No entanto, Durkheim diz: “Voyez même l’œuvre la plus forte, la plus systématique, la plus riche en idées qu’ait produit l’Ecole [Socialiste] Le Capital de Marx…” . Estas citações parecem-me necessárias para entendermos dois conceitos: o das ideias do método contraditório usado em Sociologia, e a procura da igualdade em sociedades primitivas e não em sociedades históricas, como Marx fez. A procura da dádiva é a procura de sociedades sem comércio, das quais se encontra… rien! Como vamos tentar apreciar. Até porque, se Marx não soube de Durkheim, o contrário não é o caso.

2.Dádiva,empréstimo,escassez,abundância. Bases da reciprocidade.

Cada palavra do título deste momento do texto é um conceito. Mas conceitos que estão “acasalados”, são um ou dois pares em oposição dialéctica, como vamos analisar. O pensamento dialéctico tem origem nos textos de Friedrich Hegel . E o par que tenho escolhido tem a sua origem na seguinte citação de Hegel: “Todo pensamento lógico verdadeiro ou real tem três aspectos. Em primeiro lugar, o aspecto abstracto ou compreensível. Em segundo lugar, a sua negação dialéctica, que diz o que ele não é. Em, terceiro lugar, o aspecto especulativo que é a compreensão concreta: A é ao mesmo tempo aquilo que não é. Estes três aspectos não constituem os três aspectos da lógica; são, sim, momentos de tudo o que é realidade e verdadeiras lógicas. Fazem parte de qualquer aspecto filosófico. Qualquer conceito é racional, é uma abstracção que se opõe a outra, e é compreendida pela unidade pelo seu oposto. Esta é a definição da dialéctica” .
Marx retoma este conceito e aplica-o à sua análise da história, de forma materialista: vai de imediato à propriedade, às relações entre pessoas, propriedade e salários. “The political State cannot exist without the natural basis of the family and the artificial basis of civil society…human beings is a mass.” Esta crítica de Marx é retirada das obras citadas de Hegel e utilizadas para escrever o seu The Communist Manifesto. É a partir deste texto que Marx expande a sua metodologia materialista dialéctica, ao analisar a correlação propriedade privada/salário/colectivismo de bens e da produção, temida pela classe burguesa do seu tempo. Refere Henry de Saint-Simon, como economista e filósofo socialista francês e as suas teorias colectivas, e como as trocas, ou são privadas, com mais-valia para o proprietário, ou colectivas, com uma repartição igual de recursos entre produtores, todos eles proprietários dos meios de recursos e de bens, resultante desses recursos. Acrescenta que a aristocracia europeia está a tremer e vê com pavor a passagem de bens das mãos privadas, para mãos colectivas, que o Marques de Saint-Simon defende, desde o seu lugar social privilegiado. Saint-Simon fustiga a aristocracia por não se aperceber que a classe burguesa cobiça os seus bens, permitindo o seu levantamento, bem como o empobrecimento das classes operárias. Com base nesta análise, propõe formas económicas de acção em prol dos despojados, referindo, nos seus textos, os factos que permitem entender a necessidade de solidariedade, do colectivismo, bem como os seus contrários: a escassez e o aparecimento da necessidade do empréstimo. Somas crescentes de dinheiro são retiradas dos bancos pelas indústrias, pagas com juros que revertem a favor da burguesia. Estes factos dinamizam e originam um novo comportamento entre os despojados de propriedade: a reciprocidade ou ajuda mútua entre os pobres do operariado francês. Saint-Simon advoga o colectivismo e a solidariedade entre as denominadas massas de produtores empobrecidos, desnecessariamente, pela indústria e pela falta de cuidado do Estado, apesar de Louis XIV ter dito, anos antes,“L’Êtat c’est moi”. E a cabeça do seu neto rolou na guilhotina…
Saint-Simon defende as suas teorias em dois textos, memórias do período e contexto do que viria a ser a análise da dupla por mim referida: dádiva-empréstimo; escassez-abundância É o que Émile Durkheim analisa no seu livro de 1928, publicado e prefaciado por Marcel Mauss . É nesse texto que, quer Mauss, quer Durkheim, estabelecem uma luta para o entendimento do socialismo e da propriedade colectiva, que leva ao estudo da solidariedade em Durkheim e das formas arcaicas de produção em Mauss, por meio do método comparativo de culturas e conceitos: o quê e como, nas etnias, o quê e como, na Europa. Texto no qual Durkheim diz, como já fiz referencia, no número 1 deste Capítulo Segundo, logo de entrada: “Voyez même l’oeuvre la plus forte, la plus systématique, la plus riche en idées qu’ait produit L’Ecole ( [socialiste]): Le Capital de Marx. Donde, dádiva – empréstimo, é a primeira dupla; o par contraditório é escassez -abundância. Contraditório apenas pelo método que uso para os explicar, a lógica de tese, antítese e síntese, que Hegel e Marx e Feurebach definiram. Estes conceitos parecem não estar relacionados e, no entanto, há uma derivação que permite a introdução a um conceito a partir do outro. Isto, por um comentário que Marcel Mauss produz no seu texto de 1923-24 , que trata de um conceito que passou a ser fundamental para a análise antropológica, o da dádiva a par e passo com o comércio. Análise produzida por Durkheim, Mauss e Malinowski, que passo a expor para entender os conceitos-pares, necessários para entender as relações sociais capitalistas desse tempo e de hoje, por meio do método comparativo, e que acaba nos textos de Pierre Bourdieu, referidos no fim destas páginas. Mauss começa por definir a circulação de bens entre grupos sociais, que parecem não ter mercado nem moeda. É o que o autor denomina dádiva e é referido nas formas de Contrato e de Direito, que analisa logo no começo do seu texto: “Na civilização escandinava e em bom número de outras, as trocas fazem-se sob a forma de presentes, em teoria voluntários, na realidade obrigatoriamente dados e retribuídos”. E o debate a que o conceito dá lugar no seu tempo, é logo citado em notas de rodapé. Mas, no texto central, adverte o leitor de que esta pesquisa está dentro de um estudo mais amplo, que tem a ver com o direito contratual e com o sistema de trocas económicas. O estudo de Mauss é uma continuação do que o seu mestre Émile Durkheim tinha feito em 1893 e em 1912, sobre a solidariedade. Mauss refere que a temática da troca-dádiva “é muito complexa por envolver instituições religiosas, jurídicas e morais – e estas políticas e familiares ao mesmo tempo; económicas – e estas supõem formas particulares da produção e do consumo, ou antes, da prestação e da distribuição…” . Por outras palavras, está, não apenas a definir conteúdos, bem como a delimitar a área de estudo que, por ser extremamente “larga” e entrosar muitas matérias, acaba por reduzi-la apenas ao que denomina o carácter “voluntário…, aparentemente livre e gratuito, e todavia forçado e interessado por essa prestações” . É assim que vai, lentamente, entrando na definição do que é a dádiva ou o dom, como denomina este comportamento: “Elas revestiram quase sempre a forma do presente, da prenda oferecida generosamente mesmo quando, nesse gesto que acompanha a transacção, não há senão ficção, formalismo e mentira social, e quando há no fundo, obrigação e interesse económico” . O objectivo do autor é o aprofundamento do conceito da divisão social do trabalho, como diz a seguir, porque procura a regra de direito na qual se pode basear a troca, a dádiva e a obrigação quer de dar, quer de receber, quer ainda, de restituir. E a sua pesquisa vai endereçada para as denominadas sociedades arcaicas ou primitivas. Por outras palavras, experimenta retirar das formas antigas da vida social, uma explicação do que é a preocupação da época: a existência ou não, de solidariedade social: “qual é a regra de direito e de interesse que, nas sociedades de tipo atrasado ou arcaico, faz com que o presente recebido seja obrigatoriamente retribuído? Que força existe na coisa que se dá que faz que o donatário a retribua? E vai analisando o comportamento de várias etnias, especialmente as analisadas por Boas e Malinowski, até concluir que estes tinham definido uma economia natural, sem moeda e sem mercado. Mas o que identifica como economia de troca – dádiva está longe de entrar nos quadros da economia denominada utilitária, que era a teoria económica da sua época, ou da época dentro da qual Durkheim, Mauss, e Malinowski antes de Mauss e Boas desenvolveram os seus trabalhos. Especificamente, Mauss chama a nossa atenção para o facto de Malinowski analisar de forma detalhada no texto de 1922, sobre os Argonautas, a existência de trocas que são ofertas, e ofertas ou dádivas que são comércio. De facto, Malinowski categoriza as trocas até atribuir a classificação de intercâmbio ou comércio a várias delas . A ideia para a qual Mauss chama a nossa atenção é a da página 195, da versão castelhana: “Es fácil ver que casi todas las categorías de regalos que yo he clasificado según principios económicos, se basan también en relaciones sociológicas.” . E é Maurice Godelier que chama a nossa atenção para o facto de Mauss ter entrado numa espécie de enigma, ao falar que existe a obrigação de doar, aceitar, e retribuir a mesma coisa doada, quando diz “…Avec les sociétés capitalistes modernes nous sommes ao pôle opposé des sociétés que Mauss analyse dans son Essai sur le don. On peut dire sens forcer que nos sociétés sont marquées en profondeur par « une économie et une morale de marché et de profit » et qu’à l’opposé les sociétés qui figurent dans L’Essai sur le don apparaissaient à Mauss comme profondément marquées par une « économie et une morale du don » . Cela ne veut pas dire que les sociétés caractérisées par le don ignoraient les échanges marchands, ni que les sociétés marchandes d’aujourd’hui ont cessé de pratiquer le don. Le problème est de voir dans chaque cas quel le principe domine l’autre dans la société et pourquoi” . Como é habitual, Godelier está a analisar o pensamento de Mauss a partir da lógica contraditória do materialismo histórico. O mesmo que usa Mauss para analisar as sociedades denominadas primitivas ou arcaicas, que o próprio diz ser uma Arqueologia de ideias, esta procura de uma explicação das formas de mercado, antes de existir uma teoria ocidental da economia. E acaba por sintetizar toda a sua análise sob o título convincente de Sociologia Económica, na qual diz directamente: “a noção de valor funciona nestas sociedades; excedentes muito elevados, de uma maneira geral, são acumulados; frequentemente são gastos inutilmente, com um luxo enorme e que nada tem de mercantil; há marcas de riqueza, espécies de moedas, que são trocadas. Mas, toda esta economia, riquíssima, está ainda impregnada de elementos religiosos: a moeda ainda tem o seu poder mágico e ainda está ligada ao clã ou ao indivíduo….” .

Este argumento é o que tenho usado no meu texto referido de 2002 A economia deriva da religião. Aliás, não sou apenas eu a ter este tipo de hipótese. Se repararmos na análise de Marx, vamos encontrar na sua epistemologia ideias que derivam da reciprocidade. A primeira ideia a reter em Marx, é a de racionalidade. Tudo começa, quando Marx critica David Ricardo, na sua formulação da sua teoria do valor, na base do tempo necessário de um indivíduo para produzir um bem, por não especificar o que fazer, depois de esse bem ter sido fabricado . O tempo é para o operário, ou para o empresário? Ricardo critica Adam Smith na sua ideia do valor – trabalho, e Marx critica Ricardo porque, ao experimentar defender os operários, Ricardo cria com o seu conceito de valor, uma desigualdade: o tempo que resta na fábrica é mais-valia ou lucro puro, apropriado pelo proprietário . É a noção de valor de uso e valor de câmbio: todo o ser humano precisa de apenas poucas horas diárias de trabalho para satisfazer as suas necessidades básicas, como comer, agasalhar-se, etc. E que as horas a mais que um ser humano trabalha, constituem a mais-valia que lhe é retirada pelo proprietário da fábrica ou indústria ou artesanato onde trabalha. Aliás, o capital acumulado pelos proprietários acaba por ser uma relação social, que hierarquiza seres humanos entre os que podem mandar por terem posses e bens, e outros que têm apenas a sua capacidade de trabalhar que é vendida aos proprietários de bens produtivos, passando assim, a serem uma mercadoria. Conceito de mercadoria que define para pessoas e coisas que são trocadas no mercado.
O que procurava Marcel Mauss, bem como Malinowski, era o que não é utilitário nas transacções entre os seres humanos. E a descoberta de Malinowski, que muito fez para distinguir entre comércio e dádiva, era que toda a reciprocidade envolvia uma dádiva de troca, por outras palavras, de mercadoria. E mercadoria é definida como conceito por Marx, da seguinte forma: “The wealth of those societies in which the capitalist mode of production prevails itself as “an immense accumulation of commodities” its unit being a single commodity” . É preciso deixar ou definir de imediato o conceito de capital usado por Marx, que, no seu Foundations of the critique of Political Economy, ou Grundisse, texto escrito ao longo de 1864, achado em 1941 e publicado apenas em 1951, diz apenas, que “capitalism, economic system characterized by the private ownership of property and its means of production. Generally the capitalist, or private enterprise, system embodies the concept of individual initiative, competition, supply and demand, and the profit motive” . Nenhuma destas características são encontradas na análise feita por Mauss ou por Malinowski, entre povos que experimentam remediar a escassez com a dádiva ou reciprocidade. A “abundância” dos grupos de trabalho acaba por ser a união que existe entre todos eles, que trabalham ao longo de laços de parentesco e de hierarquia. O próprio Godelier, no texto citado, diz: “Pour expliquer pourquoi on donne, Mauss avançait une hypothèse un peu moins “spirituelle”, et ce qui est explicite dans ses analyses du potlatch. C’est l’hypothèse que ce qui oblige à donner est précisément que donner oblige. Donner, c’est transférer volontairement quelque chose qui vous appartient á quelqu’un dont on pense qu’il ne peut pas l’accepter. Le donateur peut être un groupe, ou un individu, qui agit seul ou au nom d’un groupe. De même, le donataire peut être un individu, ou un groupe, ou une personne qui reçoit le don au nom du groupe qu’il représente…Donner semble instituer un double rapport entre celui qui donne et celui qui reçoit. Un rapport de solidarité, puisque celui qui donne partage ce qu’il a, voir c’est qu’il est, avec celui á qu’il donne, et un rapport de supériorité, puisque celui qui reçoit le don et l’accepte se met en dette vis-á-vis de celui qui lui a donné” . Em conjunto com a citação anterior, o tipo de sistema definidor da relação depende de se saber se a troca é de mercadoria ou de dádiva. Dentro da mesma sociedade, pode haver os dois tipos de troca. Já assim estava classificado por Malinowski e por Mauss, nos parágrafos citados.

Se a relação é entre uma pessoa que é proprietária dos meios de produção e outra que não tem mais do que a sua habilidade e capacidade de trabalho, a relação para quem entrega força de trabalho e recebe um salário é de inferioridade, não é de abundância, é de escassez. Se da outra parte há um indivíduo que é proprietário dos bens reprodutivos, a relação é de superioridade e de obtenção de lucro. O lucro é a mercadoria que se adquire pela capacidade de possuir propriedade dos meios de produção e fixar as normas e leis por meios das quais estes meios serão usados. O proprietário não oferece, não doa, arrenda ou possui a força de trabalho e a capacidade de produção dos que não têm outro bem que a sua força de trabalho e a da sua família. Entre os grupos denominados arcaicos, primitivos ou anteriores a nós, esses que Guideri denomina de forma enganada, “fora da História” , a relação é de solidariedade ou dádiva enquanto não houver uma relação de interesse ou subordinação entre o doador e quem recebe. A relação pode ser de cima para baixo, hierárquica, mas se é a maneira de subsistir dessa hierarquia, como acontece com a circulação de bens entre os Quechua – os antigos Inca –, ou entre os Picunche, ou entre os Baruya como Godelier analisa em duas das suas obras, então a relação poderia ser de dádiva, como se pretende que Mauss tenha definido. A abundância e a escassez são auxiliadas entre grupos sociais que têm apenas a solidariedade orgânica para se defenderem, da forma que Émile Durkheim definia no seu texto invocado de 1893, dedicado às formas de divisão social do trabalho, em que Smith se baseara para entender a produção.
A relação de oferta e procura é uma relação mercantil ou de comércio que, às tantas, pode estar dentro das relações de dádiva, como o próprio Malinowski explica. Há relações empreendidas ou tratadas no Kula que passam a ser de comércio, quando se cria uma relação de subordinação, pela qual quem recebe deve trabalhar para quem oferece. O que resulta mais evidente quando as sociedades usam a moeda, o papel-moeda e o crédito, para as suas relações de interacção. A moeda acaba por ser uma mercadoria, da forma que Marx define nas obras citadas. Mercadoria que começa quando as relações sociais mudam da pessoa para as entidades que emitem mercadoria moeda. O trabalho é aí uma relação de uso para o operário, enquanto é de troca dentro do mercado que procura trabalho.
Era possível pensar que os grupos arcaicos ou primitivos estão a dar mais-valia aos grupos que colonizaram as suas terras. Mas, aí, é preciso distinguir entre a relação do grupo dominado com o dominador, e a relação dentro de cada um de esses grupos. Dádiva e exploração podem acontecer ao mesmo tempo, entre indivíduos não autónomos e proprietários autónomos. O que faz a autonomia de um ser humano é a posse ou desaparição do seu produto. O que caracteriza uma relação de escassez é a alienação do produto, esse conceito cunhado por Feurebach em 1841 e que Marx e outros autores viriam a usar mais tarde, ao definirem a relação entre o produtor e a sua obra. A História mostra que o ser humano, em grupo ou individualmente, é capaz de produzir um bem, seja para consumo próprio ou para a troca, decidida conforme as formas do costume dentro do seu povo ou a sua cultura. A alienação do produto acontece de duas maneiras: o produtor não apenas fica sem a obra feita ou sem saber o seu destino, bem como a remuneração do trabalho é mais baixa do que o preço que a sua obra adquire, como bem, no mercado. Aliás, o produtor perde a habilidade de entender as relações de mercado, de oferta e procura, bem como a de organizar um sistema produtivo, do qual ele é apenas uma parte.
Diferente é o que acontece entre as relações de dádiva. A divisão do trabalho é organizada na base da hierarquia, da estrutura de clã, do parentesco e das trocas efectivadas entre grupos que recebem pessoas e bens e grupos que doam pessoas e bens. Para entender as formas de troca – dádiva ou mercadorias –, é preciso conhecer as linhas orientadoras do grupo. Não é em vão que Durkheim distingue entre solidariedade orgânica e mecânica. A primeira, ajusta-se ao direito normalmente definido nos grupos do capital, pela parte que domina, enquanto que a segunda, consiste apenas nas relações de parentesco e chefia, incrustadas nos mitos e ritos, que definem a dádiva, a escassez, a abundância e a reciprocidade para ultrapassar os momentos históricos de déficit alimentar, de produção e de reprodução. É o que Bourdieu denomina o habitus, essas relações de dádiva, ou de salários, capital social, que começa na literacia.

3. Reciprocidade Comercial.

A análise da troca-dádiva, quando tentamos entender o conceito de reciprocidade na base das etnografias usadas pelo autor, não passa de uma desculpa para entender e dar a entender que não há reciprocidade gratuita na sua sociedade. Não é em vão que Mauss afirma que o Estado Francês não premeia nem recompensa, de forma igualitária, os trabalhadores. Nem é em vão que define toda uma Sociologia Económica, uma análise do real na base das relações de mercadoria. Essas que, conforme o próprio Durkheim diz , classificam e hierarquizam os seres humanos entre operários, iguais entre eles, e proprietários, hierarquicamente por cima do operariado. Um facto que é base da teoria de Merton e Parsons , autores que continuam a Sociologia Económica de Marcel Mauss, Maurice Halbawchs, Paul Lapie e outros membros da equipa de Durkheim de L’Année Sociologique.
O problema de a reciprocidade ser um conceito que refere formas contratuais de circulação de bens equivalentes, fica para mim, esclarecido. Mas o assunto que queria tratar, é o de termos usado a reciprocidade como conceito que tudo encobre e nada explica. Temos utilizado o conceito como norma, como acção e como definidor de acções. Usamos reciprocidade cada vez que falamos de ajuda mútua ou troca de trabalho. Foi na minha própria pesquisa da Galiza nos anos 60,70 e 90 do Século XX, que referi o conceito como forma gratuita. Não tinha reparado que esta troca de ajuda familiar é uma forma de economia que substitui os investimentos de capital. Ou, por outro lado, que a força de trabalho investida, é o capital que usa o ser humano que não tem ou não possui a parte essencial do capital: moeda para investir e criar mais moeda, a fórmula usada por Marx nos seus textos de Surplus Value ou Mais-Valia, já referidos e que serão objecto de análise no capítulo seguinte. A mais-valia do pobre, como referi no meu texto de 1988 , é a maximização dos seus recursos. A ideia não é minha, deriva da análise de Marx e os seus conceitos de valor de uso e valor do câmbio , donde a produção de valores de uso, é subordinada à produção de valores de câmbio. Esta ideia é fundamental para entender a movimentação da produção e para entender que a reciprocidade é um conceito económico da Sociologia, transferido para a Antropologia e usado para entender grupos sociais de outras culturas. Outras culturas, ou Outros como nós denominamos, que trabalham, produzem e reproduzem de forma diferente da nossa forma de fazer economia. Ou, pelo menos, isso é o que parece. Mas, esse tipo de análise leva a esquecer o que eu tinha já advertido na Galiza: a única forma de responder ao mercado do capital, é o uso de formas, ditas antigas, primitivas ou arcaicas, pelos autores usados neste e em outros textos. O capital é uma relação social que arrebita e mantém vivas, as maneiras mais “saloias” ou, como diriam os Galegos, mais “enxebres”, mais castizas, mais costumeiras, de trabalhar. É verdade o que diz Karl Polanyi : “los dos últimos siglos han producido en Europa Occidental y Norte América, una organización del modo de vida humano a la que resultaron especialmente aplicables las reglas de optar. Esta forma de economía consistió en un sistema de mercados creadores de precios. Como los actos de intercambio, tal como se practican bajo un sistema de estas características, implican a los participantes en opciones inducidas por una insuficiencia de medios, el sistema productivo pudo ser reducido a un modelo que se prestó a la aplicación de métodos basados en el significado formal de lo económico” . Por outras palavras, a aplicação das formas teóricas da Economia Política, tal e qual Durkheim tinha já alertado, eram uma necessidade para entender a produção entre grupos sociais que, aparentemente, estavam a realizar actividades muito distantes da denominada teoria económica. Se é bem verdade que Durkheim constrói um argumento contra o Homo Economicus, montado por Adam Smith e John Stuart Mill, na verdade, é esse o saber que funciona, ainda que não se conheça nem o ponto do i. O Homo Economicus criou, na Antropologia, toda uma teoria alternativa que procurou a economia dentro das instituições ou teoria substantiva da economia, à qual aderiram muitos autores, entre os quais o próprio Malinowski que, sem dar por isso, criou a teoria formal, dentro da qual não tinha cabimento a análise do parentesco e da vizinhança. Este é o motivo que o levou a mudar para a Psicologia. Marcel Mauss soube reconhecer, embora não tenha sido explícito na sua formulação da Sociologia Económica, que a troca-dádiva era apenas defesa face à falta de meios para optar. Porque a teoria económica ocidental, tem por fundamento a ideia de todos saberem preços, valores das mercadorias, montante dos investimentos, quantidade de lucro a obter pela aplicação de uma importância que, normalmente, um assalariado não imagina. Do que se trata, normalmente, é de assegurar que ninguém saiba teoria económica, para evitar a concorrência que possa prejudicar um investidor que organiza a sua empresa para lucrar.
A teoria à qual Durkheim aderiu e que tinha sido elaborada por Karl Marx, era: “A chacun selon ses oeuvres” ou “A chacun selon son mérite” . A procura de igualdade estava na base do conceito de troca-dádiva, bem como no de solidariedade, especificamente na mecânica. Mas a História tem provado a falácia filosófica do conceito ou das frases. Porque a obra procurada, é a capacidade de optar entre bens mais baratos para investir e vender mais caro os produtos requeridos. Esta ideia de Adam Smith, Bentham, Mill e outros liberais, tem levado ao engano todos os teóricos da ideia substantiva da Economia. Não é em vão que Edmund Leach escreve em desafio aos estudantes do primeiro ano do curso de Antropologia de Cambridge, para descobrirem, se puderem, quem não é racionalista e é orientado pelas suas emoções no seu comportamento económico . A ideia de optar, uma realidade no mundo dentro do qual vivemos, acaba por ser um factor real na vida social. E, ainda que Durkheim, no seu Le suicide. Etude sociologique não consiga ver que o suicídio anômico tem por causa a falta de meios e ideias para optar, a opção ou falta dela, faz do indivíduo um pária do seu grupo social, ou um incompetente, ou “excluído”, o conceito de hoje.
Eu próprio, no meu regresso à Galiza em 1997, tive a infelicidade de constatar, não apenas a falta de colaboração ou entre – ajuda familiar, bem como a morte de seis adultos e dois jovens, os filhos de dois suicidas, que morreram por não saber o que fazer perante as mudanças que o Governo da União Europeia tinha introduzido no seu país: de valores de uso, passou-se rapidamente a organizar valores de troca .
Aliás, a maior parte dos economistas, dos sociólogos ou dos antropólogos, têm-se virado para a teoria formal da economia, especialmente por causa da teoria da globalização, na qual todos os Outros parecem andar envolvidos. O próprio Raymond Firth, que em 1929 fez uma tese de Antropologia Económica , baseada nas ideias de Karl Marx, muda de análise para os símbolos e para a teoria formal, nas obras a seguir. Marcel Mauss descobriu que a dádiva era comercial e organizou a Sociologia Económica. Durkheim, esse, ficou apenas lembrado pelas suas ideias de solidariedade.

em lucro para o proprietário dos meios de produção. Mercadoria é todo o bem que é trocado por moeda ou transferido a outro, por contrato ou pagamento. Ou, mercadoria é a capacidade que tem um indivíduo para fabricar bens dos quais vive, pelo que Marx denominou a força de trabalho das pessoas não possuidoras de meios técnicos ou propriedades, como mercadoria . O conceito de mercadoria é revelador da impossível igualdade, como foi referido no Capítulo I. Mercadoria é entendida como o valor retirado do trabalho operário, quando Marx fala de valor de uso e valor de câmbio. Valor de uso tem todo o bem fabricado com o objectivo de ficar dentro de casa e ser partilhado pela família e consumido pelos fabricantes. É característico da alienação, ou valor de câmbio ou de troca, retirar não apenas o bem, que passa a pertencer ao proprietário dos meios de produção, da indústria, voir, da actividade do operário e do seu horário de trabalho e da sua propriedade, um bem transformado que, ainda que produzido pela pessoa, é propriedade não do artesão, mas do proprietário do capital investido para possibilitar o fabrico.
Foi o problema colocado perante o entendimento de Émile Durkheim e da sua equipa, especialmente de Marcel Mauss. A ideia é simples. A tese que eles encontram na sociedade em que moram e da qual fazem parte, é a de uma sociedade de trabalho alienado, baseada numa relação social presidida pelo capital, pelos investidores . Durkheim acrescenta ao que Marx tinha definido, a ideia de que a troca ou câmbio desiguais de bens, são socialmente disjuntivas, ou, por outras palavras, desmembram a vida social e do grupo social, ao introduzir valores disjuntivos da interacção social, usados pelos grupos para a sua coesão e para a sua acção pragmática. Por esta realidade, Durkheim escreve De la division du travail social e defende a antítese de que há solidariedade orgânica ou de direito nas sociedades ocidentais que devem dar protecção ao operariado. Era o dilema de Durkheim: socialismo ou sociologia? Dilema retomado por Marcel Mauss, que procura uma síntese para as duas teses: capital versus produção não remunerada. Começa por procurar antecedentes numa ideia que nasce ao rever as etnografias de Franz Boas e Bronislaw Malinowski, por ele citadas em L’essai sur le don, já livro em 1956 .
O objectivo de Mauss é simples: retirar da etnografia as actividades que existem nas sociedades denominadas arcaicas ou primitivas, nas que parece não haver troca de bens em dinheiro, quando se pergunta qual é a norma de direito que orienta as trocas e o intercâmbio em sociedades que aparentemente, não têm lei nem códigos. Que, como bem sabemos, são sociedades sem escrita, de costume ou costumeiras. Para entender esta noção de valor social disjuntivo, começa por comparar o Direito mais antigo da Europa, o Escandinavo, e acaba por explicar que entre grupos sociais como os Kwakiutl do Canadá e os Kiriwina da Melanésia, existe uma relação ritual de troca de bens e pessoas, que Mauss denomina facto social total, no qual existem três actividades que analisa: doar, aceitar e retribuir. Estes três actos rituais seriam entendidos, mais tarde, como o único conceito de reciprocidade, do qual Mauss teria falado.
Conceito usado por Malinowski com a palavra Massim de mana ou o espírito ou magia das coisas que explicam a troca, câmbio, intercâmbio e permuta, que, mais tarde, é reconvertida ao conceito de reciprocidade pelo comércio que Malinowski descobre na acção ritual da troca económica, o que provoca cem furiosas páginas no seu texto, em que sustenta que não há outra troca, câmbio, intercâmbio ou permuta, que não seja comercial. É a partir destas dúvidas que Mauss faz uma análise sobre o conceito de dádiva ou dom, ideia, norma ou conceito, usado na Antropologia para explicar toda a movimentação de pessoas e de bens, como se fora uma ideia romântica.

O meu desejo era ir directamente à etnografia. Mas, no início deste capítulo, falei de tese, antítese e síntese, conceitos que estimo devam ser explicados, para falarmos da reciprocidade comercial ou interacção dita recíproca nas relações sociais, presididas pelo comportamento denominado capital. Comportamento que produz escassez dentro das sociedades, pela alienação dos bens, que são retirados para alimentar a abundância de outros membros do grupo social. Essas relações que Émile Durkheim denominou de, como eu percebo, valores sociais disjuntivos da interacção social dos indivíduos em grupos. Porque, há os muito ricos, por reterem lucro da mais valia retirada da força de trabalho dos que nada têm e os muito pobres, que apenas têm a sua força de trabalho para vender ou alienar, denominados proletários: possuem só a prole, ou família consanguínea, para ganhar a vida económica.
Definido por Marx, este conceito é defendido por Durkheim e Mauss, na base da ideia dos operários não serem iguais às pessoas de posse, ainda que por cultura e lei devessem ser, o que faz destes contratos actos ilícitos e juridicamente inválidos. Faço especial referência ao debate de Durkheim, de 1908, “Débat sur l´ économie politique et les sciences sociales” , no qual defende os factos económicos como base da análise da sociedade: “l’économie politique occupe, dans l’ensemble des sciences sociologiques, une situation particulière. Elle est la seule des ces sciences qui soit actuellment constituée comme un ensemble systématisé, la seule que dispose d’un stock sufficient d’observations pour permettre la constructions de lois…C’est elle qui doit servir de foyer et en quelque sort de mère pour les autres sciences sociologiques… [por causa de]. D’autres lois économiques qui interviennent sont la loi d l’offre et la demande, la loi du capital” . Bem sabemos que Émile Durkheim criticou duramente a individualidade da oferta e da procura, e debateu contra Adam Smith, na base dos textos de Karl Marx, da sua própria pesquisa, e das ideias de Tönnies, no seu texto de 1893, De la division du travail social. Durkheim e Mauss experimentaram dinamizar a Sociologia, para procurar a igualdade das pessoas em grupo. O seu objectivo era organizar uma sociedade dentro do novo conceito de socialismo, que, como já sabemos, aparece no Século XIX, para poder lutar em prol dos direitos dos trabalhadores. No texto de Durkheim, de 1906, “Internationalisme et lutte de classes” , “l’antipatriotisme est nécessaire a la lutte des classes…n’est que la conséquence particulière d’une idée plus générale, de l’idée que la société ne pourrait se reconstituer que par la destruction des nations actuelles : la société actuelle forme deus blocs, il faut que l’un détruise l’autre. C’est là une forme relativement récente du socialisme…D’abord, on a dit que c’était l’avènement de la grande industrie qui condamnait à une destruction nécessaire des sociétés actuelles. Mais pour cela il faudrait admettre que les sociétés modernes ne contenaient pas normalement dans leurs flancs cette forme économique, qui serait le produit d’une véritable maladie dus corps social. Dans ces cas, il serait légitime de soutenir que nos sociétés réalisent une contradiction, qu’elles ne sauraient par elles-mêmes se mettre en harmonie avec se système industriel qui est étranger a sa nature…l’ouvrier est exclusivement un producteur” Durkheim defende a ideia de igualdade, ideia na qual introduz o conceito de contradição que tinha aprendido de Marcel Mauss e em Leipzig, em 1888, ao ler o livro O Capital de Marx. É necessário dizer, no entanto, que no texto citado, Durkheim lembra que o operário não é apenas um trabalhador, mas também um intelectual que, contudo, é incapaz de sonhar com o futuro, porque o não tem. A ideia de igualdade procurada no conceito de solidariedade, especialmente orgânica, que defende no texto que acabo de comentar, – Lei, Direito, Contrato –, é uma ilusão de Durkheim, causada pelas incidências da guerra que tinha morto o seu filho e os seus discípulos, bem como pelos feitos da Commune de Paris e da guerra Franco-Prusiana, com a rendição de França e a matança dos Comunnards. Durkheim viveu todos estes factos e com muita tristeza, como refere Mauss no Année Sociologique de 1925: In Memoriam, reproduzido nas Oevreus Compléts de Mauss (Vol. III, página 434 e seguintes).
Em 1928, Mauss comenta que estes factos tinham feito de Durkheim um socialista que duvidava imenso das lutas, donde, a sua diferença com Marx, tal e qual Durkheim a exprime, é a análise da luta de classes. “Souffrant intensément des maux qui affligent la société actuelle, il la croit pour cette raison, mauvaise et, pour dire, manquée et il étend naturellement ce jugement à toutes les sociétés qui l’ont immédiatement précédée dans l´histoire, et qui peuvent en être considérées comme l’ébauche. Il souhaiterait les voir toutes radiées de l’histoire…Cette conception trouve précisément…un accueil favorable dans certes milieux révolutionnaires…” . O comentador acrescenta que a ideia é contrária a Marx, por este pensar que o desenvolvimento é a forma superior da História das Sociedades. No entanto, Durkheim diz: “Voyez même l’œuvre la plus forte, la plus systématique, la plus riche en idées qu’ait produit l’Ecole [Socialiste] Le Capital de Marx…” . Estas citações parecem-me necessárias para entendermos dois conceitos: o das ideias do método contraditório usado em Sociologia, e a procura da igualdade em sociedades primitivas e não em sociedades históricas, como Marx fez. A procura da dádiva é a procura de sociedades sem comércio, das quais se encontra… rien! Como vamos tentar apreciar. Até porque, se Marx não soube de Durkheim, o contrário não é o caso.

2.Dádiva,empréstimo,escassez,abundância. Bases da reciprocidade.

Cada palavra do título deste momento do texto é um conceito. Mas conceitos que estão “acasalados”, são um ou dois pares em oposição dialéctica, como vamos analisar. O pensamento dialéctico tem origem nos textos de Friedrich Hegel . E o par que tenho escolhido tem a sua origem na seguinte citação de Hegel: “Todo pensamento lógico verdadeiro ou real tem três aspectos. Em primeiro lugar, o aspecto abstracto ou compreensível. Em segundo lugar, a sua negação dialéctica, que diz o que ele não é. Em, terceiro lugar, o aspecto especulativo que é a compreensão concreta: A é ao mesmo tempo aquilo que não é. Estes três aspectos não constituem os três aspectos da lógica; são, sim, momentos de tudo o que é realidade e verdadeiras lógicas. Fazem parte de qualquer aspecto filosófico. Qualquer conceito é racional, é uma abstracção que se opõe a outra, e é compreendida pela unidade pelo seu oposto. Esta é a definição da dialéctica” .
Marx retoma este conceito e aplica-o à sua análise da história, de forma materialista: vai de imediato à propriedade, às relações entre pessoas, propriedade e salários. “The political State cannot exist without the natural basis of the family and the artificial basis of civil society…human beings is a mass.” Esta crítica de Marx é retirada das obras citadas de Hegel e utilizadas para escrever o seu The Communist Manifesto. É a partir deste texto que Marx expande a sua metodologia materialista dialéctica, ao analisar a correlação propriedade privada/salário/colectivismo de bens e da produção, temida pela classe burguesa do seu tempo. Refere Henry de Saint-Simon, como economista e filósofo socialista francês e as suas teorias colectivas, e como as trocas, ou são privadas, com mais-valia para o proprietário, ou colectivas, com uma repartição igual de recursos entre produtores, todos eles proprietários dos meios de recursos e de bens, resultante desses recursos. Acrescenta que a aristocracia europeia está a tremer e vê com pavor a passagem de bens das mãos privadas, para mãos colectivas, que o Marques de Saint-Simon defende, desde o seu lugar social privilegiado. Saint-Simon fustiga a aristocracia por não se aperceber que a classe burguesa cobiça os seus bens, permitindo o seu levantamento, bem como o empobrecimento das classes operárias. Com base nesta análise, propõe formas económicas de acção em prol dos despojados, referindo, nos seus textos, os factos que permitem entender a necessidade de solidariedade, do colectivismo, bem como os seus contrários: a escassez e o aparecimento da necessidade do empréstimo. Somas crescentes de dinheiro são retiradas dos bancos pelas indústrias, pagas com juros que revertem a favor da burguesia. Estes factos dinamizam e originam um novo comportamento entre os despojados de propriedade: a reciprocidade ou ajuda mútua entre os pobres do operariado francês. Saint-Simon advoga o colectivismo e a solidariedade entre as denominadas massas de produtores empobrecidos, desnecessariamente, pela indústria e pela falta de cuidado do Estado, apesar de Louis XIV ter dito, anos antes,“L’Êtat c’est moi”. E a cabeça do seu neto rolou na guilhotina…
Saint-Simon defende as suas teorias em dois textos, memórias do período e contexto do que viria a ser a análise da dupla por mim referida: dádiva-empréstimo; escassez-abundância É o que Émile Durkheim analisa no seu livro de 1928, publicado e prefaciado por Marcel Mauss . É nesse texto que, quer Mauss, quer Durkheim, estabelecem uma luta para o entendimento do socialismo e da propriedade colectiva, que leva ao estudo da solidariedade em Durkheim e das formas arcaicas de produção em Mauss, por meio do método comparativo de culturas e conceitos: o quê e como, nas etnias, o quê e como, na Europa. Texto no qual Durkheim diz, como já fiz referencia, no número 1 deste Capítulo Segundo, logo de entrada: “Voyez même l’oeuvre la plus forte, la plus systématique, la plus riche en idées qu’ait produit L’Ecole ( [socialiste]): Le Capital de Marx. Donde, dádiva – empréstimo, é a primeira dupla; o par contraditório é escassez -abundância. Contraditório apenas pelo método que uso para os explicar, a lógica de tese, antítese e síntese, que Hegel e Marx e Feurebach definiram. Estes conceitos parecem não estar relacionados e, no entanto, há uma derivação que permite a introdução a um conceito a partir do outro. Isto, por um comentário que Marcel Mauss produz no seu texto de 1923-24 , que trata de um conceito que passou a ser fundamental para a análise antropológica, o da dádiva a par e passo com o comércio. Análise produzida por Durkheim, Mauss e Malinowski, que passo a expor para entender os conceitos-pares, necessários para entender as relações sociais capitalistas desse tempo e de hoje, por meio do método comparativo, e que acaba nos textos de Pierre Bourdieu, referidos no fim destas páginas. Mauss começa por definir a circulação de bens entre grupos sociais, que parecem não ter mercado nem moeda. É o que o autor denomina dádiva e é referido nas formas de Contrato e de Direito, que analisa logo no começo do seu texto: “Na civilização escandinava e em bom número de outras, as trocas fazem-se sob a forma de presentes, em teoria voluntários, na realidade obrigatoriamente dados e retribuídos”. E o debate a que o conceito dá lugar no seu tempo, é logo citado em notas de rodapé. Mas, no texto central, adverte o leitor de que esta pesquisa está dentro de um estudo mais amplo, que tem a ver com o direito contratual e com o sistema de trocas económicas. O estudo de Mauss é uma continuação do que o seu mestre Émile Durkheim tinha feito em 1893 e em 1912, sobre a solidariedade. Mauss refere que a temática da troca-dádiva “é muito complexa por envolver instituições religiosas, jurídicas e morais – e estas políticas e familiares ao mesmo tempo; económicas – e estas supõem formas particulares da produção e do consumo, ou antes, da prestação e da distribuição…” . Por outras palavras, está, não apenas a definir conteúdos, bem como a delimitar a área de estudo que, por ser extremamente “larga” e entrosar muitas matérias, acaba por reduzi-la apenas ao que denomina o carácter “voluntário…, aparentemente livre e gratuito, e todavia forçado e interessado por essa prestações” . É assim que vai, lentamente, entrando na definição do que é a dádiva ou o dom, como denomina este comportamento: “Elas revestiram quase sempre a forma do presente, da prenda oferecida generosamente mesmo quando, nesse gesto que acompanha a transacção, não há senão ficção, formalismo e mentira social, e quando há no fundo, obrigação e interesse económico” . O objectivo do autor é o aprofundamento do conceito da divisão social do trabalho, como diz a seguir, porque procura a regra de direito na qual se pode basear a troca, a dádiva e a obrigação quer de dar, quer de receber, quer ainda, de restituir. E a sua pesquisa vai endereçada para as denominadas sociedades arcaicas ou primitivas. Por outras palavras, experimenta retirar das formas antigas da vida social, uma explicação do que é a preocupação da época: a existência ou não, de solidariedade social: “qual é a regra de direito e de interesse que, nas sociedades de tipo atrasado ou arcaico, faz com que o presente recebido seja obrigatoriamente retribuído? Que força existe na coisa que se dá que faz que o donatário a retribua? E vai analisando o comportamento de várias etnias, especialmente as analisadas por Boas e Malinowski, até concluir que estes tinham definido uma economia natural, sem moeda e sem mercado. Mas o que identifica como economia de troca – dádiva está longe de entrar nos quadros da economia denominada utilitária, que era a teoria económica da sua época, ou da época dentro da qual Durkheim, Mauss, e Malinowski antes de Mauss e Boas desenvolveram os seus trabalhos. Especificamente, Mauss chama a nossa atenção para o facto de Malinowski analisar de forma detalhada no texto de 1922, sobre os Argonautas, a existência de trocas que são ofertas, e ofertas ou dádivas que são comércio. De facto, Malinowski categoriza as trocas até atribuir a classificação de intercâmbio ou comércio a várias delas . A ideia para a qual Mauss chama a nossa atenção é a da página 195, da versão castelhana: “Es fácil ver que casi todas las categorías de regalos que yo he clasificado según principios económicos, se basan también en relaciones sociológicas.” . E é Maurice Godelier que chama a nossa atenção para o facto de Mauss ter entrado numa espécie de enigma, ao falar que existe a obrigação de doar, aceitar, e retribuir a mesma coisa doada, quando diz “…Avec les sociétés capitalistes modernes nous sommes ao pôle opposé des sociétés que Mauss analyse dans son Essai sur le don. On peut dire sens forcer que nos sociétés sont marquées en profondeur par « une économie et une morale de marché et de profit » et qu’à l’opposé les sociétés qui figurent dans L’Essai sur le don apparaissaient à Mauss comme profondément marquées par une « économie et une morale du don » . Cela ne veut pas dire que les sociétés caractérisées par le don ignoraient les échanges marchands, ni que les sociétés marchandes d’aujourd’hui ont cessé de pratiquer le don. Le problème est de voir dans chaque cas quel le principe domine l’autre dans la société et pourquoi” . Como é habitual, Godelier está a analisar o pensamento de Mauss a partir da lógica contraditória do materialismo histórico. O mesmo que usa Mauss para analisar as sociedades denominadas primitivas ou arcaicas, que o próprio diz ser uma Arqueologia de ideias, esta procura de uma explicação das formas de mercado, antes de existir uma teoria ocidental da economia. E acaba por sintetizar toda a sua análise sob o título convincente de Sociologia Económica, na qual diz directamente: “a noção de valor funciona nestas sociedades; excedentes muito elevados, de uma maneira geral, são acumulados; frequentemente são gastos inutilmente, com um luxo enorme e que nada tem de mercantil; há marcas de riqueza, espécies de moedas, que são trocadas. Mas, toda esta economia, riquíssima, está ainda impregnada de elementos religiosos: a moeda ainda tem o seu poder mágico e ainda está ligada ao clã ou ao indivíduo….” .

Este argumento é o que tenho usado no meu texto referido de 2002 A economia deriva da religião. Aliás, não sou apenas eu a ter este tipo de hipótese. Se repararmos na análise de Marx, vamos encontrar na sua epistemologia ideias que derivam da reciprocidade. A primeira ideia a reter em Marx, é a de racionalidade. Tudo começa, quando Marx critica David Ricardo, na sua formulação da sua teoria do valor, na base do tempo necessário de um indivíduo para produzir um bem, por não especificar o que fazer, depois de esse bem ter sido fabricado . O tempo é para o operário, ou para o empresário? Ricardo critica Adam Smith na sua ideia do valor – trabalho, e Marx critica Ricardo porque, ao experimentar defender os operários, Ricardo cria com o seu conceito de valor, uma desigualdade: o tempo que resta na fábrica é mais-valia ou lucro puro, apropriado pelo proprietário . É a noção de valor de uso e valor de câmbio: todo o ser humano precisa de apenas poucas horas diárias de trabalho para satisfazer as suas necessidades básicas, como comer, agasalhar-se, etc. E que as horas a mais que um ser humano trabalha, constituem a mais-valia que lhe é retirada pelo proprietário da fábrica ou indústria ou artesanato onde trabalha. Aliás, o capital acumulado pelos proprietários acaba por ser uma relação social, que hierarquiza seres humanos entre os que podem mandar por terem posses e bens, e outros que têm apenas a sua capacidade de trabalhar que é vendida aos proprietários de bens produtivos, passando assim, a serem uma mercadoria. Conceito de mercadoria que define para pessoas e coisas que são trocadas no mercado.
O que procurava Marcel Mauss, bem como Malinowski, era o que não é utilitário nas transacções entre os seres humanos. E a descoberta de Malinowski, que muito fez para distinguir entre comércio e dádiva, era que toda a reciprocidade envolvia uma dádiva de troca, por outras palavras, de mercadoria. E mercadoria é definida como conceito por Marx, da seguinte forma: “The wealth of those societies in which the capitalist mode of production prevails itself as “an immense accumulation of commodities” its unit being a single commodity” . É preciso deixar ou definir de imediato o conceito de capital usado por Marx, que, no seu Foundations of the critique of Political Economy, ou Grundisse, texto escrito ao longo de 1864, achado em 1941 e publicado apenas em 1951, diz apenas, que “capitalism, economic system characterized by the private ownership of property and its means of production. Generally the capitalist, or private enterprise, system embodies the concept of individual initiative, competition, supply and demand, and the profit motive” . Nenhuma destas características são encontradas na análise feita por Mauss ou por Malinowski, entre povos que experimentam remediar a escassez com a dádiva ou reciprocidade. A “abundância” dos grupos de trabalho acaba por ser a união que existe entre todos eles, que trabalham ao longo de laços de parentesco e de hierarquia. O próprio Godelier, no texto citado, diz: “Pour expliquer pourquoi on donne, Mauss avançait une hypothèse un peu moins “spirituelle”, et ce qui est explicite dans ses analyses du potlatch. C’est l’hypothèse que ce qui oblige à donner est précisément que donner oblige. Donner, c’est transférer volontairement quelque chose qui vous appartient á quelqu’un dont on pense qu’il ne peut pas l’accepter. Le donateur peut être un groupe, ou un individu, qui agit seul ou au nom d’un groupe. De même, le donataire peut être un individu, ou un groupe, ou une personne qui reçoit le don au nom du groupe qu’il représente…Donner semble instituer un double rapport entre celui qui donne et celui qui reçoit. Un rapport de solidarité, puisque celui qui donne partage ce qu’il a, voir c’est qu’il est, avec celui á qu’il donne, et un rapport de supériorité, puisque celui qui reçoit le don et l’accepte se met en dette vis-á-vis de celui qui lui a donné” . Em conjunto com a citação anterior, o tipo de sistema definidor da relação depende de se saber se a troca é de mercadoria ou de dádiva. Dentro da mesma sociedade, pode haver os dois tipos de troca. Já assim estava classificado por Malinowski e por Mauss, nos parágrafos citados.

Se a relação é entre uma pessoa que é proprietária dos meios de produção e outra que não tem mais do que a sua habilidade e capacidade de trabalho, a relação para quem entrega força de trabalho e recebe um salário é de inferioridade, não é de abundância, é de escassez. Se da outra parte há um indivíduo que é proprietário dos bens reprodutivos, a relação é de superioridade e de obtenção de lucro. O lucro é a mercadoria que se adquire pela capacidade de possuir propriedade dos meios de produção e fixar as normas e leis por meios das quais estes meios serão usados. O proprietário não oferece, não doa, arrenda ou possui a força de trabalho e a capacidade de produção dos que não têm outro bem que a sua força de trabalho e a da sua família. Entre os grupos denominados arcaicos, primitivos ou anteriores a nós, esses que Guideri denomina de forma enganada, “fora da História” , a relação é de solidariedade ou dádiva enquanto não houver uma relação de interesse ou subordinação entre o doador e quem recebe. A relação pode ser de cima para baixo, hierárquica, mas se é a maneira de subsistir dessa hierarquia, como acontece com a circulação de bens entre os Quechua – os antigos Inca –, ou entre os Picunche, ou entre os Baruya como Godelier analisa em duas das suas obras, então a relação poderia ser de dádiva, como se pretende que Mauss tenha definido. A abundância e a escassez são auxiliadas entre grupos sociais que têm apenas a solidariedade orgânica para se defenderem, da forma que Émile Durkheim definia no seu texto invocado de 1893, dedicado às formas de divisão social do trabalho, em que Smith se baseara para entender a produção.
A relação de oferta e procura é uma relação mercantil ou de comércio que, às tantas, pode estar dentro das relações de dádiva, como o próprio Malinowski explica. Há relações empreendidas ou tratadas no Kula que passam a ser de comércio, quando se cria uma relação de subordinação, pela qual quem recebe deve trabalhar para quem oferece. O que resulta mais evidente quando as sociedades usam a moeda, o papel-moeda e o crédito, para as suas relações de interacção. A moeda acaba por ser uma mercadoria, da forma que Marx define nas obras citadas. Mercadoria que começa quando as relações sociais mudam da pessoa para as entidades que emitem mercadoria moeda. O trabalho é aí uma relação de uso para o operário, enquanto é de troca dentro do mercado que procura trabalho.
Era possível pensar que os grupos arcaicos ou primitivos estão a dar mais-valia aos grupos que colonizaram as suas terras. Mas, aí, é preciso distinguir entre a relação do grupo dominado com o dominador, e a relação dentro de cada um de esses grupos. Dádiva e exploração podem acontecer ao mesmo tempo, entre indivíduos não autónomos e proprietários autónomos. O que faz a autonomia de um ser humano é a posse ou desaparição do seu produto. O que caracteriza uma relação de escassez é a alienação do produto, esse conceito cunhado por Feurebach em 1841 e que Marx e outros autores viriam a usar mais tarde, ao definirem a relação entre o produtor e a sua obra. A História mostra que o ser humano, em grupo ou individualmente, é capaz de produzir um bem, seja para consumo próprio ou para a troca, decidida conforme as formas do costume dentro do seu povo ou a sua cultura. A alienação do produto acontece de duas maneiras: o produtor não apenas fica sem a obra feita ou sem saber o seu destino, bem como a remuneração do trabalho é mais baixa do que o preço que a sua obra adquire, como bem, no mercado. Aliás, o produtor perde a habilidade de entender as relações de mercado, de oferta e procura, bem como a de organizar um sistema produtivo, do qual ele é apenas uma parte.
Diferente é o que acontece entre as relações de dádiva. A divisão do trabalho é organizada na base da hierarquia, da estrutura de clã, do parentesco e das trocas efectivadas entre grupos que recebem pessoas e bens e grupos que doam pessoas e bens. Para entender as formas de troca – dádiva ou mercadorias –, é preciso conhecer as linhas orientadoras do grupo. Não é em vão que Durkheim distingue entre solidariedade orgânica e mecânica. A primeira, ajusta-se ao direito normalmente definido nos grupos do capital, pela parte que domina, enquanto que a segunda, consiste apenas nas relações de parentesco e chefia, incrustadas nos mitos e ritos, que definem a dádiva, a escassez, a abundância e a reciprocidade para ultrapassar os momentos históricos de déficit alimentar, de produção e de reprodução. É o que Bourdieu denomina o habitus, essas relações de dádiva, ou de salários, capital social, que começa na literacia.

3. Reciprocidade Comercial.

A análise da troca-dádiva, quando tentamos entender o conceito de reciprocidade na base das etnografias usadas pelo autor, não passa de uma desculpa para entender e dar a entender que não há reciprocidade gratuita na sua sociedade. Não é em vão que Mauss afirma que o Estado Francês não premeia nem recompensa, de forma igualitária, os trabalhadores. Nem é em vão que define toda uma Sociologia Económica, uma análise do real na base das relações de mercadoria. Essas que, conforme o próprio Durkheim diz , classificam e hierarquizam os seres humanos entre operários, iguais entre eles, e proprietários, hierarquicamente por cima do operariado. Um facto que é base da teoria de Merton e Parsons , autores que continuam a Sociologia Económica de Marcel Mauss, Maurice Halbawchs, Paul Lapie e outros membros da equipa de Durkheim de L’Année Sociologique.
O problema de a reciprocidade ser um conceito que refere formas contratuais de circulação de bens equivalentes, fica para mim, esclarecido. Mas o assunto que queria tratar, é o de termos usado a reciprocidade como conceito que tudo encobre e nada explica. Temos utilizado o conceito como norma, como acção e como definidor de acções. Usamos reciprocidade cada vez que falamos de ajuda mútua ou troca de trabalho. Foi na minha própria pesquisa da Galiza nos anos 60,70 e 90 do Século XX, que referi o conceito como forma gratuita. Não tinha reparado que esta troca de ajuda familiar é uma forma de economia que substitui os investimentos de capital. Ou, por outro lado, que a força de trabalho investida, é o capital que usa o ser humano que não tem ou não possui a parte essencial do capital: moeda para investir e criar mais moeda, a fórmula usada por Marx nos seus textos de Surplus Value ou Mais-Valia, já referidos e que serão objecto de análise no capítulo seguinte. A mais-valia do pobre, como referi no meu texto de 1988 , é a maximização dos seus recursos. A ideia não é minha, deriva da análise de Marx e os seus conceitos de valor de uso e valor do câmbio , donde a produção de valores de uso, é subordinada à produção de valores de câmbio. Esta ideia é fundamental para entender a movimentação da produção e para entender que a reciprocidade é um conceito económico da Sociologia, transferido para a Antropologia e usado para entender grupos sociais de outras culturas. Outras culturas, ou Outros como nós denominamos, que trabalham, produzem e reproduzem de forma diferente da nossa forma de fazer economia. Ou, pelo menos, isso é o que parece. Mas, esse tipo de análise leva a esquecer o que eu tinha já advertido na Galiza: a única forma de responder ao mercado do capital, é o uso de formas, ditas antigas, primitivas ou arcaicas, pelos autores usados neste e em outros textos. O capital é uma relação social que arrebita e mantém vivas, as maneiras mais “saloias” ou, como diriam os Galegos, mais “enxebres”, mais castizas, mais costumeiras, de trabalhar. É verdade o que diz Karl Polanyi : “los dos últimos siglos han producido en Europa Occidental y Norte América, una organización del modo de vida humano a la que resultaron especialmente aplicables las reglas de optar. Esta forma de economía consistió en un sistema de mercados creadores de precios. Como los actos de intercambio, tal como se practican bajo un sistema de estas características, implican a los participantes en opciones inducidas por una insuficiencia de medios, el sistema productivo pudo ser reducido a un modelo que se prestó a la aplicación de métodos basados en el significado formal de lo económico” . Por outras palavras, a aplicação das formas teóricas da Economia Política, tal e qual Durkheim tinha já alertado, eram uma necessidade para entender a produção entre grupos sociais que, aparentemente, estavam a realizar actividades muito distantes da denominada teoria económica. Se é bem verdade que Durkheim constrói um argumento contra o Homo Economicus, montado por Adam Smith e John Stuart Mill, na verdade, é esse o saber que funciona, ainda que não se conheça nem o ponto do i. O Homo Economicus criou, na Antropologia, toda uma teoria alternativa que procurou a economia dentro das instituições ou teoria substantiva da economia, à qual aderiram muitos autores, entre os quais o próprio Malinowski que, sem dar por isso, criou a teoria formal, dentro da qual não tinha cabimento a análise do parentesco e da vizinhança. Este é o motivo que o levou a mudar para a Psicologia. Marcel Mauss soube reconhecer, embora não tenha sido explícito na sua formulação da Sociologia Económica, que a troca-dádiva era apenas defesa face à falta de meios para optar. Porque a teoria económica ocidental, tem por fundamento a ideia de todos saberem preços, valores das mercadorias, montante dos investimentos, quantidade de lucro a obter pela aplicação de uma importância que, normalmente, um assalariado não imagina. Do que se trata, normalmente, é de assegurar que ninguém saiba teoria económica, para evitar a concorrência que possa prejudicar um investidor que organiza a sua empresa para lucrar.
A teoria à qual Durkheim aderiu e que tinha sido elaborada por Karl Marx, era: “A chacun selon ses oeuvres” ou “A chacun selon son mérite” . A procura de igualdade estava na base do conceito de troca-dádiva, bem como no de solidariedade, especificamente na mecânica. Mas a História tem provado a falácia filosófica do conceito ou das frases. Porque a obra procurada, é a capacidade de optar entre bens mais baratos para investir e vender mais caro os produtos requeridos. Esta ideia de Adam Smith, Bentham, Mill e outros liberais, tem levado ao engano todos os teóricos da ideia substantiva da Economia. Não é em vão que Edmund Leach escreve em desafio aos estudantes do primeiro ano do curso de Antropologia de Cambridge, para descobrirem, se puderem, quem não é racionalista e é orientado pelas suas emoções no seu comportamento económico . A ideia de optar, uma realidade no mundo dentro do qual vivemos, acaba por ser um factor real na vida social. E, ainda que Durkheim, no seu Le suicide. Etude sociologique não consiga ver que o suicídio anômico tem por causa a falta de meios e ideias para optar, a opção ou falta dela, faz do indivíduo um pária do seu grupo social, ou um incompetente, ou “excluído”, o conceito de hoje.
Eu próprio, no meu regresso à Galiza em 1997, tive a infelicidade de constatar, não apenas a falta de colaboração ou entre – ajuda familiar, bem como a morte de seis adultos e dois jovens, os filhos de dois suicidas, que morreram por não saber o que fazer perante as mudanças que o Governo da União Europeia tinha introduzido no seu país: de valores de uso, passou-se rapidamente a organizar valores de troca .
Aliás, a maior parte dos economistas, dos sociólogos ou dos antropólogos, têm-se virado para a teoria formal da economia, especialmente por causa da teoria da globalização, na qual todos os Outros parecem andar envolvidos. O próprio Raymond Firth, que em 1929 fez uma tese de Antropologia Económica , baseada nas ideias de Karl Marx, muda de análise para os símbolos e para a teoria formal, nas obras a seguir. Marcel Mauss descobriu que a dádiva era comercial e organizou a Sociologia Económica. Durkheim, esse, ficou apenas lembrado pelas suas ideias de solidariedade.
em lucro para o proprietário dos meios de produção. Mercadoria é todo o bem que é trocado por moeda ou transferido a outro, por contrato ou pagamento. Ou, mercadoria é a capacidade que tem um indivíduo para fabricar bens dos quais vive, pelo que Marx denominou a força de trabalho das pessoas não possuidoras de meios técnicos ou propriedades, como mercadoria . O conceito de mercadoria é revelador da impossível igualdade, como foi referido no Capítulo I. Mercadoria é entendida como o valor retirado do trabalho operário, quando Marx fala de valor de uso e valor de câmbio. Valor de uso tem todo o bem fabricado com o objectivo de ficar dentro de casa e ser partilhado pela família e consumido pelos fabricantes. É característico da alienação, ou valor de câmbio ou de troca, retirar não apenas o bem, que passa a pertencer ao proprietário dos meios de produção, da indústria, voir, da actividade do operário e do seu horário de trabalho e da sua propriedade, um bem transformado que, ainda que produzido pela pessoa, é propriedade não do artesão, mas do proprietário do capital investido para possibilitar o fabrico.
Foi o problema colocado perante o entendimento de Émile Durkheim e da sua equipa, especialmente de Marcel Mauss. A ideia é simples. A tese que eles encontram na sociedade em que moram e da qual fazem parte, é a de uma sociedade de trabalho alienado, baseada numa relação social presidida pelo capital, pelos investidores . Durkheim acrescenta ao que Marx tinha definido, a ideia de que a troca ou câmbio desiguais de bens, são socialmente disjuntivas, ou, por outras palavras, desmembram a vida social e do grupo social, ao introduzir valores disjuntivos da interacção social, usados pelos grupos para a sua coesão e para a sua acção pragmática. Por esta realidade, Durkheim escreve De la division du travail social e defende a antítese de que há solidariedade orgânica ou de direito nas sociedades ocidentais que devem dar protecção ao operariado. Era o dilema de Durkheim: socialismo ou sociologia? Dilema retomado por Marcel Mauss, que procura uma síntese para as duas teses: capital versus produção não remunerada. Começa por procurar antecedentes numa ideia que nasce ao rever as etnografias de Franz Boas e Bronislaw Malinowski, por ele citadas em L’essai sur le don, já livro em 1956 .
O objectivo de Mauss é simples: retirar da etnografia as actividades que existem nas sociedades denominadas arcaicas ou primitivas, nas que parece não haver troca de bens em dinheiro, quando se pergunta qual é a norma de direito que orienta as trocas e o intercâmbio em sociedades que aparentemente, não têm lei nem códigos. Que, como bem sabemos, são sociedades sem escrita, de costume ou costumeiras. Para entender esta noção de valor social disjuntivo, começa por comparar o Direito mais antigo da Europa, o Escandinavo, e acaba por explicar que entre grupos sociais como os Kwakiutl do Canadá e os Kiriwina da Melanésia, existe uma relação ritual de troca de bens e pessoas, que Mauss denomina facto social total, no qual existem três actividades que analisa: doar, aceitar e retribuir. Estes três actos rituais seriam entendidos, mais tarde, como o único conceito de reciprocidade, do qual Mauss teria falado.
Conceito usado por Malinowski com a palavra Massim de mana ou o espírito ou magia das coisas que explicam a troca, câmbio, intercâmbio e permuta, que, mais tarde, é reconvertida ao conceito de reciprocidade pelo comércio que Malinowski descobre na acção ritual da troca económica, o que provoca cem furiosas páginas no seu texto, em que sustenta que não há outra troca, câmbio, intercâmbio ou permuta, que não seja comercial. É a partir destas dúvidas que Mauss faz uma análise sobre o conceito de dádiva ou dom, ideia, norma ou conceito, usado na Antropologia para explicar toda a movimentação de pessoas e de bens, como se fora uma ideia romântica.

O meu desejo era ir directamente à etnografia. Mas, no início deste capítulo, falei de tese, antítese e síntese, conceitos que estimo devam ser explicados, para falarmos da reciprocidade comercial ou interacção dita recíproca nas relações sociais, presididas pelo comportamento denominado capital. Comportamento que produz escassez dentro das sociedades, pela alienação dos bens, que são retirados para alimentar a abundância de outros membros do grupo social. Essas relações que Émile Durkheim denominou de, como eu percebo, valores sociais disjuntivos da interacção social dos indivíduos em grupos. Porque, há os muito ricos, por reterem lucro da mais valia retirada da força de trabalho dos que nada têm e os muito pobres, que apenas têm a sua força de trabalho para vender ou alienar, denominados proletários: possuem só a prole, ou família consanguínea, para ganhar a vida económica.
Definido por Marx, este conceito é defendido por Durkheim e Mauss, na base da ideia dos operários não serem iguais às pessoas de posse, ainda que por cultura e lei devessem ser, o que faz destes contratos actos ilícitos e juridicamente inválidos. Faço especial referência ao debate de Durkheim, de 1908, “Débat sur l´ économie politique et les sciences sociales” , no qual defende os factos económicos como base da análise da sociedade: “l’économie politique occupe, dans l’ensemble des sciences sociologiques, une situation particulière. Elle est la seule des ces sciences qui soit actuellment constituée comme un ensemble systématisé, la seule que dispose d’un stock sufficient d’observations pour permettre la constructions de lois…C’est elle qui doit servir de foyer et en quelque sort de mère pour les autres sciences sociologiques… [por causa de]. D’autres lois économiques qui interviennent sont la loi d l’offre et la demande, la loi du capital” . Bem sabemos que Émile Durkheim criticou duramente a individualidade da oferta e da procura, e debateu contra Adam Smith, na base dos textos de Karl Marx, da sua própria pesquisa, e das ideias de Tönnies, no seu texto de 1893, De la division du travail social. Durkheim e Mauss experimentaram dinamizar a Sociologia, para procurar a igualdade das pessoas em grupo. O seu objectivo era organizar uma sociedade dentro do novo conceito de socialismo, que, como já sabemos, aparece no Século XIX, para poder lutar em prol dos direitos dos trabalhadores. No texto de Durkheim, de 1906, “Internationalisme et lutte de classes” , “l’antipatriotisme est nécessaire a la lutte des classes…n’est que la conséquence particulière d’une idée plus générale, de l’idée que la société ne pourrait se reconstituer que par la destruction des nations actuelles : la société actuelle forme deus blocs, il faut que l’un détruise l’autre. C’est là une forme relativement récente du socialisme…D’abord, on a dit que c’était l’avènement de la grande industrie qui condamnait à une destruction nécessaire des sociétés actuelles. Mais pour cela il faudrait admettre que les sociétés modernes ne contenaient pas normalement dans leurs flancs cette forme économique, qui serait le produit d’une véritable maladie dus corps social. Dans ces cas, il serait légitime de soutenir que nos sociétés réalisent une contradiction, qu’elles ne sauraient par elles-mêmes se mettre en harmonie avec se système industriel qui est étranger a sa nature…l’ouvrier est exclusivement un producteur” Durkheim defende a ideia de igualdade, ideia na qual introduz o conceito de contradição que tinha aprendido de Marcel Mauss e em Leipzig, em 1888, ao ler o livro O Capital de Marx. É necessário dizer, no entanto, que no texto citado, Durkheim lembra que o operário não é apenas um trabalhador, mas também um intelectual que, contudo, é incapaz de sonhar com o futuro, porque o não tem. A ideia de igualdade procurada no conceito de solidariedade, especialmente orgânica, que defende no texto que acabo de comentar, – Lei, Direito, Contrato –, é uma ilusão de Durkheim, causada pelas incidências da guerra que tinha morto o seu filho e os seus discípulos, bem como pelos feitos da Commune de Paris e da guerra Franco-Prusiana, com a rendição de França e a matança dos Comunnards. Durkheim viveu todos estes factos e com muita tristeza, como refere Mauss no Année Sociologique de 1925: In Memoriam, reproduzido nas Oevreus Compléts de Mauss (Vol. III, página 434 e seguintes).
Em 1928, Mauss comenta que estes factos tinham feito de Durkheim um socialista que duvidava imenso das lutas, donde, a sua diferença com Marx, tal e qual Durkheim a exprime, é a análise da luta de classes. “Souffrant intensément des maux qui affligent la société actuelle, il la croit pour cette raison, mauvaise et, pour dire, manquée et il étend naturellement ce jugement à toutes les sociétés qui l’ont immédiatement précédée dans l´histoire, et qui peuvent en être considérées comme l’ébauche. Il souhaiterait les voir toutes radiées de l’histoire…Cette conception trouve précisément…un accueil favorable dans certes milieux révolutionnaires…” . O comentador acrescenta que a ideia é contrária a Marx, por este pensar que o desenvolvimento é a forma superior da História das Sociedades. No entanto, Durkheim diz: “Voyez même l’œuvre la plus forte, la plus systématique, la plus riche en idées qu’ait produit l’Ecole [Socialiste] Le Capital de Marx…” . Estas citações parecem-me necessárias para entendermos dois conceitos: o das ideias do método contraditório usado em Sociologia, e a procura da igualdade em sociedades primitivas e não em sociedades históricas, como Marx fez. A procura da dádiva é a procura de sociedades sem comércio, das quais se encontra… rien! Como vamos tentar apreciar. Até porque, se Marx não soube de Durkheim, o contrário não é o caso.

2.Dádiva,empréstimo,escassez,abundância. Bases da reciprocidade.

Cada palavra do título deste momento do texto é um conceito. Mas conceitos que estão “acasalados”, são um ou dois pares em oposição dialéctica, como vamos analisar. O pensamento dialéctico tem origem nos textos de Friedrich Hegel . E o par que tenho escolhido tem a sua origem na seguinte citação de Hegel: “Todo pensamento lógico verdadeiro ou real tem três aspectos. Em primeiro lugar, o aspecto abstracto ou compreensível. Em segundo lugar, a sua negação dialéctica, que diz o que ele não é. Em, terceiro lugar, o aspecto especulativo que é a compreensão concreta: A é ao mesmo tempo aquilo que não é. Estes três aspectos não constituem os três aspectos da lógica; são, sim, momentos de tudo o que é realidade e verdadeiras lógicas. Fazem parte de qualquer aspecto filosófico. Qualquer conceito é racional, é uma abstracção que se opõe a outra, e é compreendida pela unidade pelo seu oposto. Esta é a definição da dialéctica” .
Marx retoma este conceito e aplica-o à sua análise da história, de forma materialista: vai de imediato à propriedade, às relações entre pessoas, propriedade e salários. “The political State cannot exist without the natural basis of the family and the artificial basis of civil society…human beings is a mass.” Esta crítica de Marx é retirada das obras citadas de Hegel e utilizadas para escrever o seu The Communist Manifesto. É a partir deste texto que Marx expande a sua metodologia materialista dialéctica, ao analisar a correlação propriedade privada/salário/colectivismo de bens e da produção, temida pela classe burguesa do seu tempo. Refere Henry de Saint-Simon, como economista e filósofo socialista francês e as suas teorias colectivas, e como as trocas, ou são privadas, com mais-valia para o proprietário, ou colectivas, com uma repartição igual de recursos entre produtores, todos eles proprietários dos meios de recursos e de bens, resultante desses recursos. Acrescenta que a aristocracia europeia está a tremer e vê com pavor a passagem de bens das mãos privadas, para mãos colectivas, que o Marques de Saint-Simon defende, desde o seu lugar social privilegiado. Saint-Simon fustiga a aristocracia por não se aperceber que a classe burguesa cobiça os seus bens, permitindo o seu levantamento, bem como o empobrecimento das classes operárias. Com base nesta análise, propõe formas económicas de acção em prol dos despojados, referindo, nos seus textos, os factos que permitem entender a necessidade de solidariedade, do colectivismo, bem como os seus contrários: a escassez e o aparecimento da necessidade do empréstimo. Somas crescentes de dinheiro são retiradas dos bancos pelas indústrias, pagas com juros que revertem a favor da burguesia. Estes factos dinamizam e originam um novo comportamento entre os despojados de propriedade: a reciprocidade ou ajuda mútua entre os pobres do operariado francês. Saint-Simon advoga o colectivismo e a solidariedade entre as denominadas massas de produtores empobrecidos, desnecessariamente, pela indústria e pela falta de cuidado do Estado, apesar de Louis XIV ter dito, anos antes,“L’Êtat c’est moi”. E a cabeça do seu neto rolou na guilhotina…
Saint-Simon defende as suas teorias em dois textos, memórias do período e contexto do que viria a ser a análise da dupla por mim referida: dádiva-empréstimo; escassez-abundância É o que Émile Durkheim analisa no seu livro de 1928, publicado e prefaciado por Marcel Mauss . É nesse texto que, quer Mauss, quer Durkheim, estabelecem uma luta para o entendimento do socialismo e da propriedade colectiva, que leva ao estudo da solidariedade em Durkheim e das formas arcaicas de produção em Mauss, por meio do método comparativo de culturas e conceitos: o quê e como, nas etnias, o quê e como, na Europa. Texto no qual Durkheim diz, como já fiz referencia, no número 1 deste Capítulo Segundo, logo de entrada: “Voyez même l’oeuvre la plus forte, la plus systématique, la plus riche en idées qu’ait produit L’Ecole ( [socialiste]): Le Capital de Marx. Donde, dádiva – empréstimo, é a primeira dupla; o par contraditório é escassez -abundância. Contraditório apenas pelo método que uso para os explicar, a lógica de tese, antítese e síntese, que Hegel e Marx e Feurebach definiram. Estes conceitos parecem não estar relacionados e, no entanto, há uma derivação que permite a introdução a um conceito a partir do outro. Isto, por um comentário que Marcel Mauss produz no seu texto de 1923-24 , que trata de um conceito que passou a ser fundamental para a análise antropológica, o da dádiva a par e passo com o comércio. Análise produzida por Durkheim, Mauss e Malinowski, que passo a expor para entender os conceitos-pares, necessários para entender as relações sociais capitalistas desse tempo e de hoje, por meio do método comparativo, e que acaba nos textos de Pierre Bourdieu, referidos no fim destas páginas. Mauss começa por definir a circulação de bens entre grupos sociais, que parecem não ter mercado nem moeda. É o que o autor denomina dádiva e é referido nas formas de Contrato e de Direito, que analisa logo no começo do seu texto: “Na civilização escandinava e em bom número de outras, as trocas fazem-se sob a forma de presentes, em teoria voluntários, na realidade obrigatoriamente dados e retribuídos”. E o debate a que o conceito dá lugar no seu tempo, é logo citado em notas de rodapé. Mas, no texto central, adverte o leitor de que esta pesquisa está dentro de um estudo mais amplo, que tem a ver com o direito contratual e com o sistema de trocas económicas. O estudo de Mauss é uma continuação do que o seu mestre Émile Durkheim tinha feito em 1893 e em 1912, sobre a solidariedade. Mauss refere que a temática da troca-dádiva “é muito complexa por envolver instituições religiosas, jurídicas e morais – e estas políticas e familiares ao mesmo tempo; económicas – e estas supõem formas particulares da produção e do consumo, ou antes, da prestação e da distribuição…” . Por outras palavras, está, não apenas a definir conteúdos, bem como a delimitar a área de estudo que, por ser extremamente “larga” e entrosar muitas matérias, acaba por reduzi-la apenas ao que denomina o carácter “voluntário…, aparentemente livre e gratuito, e todavia forçado e interessado por essa prestações” . É assim que vai, lentamente, entrando na definição do que é a dádiva ou o dom, como denomina este comportamento: “Elas revestiram quase sempre a forma do presente, da prenda oferecida generosamente mesmo quando, nesse gesto que acompanha a transacção, não há senão ficção, formalismo e mentira social, e quando há no fundo, obrigação e interesse económico” . O objectivo do autor é o aprofundamento do conceito da divisão social do trabalho, como diz a seguir, porque procura a regra de direito na qual se pode basear a troca, a dádiva e a obrigação quer de dar, quer de receber, quer ainda, de restituir. E a sua pesquisa vai endereçada para as denominadas sociedades arcaicas ou primitivas. Por outras palavras, experimenta retirar das formas antigas da vida social, uma explicação do que é a preocupação da época: a existência ou não, de solidariedade social: “qual é a regra de direito e de interesse que, nas sociedades de tipo atrasado ou arcaico, faz com que o presente recebido seja obrigatoriamente retribuído? Que força existe na coisa que se dá que faz que o donatário a retribua? E vai analisando o comportamento de várias etnias, especialmente as analisadas por Boas e Malinowski, até concluir que estes tinham definido uma economia natural, sem moeda e sem mercado. Mas o que identifica como economia de troca – dádiva está longe de entrar nos quadros da economia denominada utilitária, que era a teoria económica da sua época, ou da época dentro da qual Durkheim, Mauss, e Malinowski antes de Mauss e Boas desenvolveram os seus trabalhos. Especificamente, Mauss chama a nossa atenção para o facto de Malinowski analisar de forma detalhada no texto de 1922, sobre os Argonautas, a existência de trocas que são ofertas, e ofertas ou dádivas que são comércio. De facto, Malinowski categoriza as trocas até atribuir a classificação de intercâmbio ou comércio a várias delas . A ideia para a qual Mauss chama a nossa atenção é a da página 195, da versão castelhana: “Es fácil ver que casi todas las categorías de regalos que yo he clasificado según principios económicos, se basan también en relaciones sociológicas.” . E é Maurice Godelier que chama a nossa atenção para o facto de Mauss ter entrado numa espécie de enigma, ao falar que existe a obrigação de doar, aceitar, e retribuir a mesma coisa doada, quando diz “…Avec les sociétés capitalistes modernes nous sommes ao pôle opposé des sociétés que Mauss analyse dans son Essai sur le don. On peut dire sens forcer que nos sociétés sont marquées en profondeur par « une économie et une morale de marché et de profit » et qu’à l’opposé les sociétés qui figurent dans L’Essai sur le don apparaissaient à Mauss comme profondément marquées par une « économie et une morale du don » . Cela ne veut pas dire que les sociétés caractérisées par le don ignoraient les échanges marchands, ni que les sociétés marchandes d’aujourd’hui ont cessé de pratiquer le don. Le problème est de voir dans chaque cas quel le principe domine l’autre dans la société et pourquoi” . Como é habitual, Godelier está a analisar o pensamento de Mauss a partir da lógica contraditória do materialismo histórico. O mesmo que usa Mauss para analisar as sociedades denominadas primitivas ou arcaicas, que o próprio diz ser uma Arqueologia de ideias, esta procura de uma explicação das formas de mercado, antes de existir uma teoria ocidental da economia. E acaba por sintetizar toda a sua análise sob o título convincente de Sociologia Económica, na qual diz directamente: “a noção de valor funciona nestas sociedades; excedentes muito elevados, de uma maneira geral, são acumulados; frequentemente são gastos inutilmente, com um luxo enorme e que nada tem de mercantil; há marcas de riqueza, espécies de moedas, que são trocadas. Mas, toda esta economia, riquíssima, está ainda impregnada de elementos religiosos: a moeda ainda tem o seu poder mágico e ainda está ligada ao clã ou ao indivíduo….” .

Este argumento é o que tenho usado no meu texto referido de 2002 A economia deriva da religião. Aliás, não sou apenas eu a ter este tipo de hipótese. Se repararmos na análise de Marx, vamos encontrar na sua epistemologia ideias que derivam da reciprocidade. A primeira ideia a reter em Marx, é a de racionalidade. Tudo começa, quando Marx critica David Ricardo, na sua formulação da sua teoria do valor, na base do tempo necessário de um indivíduo para produzir um bem, por não especificar o que fazer, depois de esse bem ter sido fabricado . O tempo é para o operário, ou para o empresário? Ricardo critica Adam Smith na sua ideia do valor – trabalho, e Marx critica Ricardo porque, ao experimentar defender os operários, Ricardo cria com o seu conceito de valor, uma desigualdade: o tempo que resta na fábrica é mais-valia ou lucro puro, apropriado pelo proprietário . É a noção de valor de uso e valor de câmbio: todo o ser humano precisa de apenas poucas horas diárias de trabalho para satisfazer as suas necessidades básicas, como comer, agasalhar-se, etc. E que as horas a mais que um ser humano trabalha, constituem a mais-valia que lhe é retirada pelo proprietário da fábrica ou indústria ou artesanato onde trabalha. Aliás, o capital acumulado pelos proprietários acaba por ser uma relação social, que hierarquiza seres humanos entre os que podem mandar por terem posses e bens, e outros que têm apenas a sua capacidade de trabalhar que é vendida aos proprietários de bens produtivos, passando assim, a serem uma mercadoria. Conceito de mercadoria que define para pessoas e coisas que são trocadas no mercado.
O que procurava Marcel Mauss, bem como Malinowski, era o que não é utilitário nas transacções entre os seres humanos. E a descoberta de Malinowski, que muito fez para distinguir entre comércio e dádiva, era que toda a reciprocidade envolvia uma dádiva de troca, por outras palavras, de mercadoria. E mercadoria é definida como conceito por Marx, da seguinte forma: “The wealth of those societies in which the capitalist mode of production prevails itself as “an immense accumulation of commodities” its unit being a single commodity” . É preciso deixar ou definir de imediato o conceito de capital usado por Marx, que, no seu Foundations of the critique of Political Economy, ou Grundisse, texto escrito ao longo de 1864, achado em 1941 e publicado apenas em 1951, diz apenas, que “capitalism, economic system characterized by the private ownership of property and its means of production. Generally the capitalist, or private enterprise, system embodies the concept of individual initiative, competition, supply and demand, and the profit motive” . Nenhuma destas características são encontradas na análise feita por Mauss ou por Malinowski, entre povos que experimentam remediar a escassez com a dádiva ou reciprocidade. A “abundância” dos grupos de trabalho acaba por ser a união que existe entre todos eles, que trabalham ao longo de laços de parentesco e de hierarquia. O próprio Godelier, no texto citado, diz: “Pour expliquer pourquoi on donne, Mauss avançait une hypothèse un peu moins “spirituelle”, et ce qui est explicite dans ses analyses du potlatch. C’est l’hypothèse que ce qui oblige à donner est précisément que donner oblige. Donner, c’est transférer volontairement quelque chose qui vous appartient á quelqu’un dont on pense qu’il ne peut pas l’accepter. Le donateur peut être un groupe, ou un individu, qui agit seul ou au nom d’un groupe. De même, le donataire peut être un individu, ou un groupe, ou une personne qui reçoit le don au nom du groupe qu’il représente…Donner semble instituer un double rapport entre celui qui donne et celui qui reçoit. Un rapport de solidarité, puisque celui qui donne partage ce qu’il a, voir c’est qu’il est, avec celui á qu’il donne, et un rapport de supériorité, puisque celui qui reçoit le don et l’accepte se met en dette vis-á-vis de celui qui lui a donné” . Em conjunto com a citação anterior, o tipo de sistema definidor da relação depende de se saber se a troca é de mercadoria ou de dádiva. Dentro da mesma sociedade, pode haver os dois tipos de troca. Já assim estava classificado por Malinowski e por Mauss, nos parágrafos citados.

Se a relação é entre uma pessoa que é proprietária dos meios de produção e outra que não tem mais do que a sua habilidade e capacidade de trabalho, a relação para quem entrega força de trabalho e recebe um salário é de inferioridade, não é de abundância, é de escassez. Se da outra parte há um indivíduo que é proprietário dos bens reprodutivos, a relação é de superioridade e de obtenção de lucro. O lucro é a mercadoria que se adquire pela capacidade de possuir propriedade dos meios de produção e fixar as normas e leis por meios das quais estes meios serão usados. O proprietário não oferece, não doa, arrenda ou possui a força de trabalho e a capacidade de produção dos que não têm outro bem que a sua força de trabalho e a da sua família. Entre os grupos denominados arcaicos, primitivos ou anteriores a nós, esses que Guideri denomina de forma enganada, “fora da História” , a relação é de solidariedade ou dádiva enquanto não houver uma relação de interesse ou subordinação entre o doador e quem recebe. A relação pode ser de cima para baixo, hierárquica, mas se é a maneira de subsistir dessa hierarquia, como acontece com a circulação de bens entre os Quechua – os antigos Inca –, ou entre os Picunche, ou entre os Baruya como Godelier analisa em duas das suas obras, então a relação poderia ser de dádiva, como se pretende que Mauss tenha definido. A abundância e a escassez são auxiliadas entre grupos sociais que têm apenas a solidariedade orgânica para se defenderem, da forma que Émile Durkheim definia no seu texto invocado de 1893, dedicado às formas de divisão social do trabalho, em que Smith se baseara para entender a produção.
A relação de oferta e procura é uma relação mercantil ou de comércio que, às tantas, pode estar dentro das relações de dádiva, como o próprio Malinowski explica. Há relações empreendidas ou tratadas no Kula que passam a ser de comércio, quando se cria uma relação de subordinação, pela qual quem recebe deve trabalhar para quem oferece. O que resulta mais evidente quando as sociedades usam a moeda, o papel-moeda e o crédito, para as suas relações de interacção. A moeda acaba por ser uma mercadoria, da forma que Marx define nas obras citadas. Mercadoria que começa quando as relações sociais mudam da pessoa para as entidades que emitem mercadoria moeda. O trabalho é aí uma relação de uso para o operário, enquanto é de troca dentro do mercado que procura trabalho.
Era possível pensar que os grupos arcaicos ou primitivos estão a dar mais-valia aos grupos que colonizaram as suas terras. Mas, aí, é preciso distinguir entre a relação do grupo dominado com o dominador, e a relação dentro de cada um de esses grupos. Dádiva e exploração podem acontecer ao mesmo tempo, entre indivíduos não autónomos e proprietários autónomos. O que faz a autonomia de um ser humano é a posse ou desaparição do seu produto. O que caracteriza uma relação de escassez é a alienação do produto, esse conceito cunhado por Feurebach em 1841 e que Marx e outros autores viriam a usar mais tarde, ao definirem a relação entre o produtor e a sua obra. A História mostra que o ser humano, em grupo ou individualmente, é capaz de produzir um bem, seja para consumo próprio ou para a troca, decidida conforme as formas do costume dentro do seu povo ou a sua cultura. A alienação do produto acontece de duas maneiras: o produtor não apenas fica sem a obra feita ou sem saber o seu destino, bem como a remuneração do trabalho é mais baixa do que o preço que a sua obra adquire, como bem, no mercado. Aliás, o produtor perde a habilidade de entender as relações de mercado, de oferta e procura, bem como a de organizar um sistema produtivo, do qual ele é apenas uma parte.
Diferente é o que acontece entre as relações de dádiva. A divisão do trabalho é organizada na base da hierarquia, da estrutura de clã, do parentesco e das trocas efectivadas entre grupos que recebem pessoas e bens e grupos que doam pessoas e bens. Para entender as formas de troca – dádiva ou mercadorias –, é preciso conhecer as linhas orientadoras do grupo. Não é em vão que Durkheim distingue entre solidariedade orgânica e mecânica. A primeira, ajusta-se ao direito normalmente definido nos grupos do capital, pela parte que domina, enquanto que a segunda, consiste apenas nas relações de parentesco e chefia, incrustadas nos mitos e ritos, que definem a dádiva, a escassez, a abundância e a reciprocidade para ultrapassar os momentos históricos de déficit alimentar, de produção e de reprodução. É o que Bourdieu denomina o habitus, essas relações de dádiva, ou de salários, capital social, que começa na literacia.

3. Reciprocidade Comercial.

A análise da troca-dádiva, quando tentamos entender o conceito de reciprocidade na base das etnografias usadas pelo autor, não passa de uma desculpa para entender e dar a entender que não há reciprocidade gratuita na sua sociedade. Não é em vão que Mauss afirma que o Estado Francês não premeia nem recompensa, de forma igualitária, os trabalhadores. Nem é em vão que define toda uma Sociologia Económica, uma análise do real na base das relações de mercadoria. Essas que, conforme o próprio Durkheim diz , classificam e hierarquizam os seres humanos entre operários, iguais entre eles, e proprietários, hierarquicamente por cima do operariado. Um facto que é base da teoria de Merton e Parsons , autores que continuam a Sociologia Económica de Marcel Mauss, Maurice Halbawchs, Paul Lapie e outros membros da equipa de Durkheim de L’Année Sociologique.
O problema de a reciprocidade ser um conceito que refere formas contratuais de circulação de bens equivalentes, fica para mim, esclarecido. Mas o assunto que queria tratar, é o de termos usado a reciprocidade como conceito que tudo encobre e nada explica. Temos utilizado o conceito como norma, como acção e como definidor de acções. Usamos reciprocidade cada vez que falamos de ajuda mútua ou troca de trabalho. Foi na minha própria pesquisa da Galiza nos anos 60,70 e 90 do Século XX, que referi o conceito como forma gratuita. Não tinha reparado que esta troca de ajuda familiar é uma forma de economia que substitui os investimentos de capital. Ou, por outro lado, que a força de trabalho investida, é o capital que usa o ser humano que não tem ou não possui a parte essencial do capital: moeda para investir e criar mais moeda, a fórmula usada por Marx nos seus textos de Surplus Value ou Mais-Valia, já referidos e que serão objecto de análise no capítulo seguinte. A mais-valia do pobre, como referi no meu texto de 1988 , é a maximização dos seus recursos. A ideia não é minha, deriva da análise de Marx e os seus conceitos de valor de uso e valor do câmbio , donde a produção de valores de uso, é subordinada à produção de valores de câmbio. Esta ideia é fundamental para entender a movimentação da produção e para entender que a reciprocidade é um conceito económico da Sociologia, transferido para a Antropologia e usado para entender grupos sociais de outras culturas. Outras culturas, ou Outros como nós denominamos, que trabalham, produzem e reproduzem de forma diferente da nossa forma de fazer economia. Ou, pelo menos, isso é o que parece. Mas, esse tipo de análise leva a esquecer o que eu tinha já advertido na Galiza: a única forma de responder ao mercado do capital, é o uso de formas, ditas antigas, primitivas ou arcaicas, pelos autores usados neste e em outros textos. O capital é uma relação social que arrebita e mantém vivas, as maneiras mais “saloias” ou, como diriam os Galegos, mais “enxebres”, mais castizas, mais costumeiras, de trabalhar. É verdade o que diz Karl Polanyi : “los dos últimos siglos han producido en Europa Occidental y Norte América, una organización del modo de vida humano a la que resultaron especialmente aplicables las reglas de optar. Esta forma de economía consistió en un sistema de mercados creadores de precios. Como los actos de intercambio, tal como se practican bajo un sistema de estas características, implican a los participantes en opciones inducidas por una insuficiencia de medios, el sistema productivo pudo ser reducido a un modelo que se prestó a la aplicación de métodos basados en el significado formal de lo económico” . Por outras palavras, a aplicação das formas teóricas da Economia Política, tal e qual Durkheim tinha já alertado, eram uma necessidade para entender a produção entre grupos sociais que, aparentemente, estavam a realizar actividades muito distantes da denominada teoria económica. Se é bem verdade que Durkheim constrói um argumento contra o Homo Economicus, montado por Adam Smith e John Stuart Mill, na verdade, é esse o saber que funciona, ainda que não se conheça nem o ponto do i. O Homo Economicus criou, na Antropologia, toda uma teoria alternativa que procurou a economia dentro das instituições ou teoria substantiva da economia, à qual aderiram muitos autores, entre os quais o próprio Malinowski que, sem dar por isso, criou a teoria formal, dentro da qual não tinha cabimento a análise do parentesco e da vizinhança. Este é o motivo que o levou a mudar para a Psicologia. Marcel Mauss soube reconhecer, embora não tenha sido explícito na sua formulação da Sociologia Económica, que a troca-dádiva era apenas defesa face à falta de meios para optar. Porque a teoria económica ocidental, tem por fundamento a ideia de todos saberem preços, valores das mercadorias, montante dos investimentos, quantidade de lucro a obter pela aplicação de uma importância que, normalmente, um assalariado não imagina. Do que se trata, normalmente, é de assegurar que ninguém saiba teoria económica, para evitar a concorrência que possa prejudicar um investidor que organiza a sua empresa para lucrar.
A teoria à qual Durkheim aderiu e que tinha sido elaborada por Karl Marx, era: “A chacun selon ses oeuvres” ou “A chacun selon son mérite” . A procura de igualdade estava na base do conceito de troca-dádiva, bem como no de solidariedade, especificamente na mecânica. Mas a História tem provado a falácia filosófica do conceito ou das frases. Porque a obra procurada, é a capacidade de optar entre bens mais baratos para investir e vender mais caro os produtos requeridos. Esta ideia de Adam Smith, Bentham, Mill e outros liberais, tem levado ao engano todos os teóricos da ideia substantiva da Economia. Não é em vão que Edmund Leach escreve em desafio aos estudantes do primeiro ano do curso de Antropologia de Cambridge, para descobrirem, se puderem, quem não é racionalista e é orientado pelas suas emoções no seu comportamento económico . A ideia de optar, uma realidade no mundo dentro do qual vivemos, acaba por ser um factor real na vida social. E, ainda que Durkheim, no seu Le suicide. Etude sociologique não consiga ver que o suicídio anômico tem por causa a falta de meios e ideias para optar, a opção ou falta dela, faz do indivíduo um pária do seu grupo social, ou um incompetente, ou “excluído”, o conceito de hoje.
Eu próprio, no meu regresso à Galiza em 1997, tive a infelicidade de constatar, não apenas a falta de colaboração ou entre – ajuda familiar, bem como a morte de seis adultos e dois jovens, os filhos de dois suicidas, que morreram por não saber o que fazer perante as mudanças que o Governo da União Europeia tinha introduzido no seu país: de valores de uso, passou-se rapidamente a organizar valores de troca .
Aliás, a maior parte dos economistas, dos sociólogos ou dos antropólogos, têm-se virado para a teoria formal da economia, especialmente por causa da teoria da globalização, na qual todos os Outros parecem andar envolvidos. O próprio Raymond Firth, que em 1929 fez uma tese de Antropologia Económica , baseada nas ideias de Karl Marx, muda de análise para os símbolos e para a teoria formal, nas obras a seguir. Marcel Mauss descobriu que a dádiva era comercial e organizou a Sociologia Económica. Durkheim, esse, ficou apenas lembrado pelas suas ideias de solidariedade.
em lucro para o proprietário dos meios de produção. Mercadoria é todo o bem que é trocado por moeda ou transferido a outro, por contrato ou pagamento. Ou, mercadoria é a capacidade que tem um indivíduo para fabricar bens dos quais vive, pelo que Marx denominou a força de trabalho das pessoas não possuidoras de meios técnicos ou propriedades, como mercadoria . O conceito de mercadoria é revelador da impossível igualdade, como foi referido no Capítulo I. Mercadoria é entendida como o valor retirado do trabalho operário, quando Marx fala de valor de uso e valor de câmbio. Valor de uso tem todo o bem fabricado com o objectivo de ficar dentro de casa e ser partilhado pela família e consumido pelos fabricantes. É característico da alienação, ou valor de câmbio ou de troca, retirar não apenas o bem, que passa a pertencer ao proprietário dos meios de produção, da indústria, voir, da actividade do operário e do seu horário de trabalho e da sua propriedade, um bem transformado que, ainda que produzido pela pessoa, é propriedade não do artesão, mas do proprietário do capital investido para possibilitar o fabrico.
Foi o problema colocado perante o entendimento de Émile Durkheim e da sua equipa, especialmente de Marcel Mauss. A ideia é simples. A tese que eles encontram na sociedade em que moram e da qual fazem parte, é a de uma sociedade de trabalho alienado, baseada numa relação social presidida pelo capital, pelos investidores . Durkheim acrescenta ao que Marx tinha definido, a ideia de que a troca ou câmbio desiguais de bens, são socialmente disjuntivas, ou, por outras palavras, desmembram a vida social e do grupo social, ao introduzir valores disjuntivos da interacção social, usados pelos grupos para a sua coesão e para a sua acção pragmática. Por esta realidade, Durkheim escreve De la division du travail social e defende a antítese de que há solidariedade orgânica ou de direito nas sociedades ocidentais que devem dar protecção ao operariado. Era o dilema de Durkheim: socialismo ou sociologia? Dilema retomado por Marcel Mauss, que procura uma síntese para as duas teses: capital versus produção não remunerada. Começa por procurar antecedentes numa ideia que nasce ao rever as etnografias de Franz Boas e Bronislaw Malinowski, por ele citadas em L’essai sur le don, já livro em 1956 .
O objectivo de Mauss é simples: retirar da etnografia as actividades que existem nas sociedades denominadas arcaicas ou primitivas, nas que parece não haver troca de bens em dinheiro, quando se pergunta qual é a norma de direito que orienta as trocas e o intercâmbio em sociedades que aparentemente, não têm lei nem códigos. Que, como bem sabemos, são sociedades sem escrita, de costume ou costumeiras. Para entender esta noção de valor social disjuntivo, começa por comparar o Direito mais antigo da Europa, o Escandinavo, e acaba por explicar que entre grupos sociais como os Kwakiutl do Canadá e os Kiriwina da Melanésia, existe uma relação ritual de troca de bens e pessoas, que Mauss denomina facto social total, no qual existem três actividades que analisa: doar, aceitar e retribuir. Estes três actos rituais seriam entendidos, mais tarde, como o único conceito de reciprocidade, do qual Mauss teria falado.
Conceito usado por Malinowski com a palavra Massim de mana ou o espírito ou magia das coisas que explicam a troca, câmbio, intercâmbio e permuta, que, mais tarde, é reconvertida ao conceito de reciprocidade pelo comércio que Malinowski descobre na acção ritual da troca económica, o que provoca cem furiosas páginas no seu texto, em que sustenta que não há outra troca, câmbio, intercâmbio ou permuta, que não seja comercial. É a partir destas dúvidas que Mauss faz uma análise sobre o conceito de dádiva ou dom, ideia, norma ou conceito, usado na Antropologia para explicar toda a movimentação de pessoas e de bens, como se fora uma ideia romântica.

O meu desejo era ir directamente à etnografia. Mas, no início deste capítulo, falei de tese, antítese e síntese, conceitos que estimo devam ser explicados, para falarmos da reciprocidade comercial ou interacção dita recíproca nas relações sociais, presididas pelo comportamento denominado capital. Comportamento que produz escassez dentro das sociedades, pela alienação dos bens, que são retirados para alimentar a abundância de outros membros do grupo social. Essas relações que Émile Durkheim denominou de, como eu percebo, valores sociais disjuntivos da interacção social dos indivíduos em grupos. Porque, há os muito ricos, por reterem lucro da mais valia retirada da força de trabalho dos que nada têm e os muito pobres, que apenas têm a sua força de trabalho para vender ou alienar, denominados proletários: possuem só a prole, ou família consanguínea, para ganhar a vida económica.
Definido por Marx, este conceito é defendido por Durkheim e Mauss, na base da ideia dos operários não serem iguais às pessoas de posse, ainda que por cultura e lei devessem ser, o que faz destes contratos actos ilícitos e juridicamente inválidos. Faço especial referência ao debate de Durkheim, de 1908, “Débat sur l´ économie politique et les sciences sociales” , no qual defende os factos económicos como base da análise da sociedade: “l’économie politique occupe, dans l’ensemble des sciences sociologiques, une situation particulière. Elle est la seule des ces sciences qui soit actuellment constituée comme un ensemble systématisé, la seule que dispose d’un stock sufficient d’observations pour permettre la constructions de lois…C’est elle qui doit servir de foyer et en quelque sort de mère pour les autres sciences sociologiques… [por causa de]. D’autres lois économiques qui interviennent sont la loi d l’offre et la demande, la loi du capital” . Bem sabemos que Émile Durkheim criticou duramente a individualidade da oferta e da procura, e debateu contra Adam Smith, na base dos textos de Karl Marx, da sua própria pesquisa, e das ideias de Tönnies, no seu texto de 1893, De la division du travail social. Durkheim e Mauss experimentaram dinamizar a Sociologia, para procurar a igualdade das pessoas em grupo. O seu objectivo era organizar uma sociedade dentro do novo conceito de socialismo, que, como já sabemos, aparece no Século XIX, para poder lutar em prol dos direitos dos trabalhadores. No texto de Durkheim, de 1906, “Internationalisme et lutte de classes” , “l’antipatriotisme est nécessaire a la lutte des classes…n’est que la conséquence particulière d’une idée plus générale, de l’idée que la société ne pourrait se reconstituer que par la destruction des nations actuelles : la société actuelle forme deus blocs, il faut que l’un détruise l’autre. C’est là une forme relativement récente du socialisme…D’abord, on a dit que c’était l’avènement de la grande industrie qui condamnait à une destruction nécessaire des sociétés actuelles. Mais pour cela il faudrait admettre que les sociétés modernes ne contenaient pas normalement dans leurs flancs cette forme économique, qui serait le produit d’une véritable maladie dus corps social. Dans ces cas, il serait légitime de soutenir que nos sociétés réalisent une contradiction, qu’elles ne sauraient par elles-mêmes se mettre en harmonie avec se système industriel qui est étranger a sa nature…l’ouvrier est exclusivement un producteur” Durkheim defende a ideia de igualdade, ideia na qual introduz o conceito de contradição que tinha aprendido de Marcel Mauss e em Leipzig, em 1888, ao ler o livro O Capital de Marx. É necessário dizer, no entanto, que no texto citado, Durkheim lembra que o operário não é apenas um trabalhador, mas também um intelectual que, contudo, é incapaz de sonhar com o futuro, porque o não tem. A ideia de igualdade procurada no conceito de solidariedade, especialmente orgânica, que defende no texto que acabo de comentar, – Lei, Direito, Contrato –, é uma ilusão de Durkheim, causada pelas incidências da guerra que tinha morto o seu filho e os seus discípulos, bem como pelos feitos da Commune de Paris e da guerra Franco-Prusiana, com a rendição de França e a matança dos Comunnards. Durkheim viveu todos estes factos e com muita tristeza, como refere Mauss no Année Sociologique de 1925: In Memoriam, reproduzido nas Oevreus Compléts de Mauss (Vol. III, página 434 e seguintes).
Em 1928, Mauss comenta que estes factos tinham feito de Durkheim um socialista que duvidava imenso das lutas, donde, a sua diferença com Marx, tal e qual Durkheim a exprime, é a análise da luta de classes. “Souffrant intensément des maux qui affligent la société actuelle, il la croit pour cette raison, mauvaise et, pour dire, manquée et il étend naturellement ce jugement à toutes les sociétés qui l’ont immédiatement précédée dans l´histoire, et qui peuvent en être considérées comme l’ébauche. Il souhaiterait les voir toutes radiées de l’histoire…Cette conception trouve précisément…un accueil favorable dans certes milieux révolutionnaires…” . O comentador acrescenta que a ideia é contrária a Marx, por este pensar que o desenvolvimento é a forma superior da História das Sociedades. No entanto, Durkheim diz: “Voyez même l’œuvre la plus forte, la plus systématique, la plus riche en idées qu’ait produit l’Ecole [Socialiste] Le Capital de Marx…” . Estas citações parecem-me necessárias para entendermos dois conceitos: o das ideias do método contraditório usado em Sociologia, e a procura da igualdade em sociedades primitivas e não em sociedades históricas, como Marx fez. A procura da dádiva é a procura de sociedades sem comércio, das quais se encontra… rien! Como vamos tentar apreciar. Até porque, se Marx não soube de Durkheim, o contrário não é o caso.

2.Dádiva,empréstimo,escassez,abundância. Bases da reciprocidade.

Cada palavra do título deste momento do texto é um conceito. Mas conceitos que estão “acasalados”, são um ou dois pares em oposição dialéctica, como vamos analisar. O pensamento dialéctico tem origem nos textos de Friedrich Hegel . E o par que tenho escolhido tem a sua origem na seguinte citação de Hegel: “Todo pensamento lógico verdadeiro ou real tem três aspectos. Em primeiro lugar, o aspecto abstracto ou compreensível. Em segundo lugar, a sua negação dialéctica, que diz o que ele não é. Em, terceiro lugar, o aspecto especulativo que é a compreensão concreta: A é ao mesmo tempo aquilo que não é. Estes três aspectos não constituem os três aspectos da lógica; são, sim, momentos de tudo o que é realidade e verdadeiras lógicas. Fazem parte de qualquer aspecto filosófico. Qualquer conceito é racional, é uma abstracção que se opõe a outra, e é compreendida pela unidade pelo seu oposto. Esta é a definição da dialéctica” .
Marx retoma este conceito e aplica-o à sua análise da história, de forma materialista: vai de imediato à propriedade, às relações entre pessoas, propriedade e salários. “The political State cannot exist without the natural basis of the family and the artificial basis of civil society…human beings is a mass.” Esta crítica de Marx é retirada das obras citadas de Hegel e utilizadas para escrever o seu The Communist Manifesto. É a partir deste texto que Marx expande a sua metodologia materialista dialéctica, ao analisar a correlação propriedade privada/salário/colectivismo de bens e da produção, temida pela classe burguesa do seu tempo. Refere Henry de Saint-Simon, como economista e filósofo socialista francês e as suas teorias colectivas, e como as trocas, ou são privadas, com mais-valia para o proprietário, ou colectivas, com uma repartição igual de recursos entre produtores, todos eles proprietários dos meios de recursos e de bens, resultante desses recursos. Acrescenta que a aristocracia europeia está a tremer e vê com pavor a passagem de bens das mãos privadas, para mãos colectivas, que o Marques de Saint-Simon defende, desde o seu lugar social privilegiado. Saint-Simon fustiga a aristocracia por não se aperceber que a classe burguesa cobiça os seus bens, permitindo o seu levantamento, bem como o empobrecimento das classes operárias. Com base nesta análise, propõe formas económicas de acção em prol dos despojados, referindo, nos seus textos, os factos que permitem entender a necessidade de solidariedade, do colectivismo, bem como os seus contrários: a escassez e o aparecimento da necessidade do empréstimo. Somas crescentes de dinheiro são retiradas dos bancos pelas indústrias, pagas com juros que revertem a favor da burguesia. Estes factos dinamizam e originam um novo comportamento entre os despojados de propriedade: a reciprocidade ou ajuda mútua entre os pobres do operariado francês. Saint-Simon advoga o colectivismo e a solidariedade entre as denominadas massas de produtores empobrecidos, desnecessariamente, pela indústria e pela falta de cuidado do Estado, apesar de Louis XIV ter dito, anos antes,“L’Êtat c’est moi”. E a cabeça do seu neto rolou na guilhotina…
Saint-Simon defende as suas teorias em dois textos, memórias do período e contexto do que viria a ser a análise da dupla por mim referida: dádiva-empréstimo; escassez-abundância É o que Émile Durkheim analisa no seu livro de 1928, publicado e prefaciado por Marcel Mauss . É nesse texto que, quer Mauss, quer Durkheim, estabelecem uma luta para o entendimento do socialismo e da propriedade colectiva, que leva ao estudo da solidariedade em Durkheim e das formas arcaicas de produção em Mauss, por meio do método comparativo de culturas e conceitos: o quê e como, nas etnias, o quê e como, na Europa. Texto no qual Durkheim diz, como já fiz referencia, no número 1 deste Capítulo Segundo, logo de entrada: “Voyez même l’oeuvre la plus forte, la plus systématique, la plus riche en idées qu’ait produit L’Ecole ( [socialiste]): Le Capital de Marx. Donde, dádiva – empréstimo, é a primeira dupla; o par contraditório é escassez -abundância. Contraditório apenas pelo método que uso para os explicar, a lógica de tese, antítese e síntese, que Hegel e Marx e Feurebach definiram. Estes conceitos parecem não estar relacionados e, no entanto, há uma derivação que permite a introdução a um conceito a partir do outro. Isto, por um comentário que Marcel Mauss produz no seu texto de 1923-24 , que trata de um conceito que passou a ser fundamental para a análise antropológica, o da dádiva a par e passo com o comércio. Análise produzida por Durkheim, Mauss e Malinowski, que passo a expor para entender os conceitos-pares, necessários para entender as relações sociais capitalistas desse tempo e de hoje, por meio do método comparativo, e que acaba nos textos de Pierre Bourdieu, referidos no fim destas páginas. Mauss começa por definir a circulação de bens entre grupos sociais, que parecem não ter mercado nem moeda. É o que o autor denomina dádiva e é referido nas formas de Contrato e de Direito, que analisa logo no começo do seu texto: “Na civilização escandinava e em bom número de outras, as trocas fazem-se sob a forma de presentes, em teoria voluntários, na realidade obrigatoriamente dados e retribuídos”. E o debate a que o conceito dá lugar no seu tempo, é logo citado em notas de rodapé. Mas, no texto central, adverte o leitor de que esta pesquisa está dentro de um estudo mais amplo, que tem a ver com o direito contratual e com o sistema de trocas económicas. O estudo de Mauss é uma continuação do que o seu mestre Émile Durkheim tinha feito em 1893 e em 1912, sobre a solidariedade. Mauss refere que a temática da troca-dádiva “é muito complexa por envolver instituições religiosas, jurídicas e morais – e estas políticas e familiares ao mesmo tempo; económicas – e estas supõem formas particulares da produção e do consumo, ou antes, da prestação e da distribuição…” . Por outras palavras, está, não apenas a definir conteúdos, bem como a delimitar a área de estudo que, por ser extremamente “larga” e entrosar muitas matérias, acaba por reduzi-la apenas ao que denomina o carácter “voluntário…, aparentemente livre e gratuito, e todavia forçado e interessado por essa prestações” . É assim que vai, lentamente, entrando na definição do que é a dádiva ou o dom, como denomina este comportamento: “Elas revestiram quase sempre a forma do presente, da prenda oferecida generosamente mesmo quando, nesse gesto que acompanha a transacção, não há senão ficção, formalismo e mentira social, e quando há no fundo, obrigação e interesse económico” . O objectivo do autor é o aprofundamento do conceito da divisão social do trabalho, como diz a seguir, porque procura a regra de direito na qual se pode basear a troca, a dádiva e a obrigação quer de dar, quer de receber, quer ainda, de restituir. E a sua pesquisa vai endereçada para as denominadas sociedades arcaicas ou primitivas. Por outras palavras, experimenta retirar das formas antigas da vida social, uma explicação do que é a preocupação da época: a existência ou não, de solidariedade social: “qual é a regra de direito e de interesse que, nas sociedades de tipo atrasado ou arcaico, faz com que o presente recebido seja obrigatoriamente retribuído? Que força existe na coisa que se dá que faz que o donatário a retribua? E vai analisando o comportamento de várias etnias, especialmente as analisadas por Boas e Malinowski, até concluir que estes tinham definido uma economia natural, sem moeda e sem mercado. Mas o que identifica como economia de troca – dádiva está longe de entrar nos quadros da economia denominada utilitária, que era a teoria económica da sua época, ou da época dentro da qual Durkheim, Mauss, e Malinowski antes de Mauss e Boas desenvolveram os seus trabalhos. Especificamente, Mauss chama a nossa atenção para o facto de Malinowski analisar de forma detalhada no texto de 1922, sobre os Argonautas, a existência de trocas que são ofertas, e ofertas ou dádivas que são comércio. De facto, Malinowski categoriza as trocas até atribuir a classificação de intercâmbio ou comércio a várias delas . A ideia para a qual Mauss chama a nossa atenção é a da página 195, da versão castelhana: “Es fácil ver que casi todas las categorías de regalos que yo he clasificado según principios económicos, se basan también en relaciones sociológicas.” . E é Maurice Godelier que chama a nossa atenção para o facto de Mauss ter entrado numa espécie de enigma, ao falar que existe a obrigação de doar, aceitar, e retribuir a mesma coisa doada, quando diz “…Avec les sociétés capitalistes modernes nous sommes ao pôle opposé des sociétés que Mauss analyse dans son Essai sur le don. On peut dire sens forcer que nos sociétés sont marquées en profondeur par « une économie et une morale de marché et de profit » et qu’à l’opposé les sociétés qui figurent dans L’Essai sur le don apparaissaient à Mauss comme profondément marquées par une « économie et une morale du don » . Cela ne veut pas dire que les sociétés caractérisées par le don ignoraient les échanges marchands, ni que les sociétés marchandes d’aujourd’hui ont cessé de pratiquer le don. Le problème est de voir dans chaque cas quel le principe domine l’autre dans la société et pourquoi” . Como é habitual, Godelier está a analisar o pensamento de Mauss a partir da lógica contraditória do materialismo histórico. O mesmo que usa Mauss para analisar as sociedades denominadas primitivas ou arcaicas, que o próprio diz ser uma Arqueologia de ideias, esta procura de uma explicação das formas de mercado, antes de existir uma teoria ocidental da economia. E acaba por sintetizar toda a sua análise sob o título convincente de Sociologia Económica, na qual diz directamente: “a noção de valor funciona nestas sociedades; excedentes muito elevados, de uma maneira geral, são acumulados; frequentemente são gastos inutilmente, com um luxo enorme e que nada tem de mercantil; há marcas de riqueza, espécies de moedas, que são trocadas. Mas, toda esta economia, riquíssima, está ainda impregnada de elementos religiosos: a moeda ainda tem o seu poder mágico e ainda está ligada ao clã ou ao indivíduo….” .

Este argumento é o que tenho usado no meu texto referido de 2002 A economia deriva da religião. Aliás, não sou apenas eu a ter este tipo de hipótese. Se repararmos na análise de Marx, vamos encontrar na sua epistemologia ideias que derivam da reciprocidade. A primeira ideia a reter em Marx, é a de racionalidade. Tudo começa, quando Marx critica David Ricardo, na sua formulação da sua teoria do valor, na base do tempo necessário de um indivíduo para produzir um bem, por não especificar o que fazer, depois de esse bem ter sido fabricado . O tempo é para o operário, ou para o empresário? Ricardo critica Adam Smith na sua ideia do valor – trabalho, e Marx critica Ricardo porque, ao experimentar defender os operários, Ricardo cria com o seu conceito de valor, uma desigualdade: o tempo que resta na fábrica é mais-valia ou lucro puro, apropriado pelo proprietário . É a noção de valor de uso e valor de câmbio: todo o ser humano precisa de apenas poucas horas diárias de trabalho para satisfazer as suas necessidades básicas, como comer, agasalhar-se, etc. E que as horas a mais que um ser humano trabalha, constituem a mais-valia que lhe é retirada pelo proprietário da fábrica ou indústria ou artesanato onde trabalha. Aliás, o capital acumulado pelos proprietários acaba por ser uma relação social, que hierarquiza seres humanos entre os que podem mandar por terem posses e bens, e outros que têm apenas a sua capacidade de trabalhar que é vendida aos proprietários de bens produtivos, passando assim, a serem uma mercadoria. Conceito de mercadoria que define para pessoas e coisas que são trocadas no mercado.
O que procurava Marcel Mauss, bem como Malinowski, era o que não é utilitário nas transacções entre os seres humanos. E a descoberta de Malinowski, que muito fez para distinguir entre comércio e dádiva, era que toda a reciprocidade envolvia uma dádiva de troca, por outras palavras, de mercadoria. E mercadoria é definida como conceito por Marx, da seguinte forma: “The wealth of those societies in which the capitalist mode of production prevails itself as “an immense accumulation of commodities” its unit being a single commodity” . É preciso deixar ou definir de imediato o conceito de capital usado por Marx, que, no seu Foundations of the critique of Political Economy, ou Grundisse, texto escrito ao longo de 1864, achado em 1941 e publicado apenas em 1951, diz apenas, que “capitalism, economic system characterized by the private ownership of property and its means of production. Generally the capitalist, or private enterprise, system embodies the concept of individual initiative, competition, supply and demand, and the profit motive” . Nenhuma destas características são encontradas na análise feita por Mauss ou por Malinowski, entre povos que experimentam remediar a escassez com a dádiva ou reciprocidade. A “abundância” dos grupos de trabalho acaba por ser a união que existe entre todos eles, que trabalham ao longo de laços de parentesco e de hierarquia. O próprio Godelier, no texto citado, diz: “Pour expliquer pourquoi on donne, Mauss avançait une hypothèse un peu moins “spirituelle”, et ce qui est explicite dans ses analyses du potlatch. C’est l’hypothèse que ce qui oblige à donner est précisément que donner oblige. Donner, c’est transférer volontairement quelque chose qui vous appartient á quelqu’un dont on pense qu’il ne peut pas l’accepter. Le donateur peut être un groupe, ou un individu, qui agit seul ou au nom d’un groupe. De même, le donataire peut être un individu, ou un groupe, ou une personne qui reçoit le don au nom du groupe qu’il représente…Donner semble instituer un double rapport entre celui qui donne et celui qui reçoit. Un rapport de solidarité, puisque celui qui donne partage ce qu’il a, voir c’est qu’il est, avec celui á qu’il donne, et un rapport de supériorité, puisque celui qui reçoit le don et l’accepte se met en dette vis-á-vis de celui qui lui a donné” . Em conjunto com a citação anterior, o tipo de sistema definidor da relação depende de se saber se a troca é de mercadoria ou de dádiva. Dentro da mesma sociedade, pode haver os dois tipos de troca. Já assim estava classificado por Malinowski e por Mauss, nos parágrafos citados.

Se a relação é entre uma pessoa que é proprietária dos meios de produção e outra que não tem mais do que a sua habilidade e capacidade de trabalho, a relação para quem entrega força de trabalho e recebe um salário é de inferioridade, não é de abundância, é de escassez. Se da outra parte há um indivíduo que é proprietário dos bens reprodutivos, a relação é de superioridade e de obtenção de lucro. O lucro é a mercadoria que se adquire pela capacidade de possuir propriedade dos meios de produção e fixar as normas e leis por meios das quais estes meios serão usados. O proprietário não oferece, não doa, arrenda ou possui a força de trabalho e a capacidade de produção dos que não têm outro bem que a sua força de trabalho e a da sua família. Entre os grupos denominados arcaicos, primitivos ou anteriores a nós, esses que Guideri denomina de forma enganada, “fora da História” , a relação é de solidariedade ou dádiva enquanto não houver uma relação de interesse ou subordinação entre o doador e quem recebe. A relação pode ser de cima para baixo, hierárquica, mas se é a maneira de subsistir dessa hierarquia, como acontece com a circulação de bens entre os Quechua – os antigos Inca –, ou entre os Picunche, ou entre os Baruya como Godelier analisa em duas das suas obras, então a relação poderia ser de dádiva, como se pretende que Mauss tenha definido. A abundância e a escassez são auxiliadas entre grupos sociais que têm apenas a solidariedade orgânica para se defenderem, da forma que Émile Durkheim definia no seu texto invocado de 1893, dedicado às formas de divisão social do trabalho, em que Smith se baseara para entender a produção.
A relação de oferta e procura é uma relação mercantil ou de comércio que, às tantas, pode estar dentro das relações de dádiva, como o próprio Malinowski explica. Há relações empreendidas ou tratadas no Kula que passam a ser de comércio, quando se cria uma relação de subordinação, pela qual quem recebe deve trabalhar para quem oferece. O que resulta mais evidente quando as sociedades usam a moeda, o papel-moeda e o crédito, para as suas relações de interacção. A moeda acaba por ser uma mercadoria, da forma que Marx define nas obras citadas. Mercadoria que começa quando as relações sociais mudam da pessoa para as entidades que emitem mercadoria moeda. O trabalho é aí uma relação de uso para o operário, enquanto é de troca dentro do mercado que procura trabalho.
Era possível pensar que os grupos arcaicos ou primitivos estão a dar mais-valia aos grupos que colonizaram as suas terras. Mas, aí, é preciso distinguir entre a relação do grupo dominado com o dominador, e a relação dentro de cada um de esses grupos. Dádiva e exploração podem acontecer ao mesmo tempo, entre indivíduos não autónomos e proprietários autónomos. O que faz a autonomia de um ser humano é a posse ou desaparição do seu produto. O que caracteriza uma relação de escassez é a alienação do produto, esse conceito cunhado por Feurebach em 1841 e que Marx e outros autores viriam a usar mais tarde, ao definirem a relação entre o produtor e a sua obra. A História mostra que o ser humano, em grupo ou individualmente, é capaz de produzir um bem, seja para consumo próprio ou para a troca, decidida conforme as formas do costume dentro do seu povo ou a sua cultura. A alienação do produto acontece de duas maneiras: o produtor não apenas fica sem a obra feita ou sem saber o seu destino, bem como a remuneração do trabalho é mais baixa do que o preço que a sua obra adquire, como bem, no mercado. Aliás, o produtor perde a habilidade de entender as relações de mercado, de oferta e procura, bem como a de organizar um sistema produtivo, do qual ele é apenas uma parte.
Diferente é o que acontece entre as relações de dádiva. A divisão do trabalho é organizada na base da hierarquia, da estrutura de clã, do parentesco e das trocas efectivadas entre grupos que recebem pessoas e bens e grupos que doam pessoas e bens. Para entender as formas de troca – dádiva ou mercadorias –, é preciso conhecer as linhas orientadoras do grupo. Não é em vão que Durkheim distingue entre solidariedade orgânica e mecânica. A primeira, ajusta-se ao direito normalmente definido nos grupos do capital, pela parte que domina, enquanto que a segunda, consiste apenas nas relações de parentesco e chefia, incrustadas nos mitos e ritos, que definem a dádiva, a escassez, a abundância e a reciprocidade para ultrapassar os momentos históricos de déficit alimentar, de produção e de reprodução. É o que Bourdieu denomina o habitus, essas relações de dádiva, ou de salários, capital social, que começa na literacia.

3. Reciprocidade Comercial.

A análise da troca-dádiva, quando tentamos entender o conceito de reciprocidade na base das etnografias usadas pelo autor, não passa de uma desculpa para entender e dar a entender que não há reciprocidade gratuita na sua sociedade. Não é em vão que Mauss afirma que o Estado Francês não premeia nem recompensa, de forma igualitária, os trabalhadores. Nem é em vão que define toda uma Sociologia Económica, uma análise do real na base das relações de mercadoria. Essas que, conforme o próprio Durkheim diz , classificam e hierarquizam os seres humanos entre operários, iguais entre eles, e proprietários, hierarquicamente por cima do operariado. Um facto que é base da teoria de Merton e Parsons , autores que continuam a Sociologia Económica de Marcel Mauss, Maurice Halbawchs, Paul Lapie e outros membros da equipa de Durkheim de L’Année Sociologique.
O problema de a reciprocidade ser um conceito que refere formas contratuais de circulação de bens equivalentes, fica para mim, esclarecido. Mas o assunto que queria tratar, é o de termos usado a reciprocidade como conceito que tudo encobre e nada explica. Temos utilizado o conceito como norma, como acção e como definidor de acções. Usamos reciprocidade cada vez que falamos de ajuda mútua ou troca de trabalho. Foi na minha própria pesquisa da Galiza nos anos 60,70 e 90 do Século XX, que referi o conceito como forma gratuita. Não tinha reparado que esta troca de ajuda familiar é uma forma de economia que substitui os investimentos de capital. Ou, por outro lado, que a força de trabalho investida, é o capital que usa o ser humano que não tem ou não possui a parte essencial do capital: moeda para investir e criar mais moeda, a fórmula usada por Marx nos seus textos de Surplus Value ou Mais-Valia, já referidos e que serão objecto de análise no capítulo seguinte. A mais-valia do pobre, como referi no meu texto de 1988 , é a maximização dos seus recursos. A ideia não é minha, deriva da análise de Marx e os seus conceitos de valor de uso e valor do câmbio , donde a produção de valores de uso, é subordinada à produção de valores de câmbio. Esta ideia é fundamental para entender a movimentação da produção e para entender que a reciprocidade é um conceito económico da Sociologia, transferido para a Antropologia e usado para entender grupos sociais de outras culturas. Outras culturas, ou Outros como nós denominamos, que trabalham, produzem e reproduzem de forma diferente da nossa forma de fazer economia. Ou, pelo menos, isso é o que parece. Mas, esse tipo de análise leva a esquecer o que eu tinha já advertido na Galiza: a única forma de responder ao mercado do capital, é o uso de formas, ditas antigas, primitivas ou arcaicas, pelos autores usados neste e em outros textos. O capital é uma relação social que arrebita e mantém vivas, as maneiras mais “saloias” ou, como diriam os Galegos, mais “enxebres”, mais castizas, mais costumeiras, de trabalhar. É verdade o que diz Karl Polanyi : “los dos últimos siglos han producido en Europa Occidental y Norte América, una organización del modo de vida humano a la que resultaron especialmente aplicables las reglas de optar. Esta forma de economía consistió en un sistema de mercados creadores de precios. Como los actos de intercambio, tal como se practican bajo un sistema de estas características, implican a los participantes en opciones inducidas por una insuficiencia de medios, el sistema productivo pudo ser reducido a un modelo que se prestó a la aplicación de métodos basados en el significado formal de lo económico” . Por outras palavras, a aplicação das formas teóricas da Economia Política, tal e qual Durkheim tinha já alertado, eram uma necessidade para entender a produção entre grupos sociais que, aparentemente, estavam a realizar actividades muito distantes da denominada teoria económica. Se é bem verdade que Durkheim constrói um argumento contra o Homo Economicus, montado por Adam Smith e John Stuart Mill, na verdade, é esse o saber que funciona, ainda que não se conheça nem o ponto do i. O Homo Economicus criou, na Antropologia, toda uma teoria alternativa que procurou a economia dentro das instituições ou teoria substantiva da economia, à qual aderiram muitos autores, entre os quais o próprio Malinowski que, sem dar por isso, criou a teoria formal, dentro da qual não tinha cabimento a análise do parentesco e da vizinhança. Este é o motivo que o levou a mudar para a Psicologia. Marcel Mauss soube reconhecer, embora não tenha sido explícito na sua formulação da Sociologia Económica, que a troca-dádiva era apenas defesa face à falta de meios para optar. Porque a teoria económica ocidental, tem por fundamento a ideia de todos saberem preços, valores das mercadorias, montante dos investimentos, quantidade de lucro a obter pela aplicação de uma importância que, normalmente, um assalariado não imagina. Do que se trata, normalmente, é de assegurar que ninguém saiba teoria económica, para evitar a concorrência que possa prejudicar um investidor que organiza a sua empresa para lucrar.
A teoria à qual Durkheim aderiu e que tinha sido elaborada por Karl Marx, era: “A chacun selon ses oeuvres” ou “A chacun selon son mérite” . A procura de igualdade estava na base do conceito de troca-dádiva, bem como no de solidariedade, especificamente na mecânica. Mas a História tem provado a falácia filosófica do conceito ou das frases. Porque a obra procurada, é a capacidade de optar entre bens mais baratos para investir e vender mais caro os produtos requeridos. Esta ideia de Adam Smith, Bentham, Mill e outros liberais, tem levado ao engano todos os teóricos da ideia substantiva da Economia. Não é em vão que Edmund Leach escreve em desafio aos estudantes do primeiro ano do curso de Antropologia de Cambridge, para descobrirem, se puderem, quem não é racionalista e é orientado pelas suas emoções no seu comportamento económico . A ideia de optar, uma realidade no mundo dentro do qual vivemos, acaba por ser um factor real na vida social. E, ainda que Durkheim, no seu Le suicide. Etude sociologique não consiga ver que o suicídio anômico tem por causa a falta de meios e ideias para optar, a opção ou falta dela, faz do indivíduo um pária do seu grupo social, ou um incompetente, ou “excluído”, o conceito de hoje.
Eu próprio, no meu regresso à Galiza em 1997, tive a infelicidade de constatar, não apenas a falta de colaboração ou entre – ajuda familiar, bem como a morte de seis adultos e dois jovens, os filhos de dois suicidas, que morreram por não saber o que fazer perante as mudanças que o Governo da União Europeia tinha introduzido no seu país: de valores de uso, passou-se rapidamente a organizar valores de troca .
Aliás, a maior parte dos economistas, dos sociólogos ou dos antropólogos, têm-se virado para a teoria formal da economia, especialmente por causa da teoria da globalização, na qual todos os Outros parecem andar envolvidos. O próprio Raymond Firth, que em 1929 fez uma tese de Antropologia Económica , baseada nas ideias de Karl Marx, muda de análise para os símbolos e para a teoria formal, nas obras a seguir. Marcel Mauss descobriu que a dádiva era comercial e organizou a Sociologia Económica. Durkheim, esse, ficou apenas lembrado pelas suas ideias de solidariedade.

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