Hoje, não posso. Os governantes do meu país, de tanto entrarem no que me era devido, castraram este desejo de estar aí. Mas, este mês, de primeira comunhão do meu afilhado, de inspecção do carro, de selo do carro, do seguro do carro e de outras despesas que vêm sem a gente contar, não posso sair do meu pedaço, tenho de reger parcimoniosamente o que me é depositado pela Segurança Social. Eu sei que até me pagavas a viagem, mas a minha vida tem de ser vivida com o que me dá, não com o que me podem dar, mesmo um primo como tu.
Por isso, João, tens de me representar no estádio. Com bandeira e cachecol, a gritar como eu gritaria.
Eu, apenas vou dizer, a quem me lê, quem és. Porque quero que me representes. E, já agora, falar dos outros primos que por aí passaram. Por Paris. Abraço.
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Abílio foi o primeiro da família a partir. Foi também o primeiro a regressar, na flor ainda da vida, levado pela adrenalina de herói. Dizia-me, por vezes, que quem passou incólume por Nambuangongo, na mãe de todas as batalhas de Angola, só morre de velhice, e muito tarde dentro dela. Enganou-se ou, simplesmente, não contou a todas as Mortes que era um herói de Nambuangongo. Pelo menos aquela Morte rodoviária, talvez porque só falava estrangeiro e pouco lhe diziam Nambuangongo e, porque não, os heróis de outros povos, apanhou-o ali, na autorruta, a 190, num Renault que poderia ter ajudado a montar, ele que trabalhava há alguns anos, à chena, numa das usinas da marca em França. O seu sonho sempre fora ter um carro rápido, tinha-o conseguido e desfrutava desse prazer da velocidade sempre que podia. Até àquela manhã em que decidira ir rolar para a pista da esquerda da autorruta depois de deixar a fama, Maria da Encarnação, na boca do metro para ir para a menagem em casa de M.me Madeleine. Tivesse rolado mais devagar, na pista do meio, e a puta da peça que se desprendeu do camião não teria entrado pelo pára-brisas, alojando-se como uma bala na cabeça de Abílio, que teve morte instantânea.
António era outro dos primos. Mas este, porque casado com uma prima. De sonhos, ter o seu pasto, o seu gado e fazer feiras como negociante de bois e vacas. Assim sonhou, assim se fez! Foi o primeiro, quiçá o único, a ficar rico. É certo que nunca ninguém lhe viu a cor do dinheiro, mas quem negociava daquela maneira tinha forçosamente de ter um avantajado pé-de-meia. Da fama não se livrava: dessa e da de sovina encartado.
João é o único que por lá continua. Maria José quis ficar com os filhos, ajudá-los mais tarde com os netos, tinha de dar a volta ao marido. “Tá gola! Nem penses”. Só que ela não calou a boca, insistiu, pensou e repensou, e conseguiu dar-lhe a volta. Hoje, retretado, e muito bem, ele que sempre guardou, sem lhes tocar, as primas, apenas tocando no salário, raramente vai à caixa de maladia, continua são como um pero, desce pelas escadas do seu batimento no oitavo andar até à rua, não usa por opção o ascensor, faz os seus dois mil passos diariamente, depois de caçar a cruta, continua a fazer rigoladas com os netos, que estão uns homens, matriculados na Universidade, futuros engenheiros todos. Virados para os ordenadores e para as machinas e adeptos do Paris St. Germain, sem se importarem muito com o Benfica do tio António (que tentou “comprá-los” antes de regressar a Portugal), ou o Porto da mãe, do pai e das tias. Portugal e a vida lá em baixo pouco ou nada lhes dizem, embora falem um pouco de português com uma pronúncia algo distinta e neologismos aqui e ali na linguagem.
De vacanças em Portugal, agora quando lhe dá na alma a saudade, cada vez mais pequena, ou lhe apetece abrir as janelas do batimento construído na terrinha quando ainda pensava retornar, e para mostrar que há gente ali, evitando as tentações de cambriolagem, ou para pagar de avanço as asseguranças e impostos. Arriva sempre com um grande sorriso!
É nessas alturas que desembrulhamos umas botelhas sem abimar mas tout droit, no terraço do seu pavilhão ou no novo restaurante da aldeia, chama polonesa à minha retrete (becha, como te desemerdas?), concordo (bá lá!), trocamos conarias, rimos, profitamos os momentos, vou com ele passar umas quitanças antes de ele refusar a minha quota-parte no pagamento e assumir o porta-folhas onde descansam algumas notas daquelas que vemos muito pouco por cá, têm mais do que um zero.
Sou eu que o levo ao aeroporto. Já arrivo de novo, estas viagens são de ocasião, há que profiter! E lá marcha, saco de viagem na mão, rumo à família. Et voilá!
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