Cartoline d’Italia (7) (fra Napoli e Capri)

Elisabete Figueiredo

Tudo é real, nada é verdadeiro.

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São três da tarde e, à parte o pequeno-almoço e duas garrafas de água, não tomei mais nada. Pelo que decido comer qualquer coisa, no café da estação antes de decidir como vou para o Molo Beverello apanhar o ferry para Capri. Percebi tarde demais que não tinha procurado saber se haveria autocarros da estação ao porto. Mas entro no café e vejo os gelados. Decido comer três bolas de gelado e mais água. Peço. Pago. Escolho ‘cioccolato, fragola e limone’. Começo a comer antes que derreta. É muito bom, penso. Um homem ao balcão vira-se para mim e queixa-se que o pessoal ali é muito lento. Digo-lhe que tenha paciência: ‘cosa fare?’. Encolhe os ombros e espera. Continuo a comer e a achar que nunca comi um gelado tão bom.

Uma criança do outro lado do vidro olha para mim com uns olhos enormes, verdadeiros e pede-me (percebo pelo movimento dos lábios e das mãos) que lhe compre um gelado. Penso dizer-lhe que não. Mas não sou capaz, principalmente porque aparece um polícia que expulsa a miúda dali e aqueles olhos enormes, cheios de não sei que realidade, ou de que verdade, merecem aquele gelado tanto como eu. Mais ainda, seguramente. Chego à porta e pergunto à menina que sabores quer. Diz chocolate e aquela coisa branca com pedaços de (mais chocolate) (stracciatella? Pergunto. Que sim, responde). Vou de novo à caixa. Pago o gelado, dão-me um copo e eu saio, com a mala gigantesca e o copo de gelado e estendo-o à criança. Agradece-me. Digo-lhe que de nada e adeus. Sorri-me. Acho que ficou contente. Fico contente também eu, mas penso que ontem jantei num absurdo palácio, num palácio ridículo, num palácio onde nunca entraria em nenhuma outra circunstância. Num ostensivamente ridículo palácio, com gente bem vestida e bem nutrida a beber vinho e a comer coisas ‘em cama de…’ e comovo-me com a miúda e digo a mim mesma que foi a última vez que entrei em palácios palermas, para comer jantares pomposos. 
Decido apanhar um táxi para o porto, mas pergunto antes quanto custa. 10 euros diz um dos homens. Está bem, digo eu. ‘Quale è la sua machina?’. ‘La più bella di tutti’, responde. Rio-me e digo ‘ma, sicuramente!’. Entramos no táxi e pergunta de onde sou. Portuguesa. Diz-me que falo bem italiano. Digo que nem por isso. O homem fala com um sotaque napolitano muito cerrado, vejo-me aflita para compreender o que me diz. E ele fala bastante. Do trânsito. Do calor. De Capri. Disto e daquilo. Vamos passando as ruas. Parecem ter sido bombardeadas. Se calhar, afinal, ‘Napoli è un bucco’. Daqui a uns dias o saberei.
Fico no porto à espera do ferry para Capri. Entretanto chegam mais pessoas com um ar muito elegante e bem tratado. Com muitas malas Louis Vuitton e Chanel e o raio. Nenhuma destas pessoas me pede que lhe compre um gelado.

O ferry. Capri. Um lugar que instantaneamente me parece bonito demais e o contrário de um buraco. O mar imenso, as escarpas, as estradas tão estreitas e vertiginosas. Na marina está uma carrinha do hotel. Entro nela, sento-me ao lado de uma senhora que começa a falar comigo imediatamente. Se é a primeira vez que venho a Capri e tal e tal. Fala comigo em italiano e eu respondo em italiano. Finalmente, falta-me uma palavra, digo-a em francês e em inglês. Pergunta-me se não sou italiana. Não, portuguesa. Ela responde: francesa. Rimo-nos as duas e dizemos ao mesmo tempo, quase, que gostamos de falar italiano, porque é a língua mais bonita do mundo. Tanto quanto reparei as malas da senhora não são Louis Vuitton e isso, de certo modo, reconforta-me. Chegamos ao hotel. O quarto é branco, o ar condicionado silencioso, tenho um terraço só meu de onde se vê o mar e, na hora certa, o pôr-do-sol. Já não penso na miúda da estação. Até que saio para jantar, percorro os 300 ou 400 metros entre o hotel e Anacapri. Vou-me perdendo pelas ruas, pelas paisagens de tirar o fôlego. Pelos riscos brancos deixados pelos barcos no mar demasiada e absolutamente azul. Sinto-me bem.

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Escolho um restaurante qualquer. Devem ser todos parecidos em tudo. Por isso tanto faz. Sento-me numa varandinha. Há uma flor e uma velinha. As pessoas passam na rua e sentam-se na praça, há uma algazarra feliz, como quase sempre nos sítios de veraneio. Na mesa ao lado senta-se uma família, com duas meninas. Uma delas tem um vestido Burberry’s. Pede esparguete à bolonhesa. Depois um gelado. Dão-lhe o que quer e ela come. E eu volto a pensar na menina da estação, e no jantar no palácio da Via Ghibellina e em mim mesma, aqui assim, sem saber que mundo é este. Sem saber de que mundo sou eu. Perpetuamente hesitante. É capaz de ser mesmo assim: tudo é real, nada é verdadeiro.

Comments

  1. Mais Cartolines , que ao princípio até pensei que era Caroline
    d´Italaia . Ainda não atingi o sentido destes comentários , que me parecem muito pessoais , sobre os quais ninguém deixa
    resposta alguma , o que mais intriga , tratando-se duma
    bloguer convidada ..

  2. Fernando, como respondi na Cartolina 8, isto são postais ilustrados das minhas férias em Itália. Não há nada de intrigante nisto, creio eu. Nem eventualmente dão azo a resposta alguma.

  3. Então se não é para comentar , porquê estes comentários
    pessoais , cuja a publicação creio que não devia ser neste
    tipo de blogues , porque me parecem mais pessoais do que
    generalistas .
    Creio que tem todo direito de se expressar , mas não deixei
    de achar estranho .
    Costumo intervir nos mais diversos comentários , concor-
    dando ou não e deixando a minha opinião .
    Só que no seu caso não atingi e ainda não atingi o seu pro-
    pósito . De qualquer maneira obrigado pela sua resposta , desejando-lhe as maiores felicidades .

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