Madonna ama o pai

 

Andávamos na primária e a canção da moda começava com um bucolismo ingénuo – “Adoro o campo as árvores e as flores / jarros e perpétuos amores” – e depois adensava-se em enigmáticas referências à fauna do bas fond. A Sónia Maria perguntava-me:

–  Tu sabes o que são “pedrastas”?

E eu encolhia os ombros e respondia que devia ser uma espécie de pedregulho, qualquer coisa que se chuta e rola pela encosta.

Íamos completando as letras das canções de que gostávamos na sebenta, e cantarolávamos todo o dia, ainda longe dos walkmen e dos mp3 que me trouxeram tantas horas de felicidade, tão providencial consolo, e uma irremediável redução da capacidade auditiva. Fazíamos a coreografia do “Walk like an egyptian”. Cantávamos numa língua que soava a inglês mas não o era. Aliás, se alguma vez aprendemos inglês foi para entender as letras das canções, o resto foi ruído.

Bem, mas foi por então que apareceu o enigmático “Papa don’t preach”. Não sabíamos o que era “don’t”, muito menos “preach”. A “Papa” chegávamos e não levávamos a coisa para o Vaticano porque tínhamos visto o videoclip e percebíamos que não era por aí. Inglês só teríamos a partir do 5º ano, e se era certo que poderíamos perguntar a um adulto que entendesse alguma coisa, muito melhor era tentar adivinhar. O “preach” era particularmente intrigante. Não chegámos a nenhuma conclusão. Passaram os dias, já ouvíamos outras canções, quando a Sónia Maria aparece triunfante, com uma foto da Madonna recortada da Bravo, e com os olhinhos brilhantes sob a franjinha que sempre lhe conheci.

– Já sei! Já sei! Já sei!

Juntamo-nos todos à volta dela, a portadora do conhecimento, ela que vinha como Prometeu com a tocha acesa.

– Então, que quer dizer?

Ela queria saborear o momento com muitos rufos de tambor.

– “Papa don’t preach”… quer dizer … em português… “Madonna ama o pai”.

Fez-se silêncio.

– Madonna ama o pai?

A Sónia Maria fez que sim com a cabeça, cheia de importância e orgulho.

Eu era casmurra.

– Então e que palavra é que quer dizer Madonna? “Papa”? “Don’t”? “Preach”?!

– Não sei, mas tenho a certeza que é assim.

– Tens a certeza porquê?

– Não posso contar.

Foi nesse dia, depois da nossa grande zanga, que decidi que tinha de aprender inglês o quanto antes.

Só recentemente, e depois de outras pessoas o referirem, é que descobri que tenho uma memória enciclopédica para letras de canções, mas as que recordo melhor são as canções pop, algumas pirosíssimas, que ouvi entre os 8 e os 14 anos, ou por aí. A memória das coisas que amamos brilha mais tempo, resiste a muitas ondas de esquecimento. Aprendi o advérbio de modo “efectivamente” porque o Reininho o repetiu muitas vezes aos meus ouvidos e ainda é por causa dele que, de cada vez que eu ouço a palavra, acrescento, só para mim: “sem moralizar”.

Se quando chego à Cantareira, o meu passo se faz mais gingado não é porque caminhe ao som de Lou Reed, muito menos leve merda na algibeira, mas é porque comigo caminha o Chico Fininho, filho da Cantareira, que me apanhou com 4 anos, sabia lá quem era o Lou.

Numa estação de serviço obrigaram-me a ouvir de novo o “Papa don’t preach” e a recordar a Sónia Maria, que não vejo desde os tempos da franjinha e há-de estar uma mulher do meu tamanho. E descobri, entre gargalhadas, que ainda sei a letra de cor mas numa língua que não existe, aquela que eu achava, à época, que era inglês.

Obrigada aos que me colaram letras ao caminho e me gingaram o passo. Agora cantam cá outros mas a história é sempre a mesma.

Imagem: Capa do álbum “Psicopátria”, GNR, 1986.

Comments

  1. Gostei muito deste bocadinho da minha infância. Muito mesmo.

  2. José almeida says:

    Bons tempos…. Ía ao baile da paróquia lá prós lados ….. da minha terra. Hoje faz-se (alguma) muito boa música. Não resisto ao (en)canto de Ana Moura…. e aguardo o(s) seu(s) livros.

  3. é um país cheio de velhadas says:

    e só morreram 10 mil este mês …..em 2030 seremos 4 milhões

  4. antonio oliveira says:

    reviver o passado em….

  5. Gosto dos textos que leio neste aventar…há muito! Hoje não resisti a dar uma “fórcinha”… é destas coisas que o nosso Porto é feito, de gente culta e trabalhadora, atenta e brava. Este texto diz-me algo, embora a minha consciência das coisas seja um pouco anterior…ia tb para a ribeira, pendurado num troley desde a Areosa, com uma caninha de pesca telescópica, apanhar taínhas na saída do esgoto que depois vendia na fábrica de farinhas de peixe (um lodo)..teria uns 8 ou 9 anos, 71 ou 72 o Porto era ainda mais cinzento nesse tempo…Hoje, com mais de meio século, depois de ter andado 30 anos fora, depois de ver de tudo um pouco, só mesmo a cidade do Porto e o seu povo me permitem ainda acreditar num futuro melhor para o meu País. Um dia todos os portugueses perceberão que esta cidade-ancora é o que nos protege da deriva total. Parabéns Aventar, parabéns Carla pela tua escrita.Obrigado

Discover more from Aventar

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading