Sobreviver a um comício

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Fui a um comício. Não foi fácil. Ao meu lado estava sentado um velhote que parecia tão à rasca como eu. Várias vezes nos entreolhámos um bocado aflitos, por manifestamente não sabermos aquelas letras e aquela performance de cor. De tanto em tanto tempo, os que estavam sentados ao nosso lado levantavam-se e diziam coisas, umas frases que tinham decorado e que agora repetiam. Pareciam cidadãos iguais a nós, uns quaisquer da população, como nós ali sentados, mas eis que de repente não eram. Sentimo-nos sozinhos naquela nossa condição, que afinal não era assim tão simples.

Tudo piorou quando alguém nos entregou umas bandeiras, acompanhadas de uma ordem para as pôr no ar quando chegasse o momento. Ficámos ali com ar de parvos com as bandeiras na mão, sem saber o que fazer com elas – que ainda por cima impediam que pudéssemos bater palmas se quiséssemos. Nós por vezes até queríamos, porque se disseram coisas muito importantes naquele comício. Coisas verdadeiras, graves, que não tinham nada de festivo mas mereciam o aplauso de serem enunciadas sem medo.

Quando chegou o momento de pôr as bandeiras no ar foi especialmente doloroso. Olhámos um para o outro e juraria que pensámos o mesmo: sair dali o quanto antes. Como não fosse propriamente fácil, dada a multidão compacta que nos envolvia, nada fizemos. Limitámo-nos a ficar ali sentados, cada um a tentar livrar-se da bandeira como podia, e sentimos sobre nós o olhar reprovador da turba de coristas daquele comício, cujo guião teatral se reproduzia ali impondo-se com grande naturalidade, como se a população imponderável (curiosa, indecisa, não importa) tivesse o dever de conhecê-lo.

Nesse momento esquisito, senti-nos unidos, o velhote e eu – solidários naquele mal-estar de ter ido a um comício que afinal não parecia ser para nós, ou, pelo menos, onde o nosso lugar não tinha sido acautelado. Nós éramos os da plateia, mas todos em nosso redor nos compeliam ao palco.

Pensei então que realmente é preciso mudar a linguagem dos comícios. Que não é preciso continuar a coreografá-los daquele modo. Que as músicas dos comícios são ridículas de estridência demasiada. Que os da população indiferenciada não querem por vezes aprender aquelas letras, quanto mais gritá-las – só querem ir buscar esclarecimentos, tentar perceber quem são os candidatos, se dizem a verdade. Que é preciso mudar o modo como vêm ter connosco para nos convencerem a representar-nos. Que a maneira tradicional de fazer campanha eleitoral já não serve, que cheira a mofo, que é absurda, que toma o povo por tolinho, e que sobretudo não é necessária. Pensei, em suma, que realmente é preciso mudar a linguagem da política de alto a baixo, e depressa.

Sobrevivi ao comício e ainda quero ir votar. Já o velhote que me acompanhou naquela experiência, não tenho a certeza. Bem vi a relutância, a empatia que não aconteceu, a desilusão a doer-lhe muito mais que a mim, a desistência toda à mostra.

Comments

  1. Joaquim Amado Lopes says:

    Muito bom artigo, Sarah. Os meus parabéns.

    A realidade é que, da extrema-esquerda à extrema-direita, os comícios são organizados por tolinhos e para tolinhos, encenados para “a fotografia”, para a comunicação social ter alguma coisa para noticiar, e sem qualquer intenção de esclarecer seja quem fôr.
    O mesmo para as arruadas, estas ainda mais patéticas quando incluem “interpelações espontâneas” por parte de “anónimos”, com perguntas ensaiadas e que apenas servem para o “interpelado” repetir os clichés do costume para a televisão.

    • José almeida says:

      Não concordo com esta rotação a 360º. Meter tudo no mesmo saco é leviandade. Há gente séria no país que antes remava contra a corrente e agora rema num lago quase seco. Depois, eu extrema direita consigo identificar e definir. Porém, a extrema esquerda eu não sei bem onde começa e acaba. Começará no Syriza como diz o José R dos Santos?

  2. José almeida says:

    Cara Sarah, há muita gente “enojada” com isto. Não com a política ou com a democracia, mas sim na forma como os actores as interpretam neste regime. Tudo isto fede. A vontade de participar é proporcional ao resultado prático destas eleições. No fundo é só mais uma campanha para “inúteis” (Carla Romualdo). Não faço campanha à abstenção. Mas só voltarei a votar quando achar que o meu voto vai contar e for útil. Sei que a direita, PS incluído, naturalmente, prefere ver os votos de esquerda em abstenções, mas acredito que a força das abstenções um dia vai contar.

    • Ana A. says:

      “…mas acredito que a força das abstenções um dia vai contar.”

      José Almeida, se fosse a si não contava muito com isso. É que da forma como isto anda, qualquer dia a leitura das abstenções vai ser esta: – “Bem, vamos deixar de fazer eleições, pois parece que o povo quer voltar ao regime da outra senhora, e ficar em casa descansadinho, enquanto nós, os inteligentes do regime, nos vamos perpetuando no poder, até cairmos de velhos!”

      • José almeida says:

        Essa é a sua opinião. Felicito-a por saber a resposta antes do acontecimento. É Taroo? Cartomante? Vidente? Poderia aconselhar alguma literatura, mas está não é a minha área.

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