João Gonçalves: Do pronunciamento à democracia imperfeita

(João Gonçalves, Jurista)

O que é que aconteceu no dia 25 de Abril de 1974, uma quinta-feira levemente brumosa em plena Primavera já não “marcelista”? Para sermos rigorosos, deu-se um pronunciamento. Seguindo de perto Vasco Pulido Valente em “Os militares e a política (1820-1856)”, INCM, 2005), o pronunciamento caracteriza-se fundamentalmente pelo seguinte:

  • é uma intervenção de oficiais de carreira e de unidades para substituir um governo ou um regime sem violência;
  • tal intervenção procura alcançar a colaboração, activa ou passiva, da totalidade ou da maioria dos ramos das forças armadas, fundamentalmente o Exército, no caso, para subsequentemente impor a vontade dos militares ao poder político vigente.

O 25 de Abril, nestes termos, foi aquilo a que poderíamos designar como um pronunciamento militar clássico em consequência das circunstâncias político-militares da época, a saber, a guerra dita colonial que se desenrolava há mais de uma década na África portuguesa. Se atentarmos na primeira comunicação da Junta de Salvação Nacional, já na madrugada de 26, existe o cuidado em fazer referência explícita a Portugal, e cito de cor, “no seu todo pluricontinental”.

Interesses corporativos do oficialato médio, de carreira, por um lado, e alguma penetração político-ideológica em alguns extractos desse oficialato, por outro, criaram o “caldo” necessário à realização do pronunciamento, para, numa frase que ficaria famosa, acabar “com o estado a que isto chegou”. E a prova de que não existiam intuitos violentos reside no avanço, de Santarém para Lisboa, das “forças” comandadas pelo autor da frase, o capitão de Cavalaria Salgueiro Maia, constituídas maioritariamente por soldados em instrução. As metralhadoras G3 que a maioria carregava não disparavam um tiro. Politicamente, a “arma” mais emblemática usada no pronunciamento foi uma viatura Chaimite que recolheu o essencial do poder político vigente, no seu bojo, entre o Largo do Carmo e a sede operacional do MFA na Pontinha.

Tudo se passou rapidamente após o pronunciamento. A moderação inicial, de que o General de Cavalaria António de Spínola era o rosto principal enquanto Presidente da República, soçobrou no final do Verão de 74. No livro “Rumo à vitória”, o secretário-geral do PCP, o partido mais duradouro e consistente na oposição ao Estado Novo decaído, tinha explicado, com meridiana clareza, como é que tudo se devia passar.

A “vanguarda” seria constituída, segundo Álvaro Cunhal, pela “aliança povo-MFA”, isto é, pela aliança do PC com aquilo que designava por “sectores progressistas” do MFA, por forma a não se atingir – com pretendiam todos os partidos à direita do PC – uma “democracia parlamentar burguesa”. Grande foi, pois, a desilusão do PCP aquando das primeiras eleições livres, um ano depois do pronunciamento de Abril. O “povo”, maioritariamente, rejeitou a “aliança” que o PC lhe propunha.

Na Assembleia Constituinte, e menos nos governos provisórios, o PCP fez os possíveis e os impossíveis para que a nova Constituição não cristalizasse um regime democrático ocidental que sublimasse de vez a revolução. Tinha poderosos aliados no poder militar que então se exercia praticamente sobre todas as instituições, nomeadamente a partir do Conselho da Revolução e dos quatro governos provisórios que sucederam ao primeiro, de Palma Carlos e Sá Carneiro. Era o PREC, “o processo revolucionário em curso”, durante o qual a chamada “legitimidade revolucionária” se sobrepunha, todos os dias, e com maior ou menor histrionismo, à “legitimidade democrática” que estava em São Bento a fazer a Constituição.

Isso parou em 25 de Novembro de 1975 quando o grupo político-militar defensor da “legitimidade democrática” derrotou o MFA da “legitimidade revolucionária” sob o olhar circunspecto do PC que, à ultima hora, decidiu entregar os “revolucionários” à sua sorte.  O apoio político do General de Cavalaria Costa Gomes, então PR, ao grupo político militar sediado nos Comandos da Amadora – dirigido operacionalmente pelo Tenente-Coronel de Infantaria Ramalho Eanes – revelou-se decisivo já que aquele prestigiado oficial-general, ex-CEMGFA em 1973, talvez para se distinguir psicologicamente de Spínola, tinha evidenciado alguma ambiguidade quanto ao destino plenamente democrático da “revolução”.

Os três momentos políticos decisivos na implantação de um regime democrático “ocidentalizado” ocorreram em 1976, a saber, com a aprovação da Constituição em Abril, com a tomada de posse do primeiro PR eleito, em Julho, e com a aprovação do programa do 1º governo constitucional em Agosto.

Do 1º governo, minoritário do PS e dirigido por Mário Soares, ficou, sobretudo, o audacioso pedido de adesão às então Comunidades Europeias – os economistas do novo regime eram maioritariamente contra o pedido naquele momento, mas Soares impôs a decisão política -, conduzido através do MNE José Medeiros Ferreira, e a “Lei Barreto” que ceifou a reforma agrária do PC e aliados. Mas, logo a seguir, no seu 2º governo, dito “de base PS com independentes”, mas, na prática, PS/CDS, Soares praticamente desautorizou a “Lei Barreto” na sua aplicação concreta. E o CDS saiu.

Com a Constituição a prever a dupla responsabilidade política dos governos perante o PR e perante a AR, Ramalho Eanes demitiu Mário Soares e deu início ao ciclo dos apelidados governos de iniciativa presidencial, três, de curta duração. Esses três governos eram integrados por um escol notável que acabou por ser “aproveitado” em governos subsequentes do PSD, do CDS e do PS.

A primeira legislatura, que terminaria em 1980, conheceu cinco primeiros-ministros. E umas eleições intercalares, em Dezembro de 1979, que legitimariam a Direita democrática no regime. Que repetiu a vitória, a da Aliança Democrática, então há um ano no governo, com nova maioria absoluta, nas legislativas daquele ano.

O reformismo, neste regime e no século passado, pode dizer-se que começou no 4º governo constitucional, de Mota Pinto, consolidou-se com a primeira AD, de 1980, retomou-se forçosamente no Bloco Central de 1983-1985 e prosseguiu, já na Europa, nos dez anos seguintes de governação Cavaco Silva.

Coube sobretudo a Cavaco Silva orientar a concretização do terceiro “D” do programa do MFA, pré-anunciado no último congresso da oposição democrática em Aveiro pela comunicação do exilado Medeiros Ferreira, lida pela Mulher Maria Emília Brederode: “democratizar, descolonizar, desenvolver”.

Dos governos de centro-direita posteriores, já neste século, todos (três mais um, irrelevante porque não viu o seu programa aprovado na AR) resultantes de acordos pós-eleitorais, apenas o de Passos Coelho, e em ambiente de auxílio externo, perfez uma legislatura e mostrou ambição reformista no respeito pelas liberdades públicas.

O desaparecimento constitucional do papel essencial do PR sobre os governos, na revisão constitucional de 1982, condicionou o percurso do regime nestes últimos cerca de quarenta anos. O regime, de semi-presidencial, passou, na prática, a parlamentar com predomínio do primeiro-ministro. O PR, para “demitir” um PM e o seu governo, tem de dissolver o parlamento. Não há “estádios” intermédios. Se os governos se suportam em maiorias absolutas, mono ou pluripartidárias, ao PR pouco mais resta que o chamado “poder da palavra”, uma palavra que o vento leva com facilidade. Nem a Esquerda, salvo no momento “dissolvente” de Sampaio no final de 2004, nem a Direita, fora idêntico momento, em 1987, de Soares, ganharam nada por os presidentes terem sido do PS ou do PSD. As eleições antecipadas, desde 1983, deram-se porque os PM’s se demitiram.

Aliás, na sequência da derrota eleitoral de 2015, o actual PM percebeu logo que era preciso lubrificar o que, realmente, era já um sistema parlamentar para se alçar ao governo. Foi o que quis dizer com “manifestamente não me vou demitir (de SG do PS)”. E lubrificou-o andando para trás, isto é, recuperando a “tese Melo Antunes”, de 25 de Novembro de 1975, e levando o PC e o Bloco para o “arco da governação”.

Se a revisão de 1982, de uma certa maneira, determinou a vida política nacional, o acto político de António Costa, de Novembro de 2015, condicionou-a de outra, acrescentando-lhe mais um pressuposto de governação: não se forma governos apenas ganhando eleições ou ficando à frente. O argumento do “mais um deputado” ruiu. Se não houver à partida o “mais um”, vai arranjar-se umas dezenas deles à Esquerda do PS. Serviu para o PS, e serviu para a Direita, nos Açores, em 2020.

Depois de um certo equilíbrio no regime e na sociedade portuguesa, entre 1976 e 2015, digamos que as coisas, entretanto, tombaram todas para a Esquerda, criando-se uma espécie de democracia imperfeita de que o PS e a Esquerda são os donos. É quase como se a Direita estivesse, como está, a precisar de um movimento reformador, agora refundador, como o de 1979, liderado por Sá Carneiro, mas alargado em virtude de novas realidades político-partidárias.

O partido maioritário da Direita, ancorado a um “centro” mítico que não existe, é um partido serventuário dos interesses das Esquerdas. Em demais eleições, legislativas ou autárquicas, a Direita deve apresentar-se unida no fundamental. E o fundamental é garantir a governabilidade não socialista do país e a erradicação, por consequência, desta democracia imperfeita, corrupta, material e moralmente, em que vegetamos quarenta e sete anos depois do pronunciamento de Abril.

Ninguém se iluda, pois, com o alegado “pós-pandemia” e o PRR, um misto de “borlas” e de milhões a fundo perdido a gerir pelas presentes oligarquias. Elas deram provas, nestes quarenta e sete anos, do que valem. São, paradoxalmente, conservadoras e sobreviventes. Não querem saber do país para nada. O país, para elas, nunca foi um fim em si mesmo. É um meio de que se servem para se perpetuarem amoralmente. O pronunciamento do distante 25 de Abril de 1974 não teve nada a ver com isto.

 

(Fotografia do Correio da Manhã)

 

Comments

  1. Pimba! says:

    Para jurista, esperava bem mais.

    “A moderação inicial, de que o General de Cavalaria António de Spínola era o rosto principal”?

    Só na sua cabeça, aliás, quando esse “moderado” quis em Setembro de 1974 tomar para si o poder tal caudilho, ameaçando todo o Conselho de Ministros, famosamente a grande Pintasilgo disse-lhe calmamente “Se não fosse filha de militar, teria medo das suas palavras. Como sou, não tenho.”; daí o “moderado” tentou forc,ar o golpe com a “maioria silenciosa” e deu-se mal.

    “o PC que, à ultima hora, decidiu entregar os “revolucionários” à sua sorte”?

    Só na sua cabeça, aliás, o PCP foi apanhado de surpresa como os outros, tanto que näo foi ilegalizado em seguida, antes pelo contrário. Ao fim de 50 anos ainda näo entenderam?

    A História näo é como a pintamos, é como aconteceu, quer gostemos quer não.

  2. Paulo Marques says:

    Bom, de facto, é este o programa transversal à direita, não governar para as pessoas e acabar com a democracia imperfeita, a única que existe.