Putin e alguma esquerda portuguesa e a União Nacional entram num bar – A ironia do destino – Crónicas do Rochedo 51

A 12 de Março de 1938 Hitler anexa a Áustria. Afinal a maioria da população até era alemã, justificavam os nazis. Anos antes, em 1918, a Alemanha assinara um tratado em que assumia nunca anexar este seu vizinho mesmo sabendo que uma parte dos seus habitantes falavam alemão.

Por essa altura, anos 30, a mesma Alemanha nazi afirmava que as populações de etnia alemã na Checoslováquia e em especial na chamada região dos Sudetas, eram perseguidos e mal tratados. Por isso, explicavam, a Alemanha via-se forçada a anexar essa região. Foi o primeiro passo para a posterior anexação de toda a Checoslováquia.

Por essa altura, as entranhas do Estado Novo olhavam para as investidas de Hitler com uma visão utilitarista. Se, por um lado, Salazar preferia Mussolini a Hitler, por outro lado via em Hitler e no nazismo uma forma de impedir o crescimento do comunismo. Mas não é sobre esta matéria que quero falar. Prefiro abordar aquilo a que chamo de “uma ironia do destino” de alguma da nossa esquerda actual na sua relação com Putin.

Voltando então aos anos 30 do século passado: a maioria dos apoiantes de Salazar olhavam para estas iniciativas de Hitler em 1938 com fascínio. Entendiam que o homem até tinha razão, os austríacos até eram uma espécie de bávaros. E os sudetas eram maioritariamente habitados por alemães, caramba. Mais, gostavam de relembrar que a Alemanha tinha sido humilhada pelas potencias ocidentais no final da I Guerra Mundial e que reinava a hipocrisia por parte destas. E nem era verdade que Hitler fosse entrar em guerra com o resto da Europa, ele não era parvo. Foi de tudo isto que me lembrei quando vi, nos últimos dias, o discurso tanto do PCP como de certos “intelectuais” da nossa esquerda, um discurso entre o apoio a Putin ou o justificativo da sua acção: afinal, a culpa é dos Aliados que humilharam a “Mãe Rússia” após a queda da União Soviética e, sublinharam o facto de tanto a Crimeia como as duas outras regiões hoje “anexadas” são de maioria étnica russa. E o Kosovo, pá, o Kosovo”. Ontem a União Nacional, hoje a esquerda intelectual. A mesma luta.

Este discurso não é apenas estúpido.

Fosse apenas estupidez e a coisa passava sem grande problema. A questão é que é um discurso perigoso. Putin não é diferente de Hitler, nem de Mao, nem de Pinochet nem de Mobutu ou Estaline. Porque não há ditadores bons e ditadores maus. Só existem ditadores e, todos eles, sejam de direita ou esquerda, são uns filhos da puta com todas as letras. Defender Putin é defender um facínora que envenena os seus opositores, que viola direitos tão básicos como os de expressão. Um facínora é um facínora. Ponto.

E o Kosovo, pá? Só o facto de aceitar intelectualmente misturar alhos com bugalhos já nos devia servir de sinal de alerta. Supostamente, quem coloca a questão da independência do Kosovo (e o seu reconhecimento ou não por parte da comunidade internacional) certamente também a deverá colocar quanto à independência de Timor no passado ou, quem sabe, no futuro, a independência da Catalunha (digo eu). É que a Sérvia reclama que o Kosovo é uma província sua. Os kosovares reclamam que não senhor, que são independentes (e para mais de uma centena de países são-no, incluindo Portugal). Ou será que na verdade e tendo presente a maioria dos seus habitantes, devia ser uma província albanesa? Mas foi invadida por terceiros no pós declaração de independência? Foi a Albânia com tropas para o Kosovo para “garantir” a paz? Foi a Sérvia financiar e armar movimentos separatistas? Se forem ver com alguma atenção, se dependesse de Putin bem que a Sérvia o deveria ser feito.

Posto isto, são os ocidentais uns santinhos? Não. Mas as suas populações vivem em liberdade, podem escolher livremente os seus governos. Não me parece que o Costa precise de envenenar os seus opositores, Não me parece que o Macron vá amanhã mandar fechar os meios de comunicação social que o criticam ou que o novo chanceler alemão vai assim de repente enviar para trabalhos forçados, num qualquer canto estilo siberiano, os que não concordam com as suas decisões.

Alto, e os “states”? Esses imperialistas, esses facínoras, grita ali nas caixas de comentários um leitor. Os  Estados Unidos são o mesmo país cuja população elegeu um presidente como Obama e livremente escolheu depois um outro chamado Trump. Para uns o primeiro é um santo e o segundo um demónio e vice versa. Mas todos fizeram a sua escolha votando livremente e livremente exprimindo as suas opiniões. Ah e tal mas apertam a mão a ditadores. Apertam, sejam eles Sauditas ou, como fazia Trump, “Putines”. É a “real politik”, dirão os mais diplomatas e polidos. Eu, como sou da Areosa digo a mesma coisa mas de forma diferente: Os governantes dos EUA são uns filhos da puta mas são os meus filhos da puta. Prefiro sempre os que nos livram da tirania do que aqueles que nos querem oferecer uma. É por isso que todos os anos festejo com gratidão o aniversário do Dia D. São escolhas. As minhas.

Mas lá que não deixa de ser irónico ver alguma da nossa esquerda seguir a escola da retinta União Nacional….Ganhem juízo!

Comments

  1. Paulo Marques says:

    Dá jeito a comparação à segunda guerra, onde mais uma vez se deixa esquecido que a aceitação teve tudo a ver com a luta ao comunismo, mas a comparação dos egos envolvidos tem muito mais a ver com a primeira; se não fosse a ameaça nuclear, estava tudo a fazer planos para o regresso no natal.
    Mas ao menos o Fernando poupou-nos a treta dos “valores ocidentais”. Agradeço.
    E deixo mais uma boa explicação de porque é que a realidade é complicada; vai-se a ver e é Putinista, lol.

    https://braveneweurope.com/branko-milanovic-putins-century-of-betrayal-speech

  2. Rui Naldinho says:

    … e o artigo ia muito bem até ao penúltimo parágrafo.

    “Os governantes dos EUA são uns filhos da puta mas são os meus filhos da puta. Prefiro sempre os que nos livram da tirania do que aqueles que nos querem oferecer uma.”

    Que os EUA ajudaram uma parte da Europa, dita Ocidental, a livrar-se da tirania, na 2ª Guerra Mundial, não tenhamos dúvidas. Mas ficaram-se por aí e pouco mais. Talvez a Coreia tenha sido o última ação libertadora. Ainda que numa primeira fase a Coreia do Sul fosse também ela um regime ditatorial.
    Ou será que as ditaduras plantadas por eles de forma cirúrgica ao longo de décadas, em África, na Ásia e principalmente na América Latina, já não contam? As célebres repúblicas das bananas são produto de quem?
    É verdade que tudo isso aconteceu depois da 2ª Guerra Mundial.
    Também é verdade que o verdadeiro imperialismo Norte Americano emergiu de forma impetuosa depois da 2ª Guerra Mundial.
    Mas achar que só porque os meus filhos da puta são um pouco melhores do que os outros filhos da puta é solução, vou ali e já volto.
    O problema reside aí. Não temos que escolher entre o mau e o péssimo. Temos sim de pensar que ambos não nos servem. Ainda que um seja mais tolerável do que o outro. Até ver.

  3. balio says:

    Uma coisa é a política interna de Putin, outra coisa muito diferente é a sua política externa.
    Os EUA são um país democrático, mas nem por isso têm uma política externa muito boa.
    Da mesma forma, a Rússia e a China são países autocráticos, mas isso não implica que a sua política externa seja muito má.
    Lá por criticarmos a política interna de Putin, isso não significa que ele não tenha alguma razão na sua política externa.

  4. POIS! says:

    Pois há malta que não compreende!

    Nestas merdas das guerras a malta tem de escolher um lado e ponto final!

    E quem não escolher o lado certo não é bom pai de família!

    E não há cá empates! Toca a apostar, ou é 1 ou é 2, nada de X, prolongamentos e penalties!

    Ou apostam nos nossos filhos da “senhora de mau porte”, ou nos outros filhos da “matrioska de mau porte”, mas assim também passam a ser filhos da “de mau porte”, o que é mau, mas só se não forem da dos meus filhos “da de mau porte”.

    É tão simples! Porra, que cambada de filhos da senhora “de mau porte”!

  5. antonio pereira says:

    Tenho um pequeno problema com a lógica deste texto. O seu autor que se proclama um democrata esquece que em 2014 foi eleito democraticamente um presidente na Ucrânia( nem o ocidente contestou) e que foi deposto através de um golpe de estado. Certo? Nesse golpe de estado foram muito importantes forças nazis a que presumo que o autor deve chamar de libertadores. Nesse golpe de estado morreram dezenas de pessoas, algumas vítimas de snipers( numa conversa telefónica entre duas responsáveis políticas ocidentais , uma das quais a chefe da diplomacia europeia referiam que os sniper afinal parece que estavam contratados pelos revoltosos) , outros ( mais de 40)quando os fascistas chegaram fogo á união dos sindicatos em Odessa. Abateu-se uma enorme repressão sobre os falantes russos, fecharam-se televisões e jornais, assaltaram-se estabelecimentos, bancos, etc. Sim, os nazis tiveram uma importância enorme nisso. Nazis que hoje combatem ao lado do regime ucraniano Os dirigentes do principal partido da oposição estão presos, claro. Criaram uma divisão na igreja. Mas para quem defende tanto a democracia só não entendo porque é que não fala no golpe de estado que afastou um presidente democraticamente eleito. Esclareça-me isto por favor? Não entendo o que entende por democracia. Já agora: o batalhão nazi ( azov) é aliado ( e muito activo) da junta que tem governado a Ucrânia. E o seu fundador ( banderas) que combateu ao lado das SS nazis é hoje um herói nacional da Ucrânia. Porque não comparar com o Kosovo já agora? Em que os sérvios combatiam um exército terrorista ( era assim classificado mesmo pelo ocidente) , em que houve baixas de parte a parte, que levou ao bombardeamento ilegal por parte da Nato a populações civis na Sérvia? Os nazis, caro senhor , estão do lado da Ucrânia. Entre outros , claro….

    • Paulo Marques says:

      Mas é uma democracia que bane partidos do mal, por isso é uma boa democracia!

    • Rosa Lourenço says:

      Hitler também foi eleito democraticamente em Weimar…isso não o impediu de ser tornar no monstruoso ditador que “mandou” exterminar milhões de seres humanos…. aliás como também fez Estaline. Há que ser imparcial!

  6. Ah, pois, e a NATO não tem nada a ver com conflito? Pois claro, nem sequer andou anos a fazer o cerco à Rússia, sempre com a melhor das intenções, naturalmente.

  7. Maximiano Gonçalves says:

    Ainda bem que os Moreira de Sá podem bradar assim. Exemplificam o que é a intoxicação permanente das populações dos paraísos da Democracia. Não assinalo a estupidez de que acusam os outros – a estupidez insiste sempre, disse o magnífico Camus – , assinalo a ignorância. Cada caso, cada nome, cada região citada demonstra o pior provocado por uma instrução de narrativas mentirosas, uma comunicação social dita “main stream ” que mente, os crimes sistemáticos da democracia decadente que, infelizmente, são os EUA – Vietnam, Cuba, Chile, o repugnante bombardeamento de Belgrado (Putin ainda não estava bem assente no poder), Iraque, apoio aos piores regimes de Direita, nomedamente na América Latina, etc., etc, etc.
    Envenenamentos ? Não julgue antes de ler todos os lados que apreciam os casos… Talvez possa encontrar (mas não garanto que esteja ao seu alcance e não por culpa própria) informação decente sobre os casos Snowden e Assange, por exemplo. E sobre Allende (talvez tenha ouvido falar), Guantanamo, a Síria, a Ucrânia, os Países Bálticos, etc, etc., etc.
    Depois falará ainda com maior êxito a todos aqueles que decerto o ouvem com admiração. Tantas coisas que o Fernando sabe…dirão eles.
    Desejo-lhe felicidades.
    Maximiano Gonçalves

  8. esteves aires says:

    A SITUAÇÃO NA UCRÂNIA
    A propósito do despique entre duas potências imperialistas nesta região, zona com importância militar e económica, colocamos aqui um texto publicado há 8 anos no Luta Popular online, texto assinado por Espártaco, pseudónimo do nosso saudoso camarada Arnaldo Matos, que verão que mantém a actualidade…
    Ucrânia: Independência a Leste
    Duas províncias do leste da Ucrânia – a de Donetsk e a de Lugansk – submeteram a referendo popular, no passado domingo, dia 11 de Maio, a questão da sua independência, com a correlativa separação do Estado ucraniano.
    (…)
    Em conjunto, os dois novos países têm uma população de sete milhões de habitantes, correspondente a 15% da população da Ucrânia, e formam uma região conhecida como Donbass, que abarca toda a riquíssima bacia carbonífera e mineira do rio Don, numa área total de 54 000 kms2, menos de 9% da superfície do Estado de que se emanciparam.
    Mais de 75% das pessoas que vivem no Donbass tem o russo como língua natal. No seu conjunto, os dois novos países criavam 20% do produto interno bruto do Estado ucraniano. É, aliás, no Donbass que se encontram as maiores empresas mineiras, metalomecânicas, metalúrgicas e químicas da anterior Ucrânia.
    Acontece que o território do Donbass, integrante dos dois novos países, só entrou na composição da antiga República Socialista da Ucrânia depois da proclamação do poder soviético. Anteriormente, o Donbass – e, por conseguinte, o Donetsk e o Lugansk – faziam parte do império russo. Na sua forma actual, a própria Ucrânia só existe há 23 anos, como resultado da implosão da anterior União Soviética, em 1991.
    Nestes termos, os dois países que no último domingo proclamaram a sua independência nunca foram ucranianos: nem pela etnia, nem pela língua, nem pela religião, nem pela história, nem pela geografia, nem pela cultura, nem pelos heróis e heroísmo que cultivam.
    Odiados pelos ucranianos do oeste, os povos dos dois países agora independentes – 15% da população, 9% da área e 20% do produto interno bruto de todo o Estado ucraniano – têm, nos últimos vinte e três anos, servido apenas para que, à conta deles, homens e mulheres do Donbass, vivam os territórios ocidentais da Ucrânia.
    Foi justa e nobre a luta dos cidadãos de Donetsk e de Lugansk pela sua independência, luta que mereceu e concitou todo o apoio da classe operária e dos povos da Europa.
    Felicitamos, pois, o povo de Donetsk e de Lugansk pela sua grande vitória.
    Mas a luta, agora para garantir e consolidar a sua independência, não terminou ainda, e pode até acontecer que, para além das dezenas de mortos que já custou, venha ainda a custar muito sangue ao povo dos novos países independentes.
    O imperialismo americano, germânico e europeu – provocadores exclusivos da crise ucraniana – não desarmará facilmente e tudo fará para aniquilar a independência dos dois novos países e submeter os seus povos à exploração e opressão dos lacaios de Kiev.

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