As “*atividades inspectivas”: um Guião da cacografia do Estado

Depois de ter partido sem resolver o problema, Paulo Portas acaba de contribuir para um terrível golpe desferido no sonho que alguns persistem em manter acerca da aplicação do Acordo Ortográfico de 1990. Por seu turno, se Paul Krugman soubesse português e tivesse lido o Guião ontem apresentado, os parágrafos de John Taylor seriam relegados para o segundo posto.

Efectivamente, fazendo um pequeno apanhado de co-ocorrências presentes neste Guião

  • acção (p. 32) e ação (p. 39)
  • adopção (p. 10) e adoção (p. 110)
  • aspecto (p. 12) e aspeto (p. 72)
  • activo (p. 55) e ativa (p. 84)
  • actividade (p. 8 ) e atividade (p. 69)
  • actual (p. 11) e atual (p. 81)
  • actualmente (p. 47) e atualmente (p. 93)
  • correcção (p. 21) e correção (p. 62)
  • direcção (p. 14) e direção (p. 72)
  • directa (p. 19) e direta (p. 37)
  • electrónica (p. 109) e eletrónica (p. 110)
  • exactamente (p. 10) e exatamente (p. 104)
  • excepcional (p. 101) e excecional (p. 63)
  • factor (p. 95) e fator (p. 96)
  • inspecção (p.60) e inspeção (p. 60) — exactamente, p. 60;
  • objectivo (p. 67) e objetivo (p. 63)
  • percepção (p. 42) e perceção (p. 57)
  • projecto (p. 73) e projetos (p. 73)— efectivamente, p. 73;

  • protecção (p. 60) e proteção (p. 61)
  • sector (p. 80) e setor (p. 87)
  • trajectória (p. 40) e trajetória (p. 101),

espera-se, obviamente, uma elevada frequência de pérolas como

A consagração de uma carta de missão para a CGD representa um passo em frente e o escrutínio anual dos seus objectivos permitirá assinalar o respetivo grau de cumprimento (p. 64)

ou

Uma nova geração de reformas no Estado tem de ser coerente com a trajectória de garantir que há consolidação orçamental. Temos, no horizonte, um défice de 2,5% em 2015; e temos objetivos de médio prazo plasmados tanto no Tratado, como no Documento de Estratégia Orçamental. Assinale-se, ainda, a necessidade de retornar a nossa dívida pública a valores aceitáveis nas próximas décadas (p. 40)

ou

A margem de manobra do nosso país é aquela que é conferida pelo facto de sermos globalmente um país cumpridor. Foi isso que já permitiu uma redução na taxa de juro praticada, a importante extensão de maturidades dos  nossos  empréstimos  e  correções  nas  metas  orçamentais estabelecidas. A percepção sobre Portugal melhorou significativamente; o nosso país, como a Irlanda, pode e deve ser um caso de ajustamento com um final positivo (p. 42)

ou ainda

É conhecido, ainda, que as experiências de simplificação e de desmaterialização administrativas dos últimos anos já mudaram em muitos domínios a relação direta do Estado com os cidadãos e agentes económicos: são exemplos paradigmáticos os setores dos registos, da administração fiscal, da saúde (nomeadamente, a prescrição electrónica) ou dos licenciamentos das atividades económicas (licenciamento zero), onde a digitalização avançou (p. 109)

e não esquecendo quer

deve, ainda, ser seriamente equacionada a reforma da função inspectiva do  Estado. Algumas Inspecções-Gerais têm demasiada especificidade para poderem ser integradas; outras não. Mas se é certo que um Estado menos pesado na economia deve acautelar devidamente, não apenas as funções reguladoras e de supervisão, como também as funções de inspecção, então fará sentido agregar inspeções e reforçar a sua autoridade e prestígio (p. 48)

quer

As falhas de supervisão muito sérias quanto a atividades criminais ou irregulares em parcelas do sistema financeiro, com elevado custo para o contribuinte; a dificuldade em detetar, a tempo, procedimentos de risco para lá do aceitável; a permissividade em relação a práticas abusivas no setor  da  concorrência;  algum  desinteresse  pela  qualificação  das atividades  inspectivas  dos  próprios  Ministérios,  resultaram, cumulativamente,  numa  diminuição  da  confiança  necessária  nestas funções de regulação, supervisão e inspeção (pp. 60-1).

Ao longo de todo o Guião, temos este triste espectáculo cacográfico que não contribui decerto para o Estado “reforçar a sua autoridade e prestígio”. Este é tão-somente mais um daqueles episódios de um folhetim que já conhecemos. Porque “o Estado português continua a comprovar a crónica inaplicabilidade do Acordo Ortográfico de 1990″ e “um Estado que não sabe escrever não pode impor uma ortografia aos seus cidadãos”. Não, não somos nós, aqui, muito sossegados, a acabar de ler este texto. É o Estado.

Comments

  1. «…um Estado que não sabe escrever não pode impor uma ortografia aos seus cidadãos» — Subscrevo na íntegra e aplaudo de pé.

  2. Subscrevo. Só espero que alguém tenha o bom senso de acabar de uma vez por todas com esta paródia, que tanto dano está a causar ao País real.

  3. A dupla grafia referida pode ser explicado. Formulemos hipóteses: 1ª o documento foi escrito a várias mãos, daí o seu “esquerdismo” ou “direitismo” da dupla grafia; 2º o documento foi redigido à pressa a uma mão, e não houve revisor de provas para não fazer gastos desnecessários, pelo que o escriba não pôde impedir o deslize para imbutir o passado no presente da língua escrita, querendo com isso sinalizar a relevância que deve ser dada à tradição; 3º Portas usou a dupla grafia com um objetivo político mais vasto, a ilusão de que assim poderia congraçar à sua caceitação pelas forças à direita e à esquerda, gerando assim uma unidade orgânica de que ele era o mago.
    Outras hipóteses haverá, mas espero que outros “cientistas” completem o painel, falsifiquem as hipóteses com factos ou argumentos, porque o problema em questão é relevante, e todos os braços são poucos para a tarefa.
    E por ora, despeço-me com cordialidade.
    Vasco Tomás

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  1. […] oportunidade para um exercício de redacção. Convém que utilizem correctores, Se utilizarem ‘corretores’, está o caldo (de novo) […]

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