as culturas da cultura:infantil, adulto, erudito (III Parte)

em procura de habilitações

3ª Parte excerto um livro meu: O imaginário das crianças. Os silêncios da cultura oral, 1ª e 2ª edição, Fim de Século. Uso o texto de 2ª edição, 2007

A cultura dos doutores

Queira o leitor ter a paciência de entender que me refiro àqueles seres, distantes das aldeias, que pensam por e para a infância.

Não me refiro a eruditos locais, dos quais já falei antes. Vou referir – me ao conjunto de pessoas que se exprimem por meio de textos e domesticam o imaginário local da criança, quer dizer, do futuro adulto.

O adulto é, como temos visto, uma criatura de compromisso: aceita sem sentimento e emoção os deveres e responsabilidades que assume, vive no meio da reciprocidade e da solidariedade e não foge dos deveres sociais que estão, normalmente,

para além de si próprio e do seu pequeno grupo doméstico. O adulto vive para além do prazer, como diria Freud (1920). Contudo, o seu comportamento social pode dar-lhe uma serenidade e uma calma dentro das quais podem entrar, ou ter lugar também, a alegria e a tristeza, as quais, assumidas, facilitam a interacção e a comunicação com os outros, ajudam à delimitação do próprio ser e a delimitar o ser dos outros. Esta individualização, ainda não construída, não existente na infância, é parte da interacção entre essas duas culturas que já referi.

A cultura do doutor é diferente. É, no entanto, igualmente importante, por ser intermediária entre a do adulto e a da criança.

É preciso, antes, definir para o leitor o que entendo por doutor: é o intelectual que percebe e analisa o real de uma forma racional, abstracta, que está na posse do saber erudito ou científico herdado de vários séculos de conhecimento experimental. Para as crianças da aldeia, o doutor faz parte de um conjunto de adultos, para além dos significativos. O personagem é douto porque domina, ou parece dominar, esse saber que apresenta o real teoricamente e faz do real uma teoria sem sentimentos. É, com certeza, uma pessoa que faz parte da sua cultura. Pode ou não falar a mesma língua das crianças ou dos adultos que ensina. Pode aceitar os mesmos princípios de reprodução que os seus leitores, tem sentimentos e vida quotidiana como o resto do grupo. Mas vê e ensina esse comportamento por meio de símbolos universalizantes e metafóricos (Lacan, 1953; Bourdieu, 1978; Iturra, 1986), através de um método que ordena a sua lógica de maneira diferente da lógica dos não doutores.

Emprego este conceito porque é um hábito da Europa Ocidental, especificamente em Portugal, denominar desta maneira quem parece ser capaz de generalizar o que se vê através de uma teoria, especialmente se possui uma habilitação académica. No

Século XII, a Europa fundou e criou um conjunto de grupos para interpretar os factos. Começou pela Universidade, como a de Paris; as de Oxford e Cambridge na Grã-Bretanha, outras em Itália, Espanha e Portugal; ao mesmo tempo, desenvolveu-se um movimento de criação de escolas para crianças em Veneza nas quais se ensina contabilidade e a tratar de mercadorias e troca.

No século XIX, bem sabemos, organizou-se a escola para treinar os pequenos nos saberes dos adultos, saberes especializados, diferentes e diversos dos que o quotidiano exigia na prática. Um ensino de signos subordinado a uma simbologia mais ampla que a simbologia dos grupos locais, e que passou a ser o saber desejado e dominante no governo da interacção, até aos dias de hoje: a escrita, a leitura e a aritmética. A própria legislação dos Estados começou, pouco a pouco, a ocupar-se com a regulamentação do acesso a uma instituição que fosse capaz de expandir entre toda a população o conhecimento e, também, a entregar instrumentos de saber, colocando toda a população sob o mesmo tipo de entendimento. O domínio da tecnologia, quer para a indústria, quer para o campo, acabou por fazer do conjunto de indivíduos dos diversos grupos sociais, como tenho já dito em outros textos (Iturra, 1990b e 1991), cidadãos capazes de entender as formas dominantes de fazer trocas, de produzir e comerciar, assim como capazes de entender a lei unificadora (v. Assier-Andrieu, 1987; Hosbawm, 1975 e 1994; Hazard, 1939). A cultura do doutor é a teoria que faz do real uma metáfora espalhada obrigatoriamente, e por igual, entre a população.

Bem pode o doutor ser alguém que participe da cultura nacional, mas o seu saber acaba por ser reificante do quotidiano. Como sobre este tipo de análise se têm debruçado muitos autores, especialmente os que estudam, professores, não vou discutir o assunto neste texto (v. Mónica, 1978; Cortesão, 1993; Stoer, 1992; Bernstein, 1971; Durkheim, 1938; Bourdieu, 1984; Cruzeiro, 1990; Benavente, 1990; Nóvoa, 1991 e 1992; Canário, 1992, etc.).

O que me interessa dizer é mais simples e directo: todo o adulto que vive a fantasia para poder optar, envia a criança, que vive o real para poder agir e entender, a uma instituição que passa a ser central na vida de todos: a escola, seja esta primária, secundária ou, eventualmente, universitária. A escola é uma instituição formal, hoje em dia obrigatória, que treina a população em conhecimentos teóricos e em formas de interacção diferentes da solidariedade vicinal ou familiar ou de amizade. Mas a simbologia usada na escola para representar o real, mesmo na escola actual, é de tal forma diferente da do quotidiano que faz do texto que treina um puzzle para os mais novos, os quais acabam por não o entender, embora o memorizem para serem bem-sucedidos, (Iturra, 1990; Cortesão, 1993; Benavente, 1990).

Tem chamado a minha atenção o tipo de textos que são utilizados na escola para orientar as crianças dentro do real que o adulto doutor define, e que contrasta com o real que a criança entende dentro do seu imaginário. A pequenada recebe, hoje em dia, definições que necessariamente não surgem aos seus olhos.

Aí, onde há uma terra que é vista pela criança ser trabalhada para produzir e poder vender e assim assegurar a reprodução, a lição fala de que “O Homem foi transformando o meio em que vivemos como uma necessidade que o Homem tem” (pág. 46, 4.º ano), embora não acrescente de que necessidade se trata. Convida, em seguida, o estudante a “mostrar respeito e carinho pela vida” (pág. 46, texto 4.º ano, 1988). A ideia seguinte, à qual o leitor é conduzido, é a de que “a Natureza precisa de plantas, animais, rochas, água e montanhas. Precisa de ar puro, aves, insectos, de chuva e de sol. Precisa de flores e do chilrear dos passarinhos”

(pág. 47), acrescentando, em destaque: “E o Homem precisa da

Natureza”. Esta frase merece um comentário para entender como o saber dos doutores tenciona incutir ideias por meio de metáforas, aparentemente verdadeiras, expressas em frases curtas e sem contexto. Em primeiro lugar, dota de personalidade uma entidade material que, para a infância, é trivial, habitual e sem vida. A forma e o conteúdo do parágrafo, como de resto de todo o texto, desfocam os aspectos importantes da reprodução social que constituem ideias motoras da cultura. O texto de Meio Físico e Social, que tenho vindo a citar, coloca os seres humanos acima de tudo, sem mencionar que eles próprios são parte da dita natureza. E faz um relato, no pretérito perfeito, de tudo o que tem acontecido na construção do meio físico que é também designado social pelos “sacrifícios que são necessários”; porque, acrescenta, “o homem precisa de derrubar florestas, matar animais, desfazer rochas, perfurar montanhas, desviar rios; para fazer casas, para abrir estradas, para levantar fábricas, para construir pontes, para cultivar terrenos” (pág. 47). Estas ideias são úteis para entender o agir do ser humano sobre a matéria, apresentadas como se o pensamento da criança fosse analógico, isto é, devolvendo por escrito o que se vê e se sabe experiencialmente.

O saber do doutor omite um aspecto central na explicação que toda a criança conhece já: a finalidade económica com que o agir é feita, factor desprezável por material. A cultura, dentro da qual o saber científico é transmitido, é uma cultura que idealiza ou fantasia com o real para o qual está a preparar o futuro produtor.

O objectivo de uma análise que omite o elo central do real deve ser criar agentes produtores cujo objectivo na vida passe a ser o trabalho produtivo e não o debate de ideias. O texto que tenho usado, para explorar as formas e conteúdos das teorias experimentais usadas no ensino, romantiza o real para quem o conhece de forma pragmática. Eu diria que este tipo de texto procura criar uma adesão emotiva à aprendizagem racional, enquanto ensina comportamentos sociais. Corresponde, por um lado, aos factos; por outro lado, os factos estão organizados para entusiasmar, para dinamizar abstractamente a mente que é ensinada. Noutras instâncias afectivas, como a catequese e o lar, o mito de que o trabalho é aborrecido e fruto do pecado e culpa do Homem trava a dinâmica produtiva e o imaginário económico que cria riqueza industrial: o lucro. De facto, trabalhar não é fácil nem tem beleza em si. A solidariedade de que nos falava Durkheim (1899) desaparece perante o que deve ser ensinado hoje: a concorrência.

Pode existir amor e coesão entre as pessoas, mas o que é dominante é a concorrência, o ganhar aos outros, comparar resultados de afazeres; porque é bom bater os vizinhos e ser melhor do que eles, não porque isso seja em si uma satisfação ou um avanço para o desenvolvimento do indivíduo. O texto é um continuado salientar do etnocentrismo, uma forma de apresentar o que de melhor os nacionais têm feito através do tempo, projectando os cidadãos de hoje num passado de sucessos e glória; assim se explica sermos descendentes dos proprietários do universo. O debate político que vai decorrendo entretanto, o facto de um país como Portugal viver na cauda socioeconómica e intelectual de uma União Monetária Europeia, não é objecto de estudo nem de análise. Tudo se passa na ciência do doutor como se houvesse um constante entretenimento, um permanente atingir de objectivos que não são os do discente.

Afiro os resultados escolares das crianças que tenho estudado, e posso apreciar o bem que fazem o seu trabalho do lar e o pobre que é o resultado da aprendizagem escolar. Esta aprendizagem está separada do comportamento pragmático, estando a criança exposta a duas realidades diferentes: uma, o que o grupo doméstico empreende dentro do contexto da teoria económica com o qual se debate; outra, a euforia intelectual que a letra escrita deve causar na mente infantil. Este desencontro resolve-se de forma muito simples: por meio do pensamento mágico com que a mente é alimentada. No texto de matemática para o 1.º e 2.º ano, a primeira etapa do primeiro ciclo, empregam-se histórias como Branca de Neve, O Sapo, que fazem magia com a geometria e outras. É o emprego de ideias culturais de um grupo de população, tidas como universais para o conjunto de crianças, como se estas fossem todas iguais e semelhantes no Estado-nação. Eu diria que é a maneira de impedir a entrada dos pequenos nas ideias que criam ideias que nos movimentam na interacção social. A iniciação à leitura do 1.º ano, por exemplo, apresenta símbolos que a burguesia aprecia, como meninos loiros que vão elegantemente à escola, sem nunca terem um aborrecimento. As ideias assim simbolizadas pretendem representar uma cultura unívoca, feliz, uma cultura cujo objectivo é o indivíduo separado de todos os factores do real, que possui meios que permitem uma distensão e uma felicidade, pelo menos, externa. Os desenhos deste texto mostram dois meninos sorridentes, Nuno e Valéria, a confrontarem-se se com o mundo que existe fora deles, o mundo que não lhes diz respeito.

Longe de mim pensar que é infelicidade o que se deve entregar à infância; bem como longe de mim pensar que o doutor tem uma vida atribulada, excepto, talvez, quando deve preparar provas para ser avaliado, ou quando sofre emotivamente, quando é enganado ou entende mal. O próprio pequeno, que já tem suficientes atribulações para entender as letras e os números, já tem a sua quota de infelicidade, a par e passo com a alegria. No entanto, se a vida social tem altos e baixos, alegrias e infelicidade; se é uma corrida para ganhar dinheiro, porquê apresentar só uma parte do real que parece ser mágico? É uma maneira de formar seres humanos que fiquem logo desapontados com as actividades, deveres e obrigações, e não entendam a sua própria tristeza, depressões e perdas.

Para um mundo cujo objectivo é ganhar, a felicidade aparece como o meio utilizado pelos doutores para incutir o saber. No texto Meu Livro, Meu Amigo (1987), para o 4.º ano de escolaridade, aparecem, logo ao início, um menino e uma menina que, no meio da relva e das flores e cada um com o seu animal preferido ao pé, lêem sorridentes e com olhos imaginários. É verdade que o imaginário de crianças é assim, bem trabalhado pela ciência que sabe o duro e difícil que é passar do afazer emotivo da vizinhança e do lar para o racional da instituição que ensina teoria. Adquirir o conhecimento é um trabalho duro e não existem elementos de apoio nas casas: o confronto com o saber é silencioso e isolado.

Excepto na casa do próprio doutor que, por viver no meio dos livros e teorias, ladeia os mais novos com abstracções que servem depois para aprender. O conjunto de textos, o convívio com docentes dos vários ciclos de ensino, a minha vida nas aldeias e na universidade como docente levam-me a propor a hipótese de que o saber, a cultura do doutor, composta para o quotidiano pela própria actividade social, é no campo intelectual uma tentativa de afastar a pequenada do que é denominado subjectivo, para entrar no campo analítico do objectivo. Quer dizer, uma passagem do Decameron (1353) para Descartes e Pascal. Uma transição para formas de interacção governadas por uma independência sábia, livre, independente e autónoma, ainda que sem entender, ou dar a entender, opções, alternativas e conjunturas.

A análise destes últimos três conceitos permite um melhor entendimento da interacção social e dos objectivos individuais, autónomos, onde cada um possa ser recurso afectivo e racional de si próprio para depois entrar em contacto necessário com os outros, isto é, partilhar.

De opções e alternativas falei quando fiz referência aos adultos.

De conjuntura é preciso falar agora. A passagem do tempo é um facto tão habitual que nem reparamos nele. Os pequenos, ainda menos. É como se tudo fosse igual, como se, durante um período de vida, o meio social e material fossem imutáveis, atravessados com o orgulho de crescer: cada dia que passa, mais uma habilidade louvada pelos adultos. Este facto é uma continuidade no meio de um conjunto de mudanças e desenvolvimentos que acontecem em redor do ser humano. O erudito, ao qual tenho chamado doutor ao longo do texto, retira da infância a capacidade de entender a variabilidade das relações e do poder. Do poder e da sua mudança, não se fala nos manuais, embora se diga que houve reis, expansão territorial, ou conceitos abstractos como democracia ou ditadura, todos eles mencionados como factos que não parecem influenciar os comportamentos; as lições continuam situadas no tempo remoto ou no presente abstracto.

É como se a cultura erudita pensasse que a criança entrega a responsabilidade dos acontecimentos aos adultos que lidam com eles. São o professor, ou a professora, os pais e os avós, ou outros adultos, que detêm o poder do tempo e controlam as mudanças do que acontece em casa, na escola, na rua, nos sítios vizinhos.

O tempo histórico, que influencia o comportamento e o entendimento dos factos e das relações, desaparece da afectividade individual com a leitura e a aprendizagem da criança. Assim, o real não é apresentado como heterogeneidade, como processo que faz variar o que existe; o real é apresentado, com sábia e estratégica fantasia, como se fosse estável. No entanto, a criança apercebe-se de que há um antes e um agora, um ontem e um hoje; e distingue idades em correlação com capacidades. O jogo é um dos locais onde isto se aprende. As palavras grande, puto, velhote, moço, rapariga,

senhora, senhor denotam a percepção da passagem do tempo.

Mas a influência que esta passagem tem em cada ser, e nas interacções sociais, não surge nos textos e, em consequência, na memória. A construção da mesma é resultado do presente e das decisões da autoridade; ou do milagre que uma divindade possa efectuar.

A conjuntura é a época de curta duração onde as interacções sociais e o seu governo mudam; é um tempo propício para transitar para outros comportamentos. Influenciam a economia, a técnica, o correr das ideias, o poder que as coordena. O conceito de transição, que designa o que ocorre, cada vez que uma nova tecnologia passa a ser dominante, como tenho definido em outros textos (1984 e 1989), quer eu, quer Godelier, quer um conjunto de colegas com os quais trabalhamos o conceito desde

1979 (v. Godelier e a Revue de Sciences Sociales, n.º 114), e o de conjuntura, desenvolvido especialmente por Gramsci (1921), analisam o movimento da sociedade como entidade política e religiosa.

Durkheim (1889) tinha já uma clara ideia da importância das mudanças. A cultura do doutor, que conduz ao homogéneo como ideal de vida, mesmo que nas aulas possa fazer referências orais a factos passados que lhe parecem importantes para entender o presente, omite o que eu ando sempre a referir: comparar comportamentos (ou uso do método comparativo) para que a infância entenda cedo a coexistência da felicidade e da tristeza.

O método comparativo permite observar comportamentos, instituições e ideias de uma mesma cultura, ou de culturas diferentes em confronto, e deduzir dos mesmos a reprodução da conduta.

O facto que mais marca a passagem do tempo pela vida na infância é o do ritual, assim como o da doença e os seus processos de readaptação à ordem social: são eles que, na prática, definem o tempo ético do grupo. Vê-se esta ideia na lição do livro Meu Livro, Meu Amigo (1987), num texto cujo título é “Não Quero” (pág. 95): trata do amor à verdade, apesar do confronto com a autoridade e da eventual punição, e é uma história de Guerra Junqueiro, onde se definem três comportamentos: o desejo individual que contraria a norma social (não vou à escola), o remorso que a consciência social coloca na mente do rapaz do conto, e a figura – punitiva – da mãe que define a verdade e a honra da casa. A cultura dos doutores, em consequência, é o conjunto estruturado da racionalidade derivada de Descartes (1637) que serve para submeter ao respeito das normas os pequenos que tacteiam na vida social.

A cultura erudita isola a infância do real total, subordinando-a ao real parcial definido institucionalmente para acautelar a reprodução nacional. É assim que se preparam trabalhadores, na nossa sociedade industrial, que produzam bens para o mercado que procura, com eles, lucro privado que o Estado converte em renda nacional.

Subordinação e substituição

As três culturas vivem uma interacção que não é inocente.

Tem um propósito que diz respeito à conjunturalidade do tempo, desta vez o de cada indivíduo ao longo da sua vida; e o problema que a mortalidade humana, bem como os nascimentos, representa para o grupo. Especialmente numa sociedade como a ocidental, onde tem deixado de haver hierarquias, saberes ou ofícios herdados, e tem passado a imperar a mais requintada autonomia e individualidade.

No entanto, é necessário lembrar um facto estrutural: tanto os adultos, eruditos ou não, como as crianças vivem dentro dos parâmetros de uma cultura católica, isto é, onde os conceitos de pecado, culpa e expiação são elaborados cuidadosamente para estabelecer os limites do comportamento.

A culpa é um sentimento criado para subordinar os seres humanos a uma disciplina social, onde as iniciativas e comportamentos individuais estão controlados pelo próprio grupo e as suas ideias.

É claro que a sociedade é um conjunto de seres humanos que são criados para ser indivíduos autónomos, com capacidade de decisão e habilidade para desenvolver o seu imaginário em benefício pessoal e do seu grupo. Emerge, porém, uma contradição entre livre vontade e solidariedade. Esta contradição, sentida individualmente por todos, traz consigo o perigo da agressividade entre os seres humanos. O grupo organiza o conceito de pecado para salvaguardar uma conduta positiva que permita uma interacção solidária. O conceito é socializado de forma detalhada, subordinando as pessoas a um agir homogéneo; por isso, é guardado nas instâncias políticas, nos mitos, nos ritos e nas instituições, instâncias que colaboram no ensino dos pequenos. É por isto que a inter-relação entre as três culturas é de subordinação dos mais fracos, os que pecam, aos tidos por mais fortes na ética e na virtude.

O conceito de subordinação (Iturra, 1989) manifesta-se numa afectividade, simultaneamente de sinal positivo e negativo: no positivo, é a entrega da afectividade e do amor que gera uma relação íntima entre pessoas (normalmente, a criança adere aos adultos e desenvolve um vínculo estreito, quanto o adulto é dinamizador do afazer e do comportamento); no negativo, é o fugir da razão que é apresentada e agir conforme se pensa e sente, ou conforme o que o seu próprio grupo de pares exige. No caso do

Nuno que não quer ser pastor, a sua atitude parece ambígua: por um lado, faz exactamente como o pai manda; por outro, observa outras possibilidades que o seu imaginário lhe oferece. As regras e normas, quer públicas quer privadas, resguardam a existência de limites dentro do necessário estímulo à autonomia necessária para viver dentro de uma sociedade concorrencial como a nossa; e os rituais são formas de introduzir cada indivíduo no comportamento esperado para a sua idade. A listagem dos pecados, quer dizer, a lista do que deve ser feito e do que deve ser evitado, define esses limites para a conduta, e o olhar do grupo social colabora ou reforça o controlo social, porque resguarda e assegura o comportamento conforme o código estabelecido pela mente humana.

Assim, o Nuno sabe que deve aceitar o que o pai manda: tratar das ovelhas; ao mesmo tempo, observa e participa das actividades da sua família; e, por último, o pai não se zanga por o pequeno querer experimentar outras vias. O pai entende o seu papel de adulto orientador e, ao mesmo tempo, estimulador do imaginário do seu filho que, um dia, devido à passagem do tempo, virá a substituí-lo nas suas actividades, como pastor ou tractorista.

Não é, pois, só e apenas o fixar dos limites do comportamento das pessoas que é uma tarefa social ou um objectivo; há também que entender o objectivo individual para modelá-lo. Estes limites do agir são necessários devido ao crescimento de novos seres humanos e à chegada de outros. Há sempre seres humanos a aparecer no grupo, porque nascem; e seres humanos a desaparecer porque perdem a sua habilidade para entender ou porque morrem.

Os que nascem precisam de ser treinados para entender as normas de comportamento, os conceitos e os símbolos, aprender o código de comunicação entre pessoas, a língua, bem como o significado das palavras e do lugar que ocupa cada ser humano no meio dos outros. Ao mesmo tempo, a sociedade quer continuar e, como resultado, está a prever a desaparição das pessoas.

Esta desaparição é a morte, mas também a doença ou a ausência.

O que é um processo contínuo para a reprodução social é o trabalho, seja manual ou especializado. E é para esse trabalho, que envolve gestão de recursos, que os mais novos são habilitados, pelo simples facto de o desenvolverem em conjunto com os adultos.

Normalmente, a Antropologia trata disto quando estuda os sistemas de herança. Mas é no dia-a-dia que a aprendizagem que habilita para substituir tem lugar. A interacção entre as culturas infantil e adulta tem este objectivo. A do erudito ou cultura doutoral retira o neófito do seu grupo social e investe nele saberes e ideias que o incorporam noutras alternativas. Sendo dominante, a tecnologia industrial de reprodução está baseada na racionalidade da gestão; a habilitação que esta cultura dá serve para abrir alternativas que retiram o trabalho do grupo local e o colocam em lugares que dão lucro a outros. Acontece com o caso do David: cresceu no meio do trabalho rural e, já mais adulto, passou a ser empregado de uma padaria, embora sem abandonar os estudos, que en este ano de 2010, o fez polícia da Guarda Nacional Republicana. Opções procuradas após aprendizagem do que é o real.

E desta maneira acontece com todos os pequenos que, na medida do seu crescimento, vão abandonando o lugar no qual têm morado para assistir às aulas do segundo e terceiro ciclos e, eventualmente, frequentar o ensino superior. Coo o Joel Ferreira, Anabela Lopes e outros, dos que tenho falado en outros cantos deste livro.

A substituição fica em risco, porque a permanência noutros lugares abre novas possibilidades, desconhecidas no sítio de origem.

Com este risco pelo meio das relações (o facto de se saber que o mundo é imenso e que há formas que acabam com a vida social), a substituição para a continuidade social é assegurada pela dita subordinação. Dos grupos domésticos que tenho conhecido na vida rural e na vida urbana, não existe quase nenhum que não esteja já a preparar, e até a desejar, a saída do lar dos mais novos.

As três culturas sabem claramente que o futuro existe para alguém, na medida em que tenha trabalho algures. Este trabalho fora do grupo acaba por ser a segurança da substituição, ao entregar recursos alternativos ao tradicional modo de fazer as coisas; é também resultado da prescrição que manda que as crianças aprendam fora do lugar onde foram feitas. A cultura do adulto é a via que apoia a cultura da criança para subordinar-se à cultura do doutor.