Portugal Fatimizado

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bandeira do Estado Vaticano

(num país anticlerical)

Bem sei que escrevi e publiquei este texto no último decénio do século XX, em 1999, 13 de Maio, e no Aventar, em 2009. Foi um ensaio de grande sucesso, publicado sem a minha licença, em Revistas científicas da Espanha, na Galiza, traduzido para castelhano na América Latina e nas Revistas em que tenho sido fundador e escritor em Portugal, bem como pela Cambridge University Press. Porque nomear tantos galardões? Por causa de me parecer que este texto é conveniente para estes dias que vivemos, sem governo, sem Assembleia de Deputados, apenas pelo poder do Presidente da República, a quem tenho visto, com a sua mulher, ou na Missa ou no Santuário de Fátima e comungarem de joelhos sobre as pedra da grande praça em frente da Basílica, para se sacrificar em bem do povo… penso eu. Dias em que eu proferia conferências a freiras e padres, com a presença do antigo Bispo que Leiria Fátima, que teve um desencontro comigo e mandou que nunca mais fosse convidado. Ainda bem, a doença que me tem mantido apenas a escrever, não me permite falar em público por mais de meia hora. Nem Fátima me curava…

No entanto, como andamos em eleições para o poder legislativo e os que correm são homens de fé verdadeira, outros pretendem ser, por causa dos votos que precisam para voltarem a ser deputados, e os que ocultam a sua fé por conveniência de serviço, como o Ministro de Defesa Nacional, o meu grande amigo Augusto Santos Silva

Porque estou interessado em saber as crenças e a adesão à fé dos nossos governantes? O motivo é ver que os mais beatos, excluindo ao meu amigo Augusto, jogam às rasteiras, como Pedro Passos Coelho, como certo de ser o próximo PM, com o apoio calado do membro do seu partido e que preside o país. Homens de fé que no dia prévio à demissão de Sócrates, católico oculto, como Mário Soares, Católico aberto, fez para ele ser derrubado.

Pareceu-me que era necessário lembrar as ideias santas, com ironia, para que o próximo governo se lembre de como governar um país de crentes abertos, ocultos, ou disfarçados.

Passo ao texto:

Com a licença das pessoas que acreditam em Deus. Queiram estimar o que vou dizer, apenas como uma análise do que posso apreciar na população. Dessa população da qual eu também sou parte. Uma população não apenas portuguesa, mas ocidental e suas antigas colónias. Com a licença das pessoas que acreditam serem criadas por uma divindade eterna e omnipotente. Uma divindade que dá descanso eterno no prazer do não trabalho, ou trabalho eterno na ira do mau comportamento. Como cientista social, só posso observar o agir dessas pessoas e respeitar a sua forma de pensar e de sentir a existência duma divindade, o que é denominado fé. Fé na existência duma testemunha que observa todo esse agir, desejos, pensamentos. Como se fizesse, porém, observação participante dos afazeres de todos, em todo o sítio.

1. Acreditar que provêm da circulação das ideias entre pessoas ao longo do tempo. Que nasce do que nós próprios observamos como ritual da nossa conduta, como explicação do que pensamos ser correcto. Eu denominaria esta ideia, a lógica religiosa do comportamento. Uma lógica que advém do que nós gostamos de denominar como pensamento analógico, ou pensamento retirado do que somos capazes de observar. Um pensamento mímico, que reproduz fora da interacção quotidiana, o ideal do que gostaríamos de viver: eternamente, quer dizer sem tempo; omnipotente, quer dizer fazer sem comprometer o corpo, a saúde, as forças: só com o pensamento. Um pensamento analógico é a lógica orientada pela abstracção do real, em símbolos. O mundo é de interacção, é caótico na sua interacção, é hierárquico na sua interacção, é tendencialmente igual na sua interacção. E, no entanto, socialmente desigual na dita interacção. Caótico, porque há a luta pelo poder. Caótico, porque há a luta pelo ganhar. Caótico, porque é preciso dar nas vistas. Dar nas vistas com a roupa, com os factores que dizem publicamente quanto é que temos, logo, quanto podemos. Caótico, porque num dia ama uma pessoa, logo a seguir, passamos a amar outra. Caótico, porque abandona. Caóticos, enfim, porque subjugamos outros a fazerem para poucos de nós lucrarem. Para usarmos o que somos como garra do poder. Garra que agarra a opção dos outros, ao nosso pensar, sentir, interpretar.

Se o mundo, na sua interacção é tão caótico, como é que vivemos em paz?

Como é que podemos viver em paz? Queremos viver calmos, serenos, em comunhão de debate, em respeito pelo contexto de ideais e feitos do qual depende o pensamento e o agir do outro. Queremos viver uma vida de qualidade, na qual as nossas acções sejam respeitadas e sábias no pensamento do outro. É esse ver, ouvir e calar até sermos perguntados ou solicitados, que vamos procurando na vida. Procura desaparecida a partir do dia em que o lucro económico, passa a ser um objectivo que define a paz procurada. Paz procurada na base dos outros fazerem por mim e para mim. E eu possa ser capaz de ocupar o meu tempo em tecer pensamentos, observar para decidir, desenhar as cores de pintura que desejo materializar, definir as leis pelas quais o outro e os outros todos, se devem orientar. E administrar a justiça que a minha mente pensa ser fundamental para o convívio sereno que me traz prazer. É o objectivo que tenho vindo a observar entre seres humanos de vários continentes e de vários grupos ao longo da minha (comprida) vida, já quase gasta e desejosa de acabar. Não por desilusão, mas sim por abatimento.

Abatimento que todo ser retira do processo estruturado de proibições que comanda a vida. Processo que é o conjunto de mandamentos e proibições que a mente humana obedece desde os anos milhentos. Quando os manuscritos dos Mandamentos começaram a aparecer. Esse que me dizem que aos domingos não devo trabalhar, que devo ser fiel à mãe e ao pai, e leal à companheira. Que me manda traçar um círculo entre o que é meu e o que é do outro e, ao mesmo tempo, fala da caridade de dar e entregar tudo o que eu tenho, a todos os que não têm. Um conjunto de contradições para orientar a minha disciplina e conservar o corpo descansado, esse corpo que serve, se estiver descansado, para trabalhar. Para trabalhar para os outros. Um limite entre o meu agir e o agir dos outros.

Imitando o que faz bem ao social, fugindo do que não deixa o social em paz, ainda que me apeteça não fugir. Sei que se não fujo desse segundo desejo de desandar pelo mandado, vou ficar melhor, andando que desandando. E andando, demanda de mim a lealdade ao compromisso social. Há esse ver, ouvir e calar e falar só quando for solicitada a minha opinião.

Entender ser só uma imagem das ideias que a humanidade me fez herdar, e não o original. O original é que vê, sabe, percebe antes, julga, decide.

Abatimento por estar cansado de debater entre iguais e não acumular riquezas entre seres que disputam, lucram, subordinam, afastam, não trazem o amor a si próprios nem amor aos demais. Abatimento pelas causas perdidas que cumprir o mandado, faz. Cria. Envergonha. Fuzila em vida. Mete a vida numa prisão vital. Prisão dita dourada. Mas que é preta.

Abatimento das contradições que o amar, dá. Que o esperar, dá. Abatimento que me disseram, era vida normal, por amor à imagem que devo imitar para ser bom. Que a política do religioso, denominada Igreja, manipula com os exemplos mais neurotizantes, que a obedecer me manda. É como ver a vida de Ghandi, é como ver a vida de São Vicente, a de Santo António, o Lenho da Cruz que me faz ressuscitar um dia. A mão de Teresa de Ávila, que tanto tempo acompanhou o ditador do país vizinho. Abatimentos por não entender porque são condecorados esses que mais matam pessoas, que mais roubam pessoas no salário, que mais exibem a sua capacidade de mandar, de se juntar, conjunturalmente, para se desfazer de quem pensa na persistência do servir. Abatimento, enfim, incutido na catequese que ensina a não dormir pelo temor dos sonhos, a não dizer pelo temor ao compromisso, a não amar com devoção e compromisso à paixão que esbarra nos pensamentos diferentes do meu. E que eu, posso bater, por não entender. Enfim, a contradição entre o mandado e o querer fazer. E cuja via é inventar uma fantasia para nunca dizer o que se quer.

2. Queira desculpar o leitor. Mas, já percebeu que vive num país anticlerical, berço da República? Que confunde a República com o não amar ao outro como um igual, como a si próprio? Não reparou o leitor, por acaso, que a República é cristã? E que cristã não quer dizer católica, ou anglicana, ou presbiteriana, ou budista, ou maometana?

Já percebeu que a lógica da sua cultura é a lógica do religioso, isto é, da ordem, do caos abatido e ordenado pelos mandamentos? E que esses mandamentos, mesmo no melhor dos ateus, vivem em nós? Quem de nós é poligínico, poliandrico, adúltero, bissexual, homossexual, ladrão, que penetra o círculo íntimo do outro? Que dessa intimidade do outro, fala em conversas de corredor? Que em conversas não digas a ninguém, tudo o que conta e tudo o que diz? E que tem um espelho fácil e simples para poder fazer como melhor entender, e se arrepender depois, na confissão? E os seus manuais, pelos quais percorre a sua situação ideal para ser sempre perdoado? E que ser sempre perdoado é a prática típica do amor ao próximo? Porém, pode-se sempre falar? Queiram desculpar os pais, formados na mais antiga catequese, a de Pio XI, a de João XXIII, e não na do João Paulo II, ou de Ratzinger no dia de hoje, ou de quem por ele escreveu, mas, por acaso, a disciplina do ser não está na lógica que, sem saber, os governa? Como governa os seus filhos? Num país cristão que nem tem reparado que a sua economia é derivada do pensamento de Agostinho de Hipona – esse São Agostinho – de Tomás de Aquino – esse São Tomás dominicano, em livros escritos há séculos (IV o primeiro, XII o segundo), em África A cidade de Deus; e em Paris e Peruggia, a Summa Teológica? Fontes básicas para o desconhecido Tratado de Economia Política do parisiense Henri de Montchretiènne do século XVI, do famoso Inquérito sobre a natureza e causas da Riqueza das Nações do filósofo e presbítero escocês Adam Smith do século XVIII, do seu homónimo actualizado Liberdade para Escolher de Milton e Rose Friedman de 1979? Esses textos que hoje nos governam e que são ensinados na catequese ou na conversa diária ou na prática de sermos bons parentes, vizinhos e amigos. Ou de cantarmos como Godinho já cantou, que força é essa amigo que te cresce nos dentes….

Quem entende de economia, é porque entende de religião. É porque, saiba ou não, todo princípio económico é derivado dos textos antigos e modernizados nos recentes e recalcados Direito Canónico feito Civil pelo original liberalismo de Napoleão Bonaparte. Esse que se fez Imperador para mandar nos reis e incutir o fim da escravatura subjugada do homem que deve dar a metade dos seus bens ao proprietário, ao patrão, ao banco. País fatimizado, todo o Ocidente. Que junta, sem dar por isso, o lucro e o credo. Esses conceitos batidos pela Enciclopédia já morta, ainda que cantada no Schiller de Beethoven, no Requiem do Mozart: alegria o primeiro, descanso o segundo. País fatimizado no qual aprendem as nossas crianças. Crianças às quais ensinamos o saber fazer económico, sem sabermos que essa lógica advém do religioso. Fatimizado, metáfora de vitimizada pela ignorada crença de que a lógica do religioso é a divina economia que perdoa juros e benefícios. Como dizem os manuais de confissão, esses que manipulam politicamente a dita lógica. Lógica religiosa que organiza toda a sociedade e toda a cultura: esse comportamento social interactivo, desejado igualitário, mas impossibilitado pela corrida que faz já sete séculos, o ocidente criou… Para travar quem ganha… Incentivando a concorrência… Fatimizando a meditação…

Mesmo no dia do desfile de milhares que pela estrada procuram alívio, à hoje ilusória necessidade de lucrar.

Porque o crédito que dá estatuto à vida, deve-se sempre pagar….aos modernos bonapartistas.

Epistemologia da criança assim criada. Saber sobre a criança. Um saber sem o qual não há médico que cure, analista que oriente, professor que ensine, pais que amem, catequista que ensine, actor que divirta, media que comunique como a divindade encarnada na economia, manda. E, se se manda e não se faz, ai do pecado! Que leva à pobreza como Max Weber, em 1905 diz na sua Ética Protestante. Reproduzida a partir do ético fundador, em 1776, esse inquérito sobre as causas e natureza da Riqueza das Nações, Adam Smith. Incutida em nós pelos cristãos novos Milton e Rose Friedman em 1979. Esses que eles fazem acreditarem na Liberdade para Escolher. Que nos ensinam que, se não fizermos como está mandado, andamos: da falta de lucro, à pobreza; da pobreza à solidão; da solidão à delinquência; da delinquência à prisão; da prisão, à solidão que na vida diária nos agarra. Até morrer. Sem ter. Sem ser.

Epistemologia da criança que o senhor leitor nem sabe que sabe e pratica de forma lógica, quer no santuário, quer no banco. Ao mesmo tempo. De forma igual. Com o mesmo espírito.

Donde, em vozes e badaladas… cantamos… calculamos… Avé, Avé…

Fátima, 13 de Maio de 1999- Parede, 1 de Abril de 2011

Raúl Iturra

Tchaikovsky, O Lago dos Cisnes, composto entre 1875 e1876

 

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