Quando a política se torna porca

Santana Castilho *

1. O período de discussão pública (que substantivamente foi privada) da proposta de revisão curricular terminou. Seguir-se-á o que já estava decidido: a imposição do “cratês”, em discurso indirecto, que o directo pertence a Gaspar e demais estrangeirados. Como fecho de brincadeira e para memória futura, eis o que me parece essencial:

  • O que Nuno Crato propôs é pontual e não tem outro fim que não seja a redução das despesas com a Educação. Se pretendesse mudar a política bipolar em que temos vivido há 37 anos, teria começado por envolver os profissionais da Educação na definição das metas de chegada para os diferentes ciclos do sistema de ensino e teria seguido, depois, um processo técnico óbvio: desenhar uma matriz de disciplinas, conceber os programas respectivos e definir as cargas horárias que os cumprissem. Crato inverteu o processo, como faria o sapateiro a quem obrigassem a decidir sobre currículo: fixou as horas lectivas e anunciou que ia pensar nas metas, sem tocar nos programas. Lamento a crueza, mas mostrou que a sua coluna de cientista é gelatinosa: um bafo de troika e um sopro de Gaspar bastaram para vergar a coerência mínima. A prosa que sustentou a proposta em análise e o fim das “competências essenciais” permitiu evidenciar que a imagem de rigor de Nuno Crato foi, apenas, uma fátua criação mediática. O que disse é vago e inaceitavelmente simplista. O que são “disciplinas estruturantes” e por que são as que ele decreta e não outras? Quais são os “conhecimentos fundamentais”? O que são o “ensino moderno e exigente” ou a “redução do controlo central do sistema educativo”, senão versões novas do “eduquês”, agora em dialecto “cratês”? Fundamentar e definir são acções que Crato reduz ao que ele acha. O cientista é, afinal, um “achista”. Crato cortou e Crato acrescentou aleatoriamente.

 

  • Chegaram ao sistema de ensino os primeiros jovens que aí vão ser obrigados a permanecer até aos 18 anos, quer queiram quer não. Se prolongar a escolaridade obrigatória foi um disparate, omitir das alterações curriculares qualquer reformulação do ensino profissional e pós-laboral é simplesmente irresponsável.

2. O “mercado”, essa entidade reverencial que subjuga a política e a torna cada vez mais porca, andou há anos a emprestar dinheiro sem critério, a todos e para tudo, na ganância do lucro imediato. Descobriu agora que, afinal, pode existir o risco de não reaver o que emprestou. Mas continua a emprestar, desde que os devedores falidos aceitem juros agiotas. Tem isto lógica? Tem! A da ganância. A crise grega rebentou em Maio de 2010. Desde aí, sob a batuta incompetente de Merkel e a capitulação dos políticos inferiores que lideram o velho continente, o vórtice recessivo não pára de crescer, cada vez mais agravado pelo aumento dos custos de financiamento, que arrastam os países, um após outro. O cidadão comum soçobra e deprime-se ante a voragem de um manancial de informação que esquece hoje o que debitou ontem. Mas da confusão emerge, claramente, uma evidência: os analistas mais credíveis dizem que estamos à beira do precipício e que a austeridade, por si só, não é solução e agravará os problemas. Lagarde assume-o claramente. Monti e Rajoy afirmam, sem eufemismos, que é necessário somar à austeridade políticas urgentes de crescimento e estabilização dos mercados. Á força da razão, que clama pela mutualização das dívidas soberanas e pela constituição de um fundo de resgate forte, como únicos processos para estancar a avalanche recessiva, responde a razão da força com a política porca: a ditadora Merkel, que já apeou Papandreu quando quis, propõe agora pôr no prego o que resta da soberania grega e substitui-la por um comissário seu, tutelar, que passaria a ir a despacho a Berlim, como já vai Passos Coelho.

3. Tem havido um consenso tácito sobre a necessidade de equilibrar as contas públicas e reduzir o défice externo. A divergência reside na forma de o conseguir. O Governo, o Banco de Portugal e a troika defendem uma terapia de choque e acreditam que assim mudam um paradigma de crescimento assente no consumo para um paradigma de crescimento baseado no aumento das exportações. Mas não mudam. Primeiro porque a retracção provocada está a ficar incontrolável. Depois porque os que poderiam comprar estão, eles próprios, em retracção. Terceiro, porque a nossa economia depende demasiado das pequenas empresas, que vivem do consumo e não podem ser substituídas à bruta, sem tempo nem talento. Finalmente, aquilo de que a política porca não quer falar. Há responsáveis pela crise. Houve decisões simplesmente erradas e decisões conscientemente dolosas, tomadas por quem vive obscenamente rico, incólume. O nível de equidade fiscal é porco. A austeridade massacrou os pobres e protegeu os mais ricos, pela forma mais desigual e feroz de toda a Europa. São fontes oficiais que o afirmam. Continuam as avenças, o “outsourcing” e as consultorias escandalosas, de milhões, protagonizadas pelo próprio Governo, pelo Banco de Portugal, por empresas públicas e por autarquias. O interesse público e a emergência financeira serviram para suspender a Constituição e legalizar o confisco do dinheiro dos funcionários públicos e dos reformados. Mas ainda não serviram para rever as parcerias público-privadas. Quando os velhos morrem sozinhos em casa e as crianças chegam à escola com fome, quando os estudantes abandonam as universidades porque o Estado recusa 10 mil bolsas, estas políticas, além de plutocratas, são porcas.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

Comments

  1. marai celeste ramos says:

    Crato (lisboeta para não ofender o alentejo) não teve aulas de religião e moral ou teria sido dispensado ou teria tido dificuldade em interpretação de textos – apenas teria decorado alguns e esqueceu – e nem percebo porque em tempos de presença assídua tinha aquele ar tão “seguro” e de repente “agarrou-se” a nada e logo caíu – a bengala tinha bom aspecto por fora mas estaba “bichada” por dentro – Bordado Pinheiro ou Abel Manta teria feito belos desenhos representativos da sua essência que não se via mas logo se revelou e deve ser muito infeliz de tão “mal amado” – mas não lhe cortaram os subsídios de natal e de férias carago e terá ganho e, ainda, subsídio de habitação porque, creio, “não mora aqui”

  2. sempre magníficos textos de lucidez e de coragem, é bom saber que há cidadãos assim

  3. José says:

    Toda a gente fala á sua maneira, está certo, cada cabeça sua sentença.. Politica suja, há. Mas o que tem feito os governos nestes ultimos anos ? Por tudo isto creio que este governo tem-os no sitio. è preciso governar o país, não assobiar para o lado

  4. Margarida Pinto says:

    Sou Professora com 15 anos de serviço no MEC (sempre com horários incompletos, mas conseguia sobreviver), não tive coragem de constituír uma familia com o receio da instabilidade da minha profissão (proteger inocentes que nunca tive). Porém, tenho a responsabilidade de assistir, apoiar, amar incondicionalmente uma MÃE de 85 anos (que vive de uma pensão de sobrevivência) e uma irmã que sofre de Hipilpsia (a qualquer momento necessita do meu apoio e presença). Daí, nunca poder distanciar-me muito da área onde resido para poder estar presente com aqueles que amo e lhes devo a minha Licenciatura e Profissionalização. Leccionei em 18 escolas públicas desde o 3º ciclo até ao secundário. Sempre fiz o meu trabalho com empenho, dedicação. Em determinados momentos ouvi as angustias de muitos alunos, os seus desabafos, desesperos, solidão… fui um ombro Amigo. Neste momento tenho muitas saudades do meu trabalho dos meus alunos, dos risos, do barulho…Estou desempregada, não fui colocada em nenhuma escola, já enviei currículos, já concorri as Ofertas de Escola e NADA!!!
    Tenho 46anos, onde vou pedir trabalho. Neste momento não consigo controlar as lágrimas O QUE FIZ DO MEU FUTURO!!! ONDE FOI QUE EU ERREI!!!

  5. bom 13 disciplinas do 7º ao 9º com 12 t.p.c’s tamém pouco faziam pela educação

    o facto de as ofertas de escola não funcionarem para quem não tem os conhecidos certos é mais preocupante….
    “Estou desempregada, não fui colocada em nenhuma escola, já enviei currículos, já concorri as Ofertas de Escola e NADA”””””

  6. pode até dizer-se que é um caso de má-educação

    dos sindicalistas e dos directores escolares para aqueles que deram tantos anos a uma escola que é disfuncional vai para século e meio…

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